DUAS VIDAS UM DESTINO. O Preço da Culpa
img img DUAS VIDAS UM DESTINO. O Preço da Culpa img Capítulo 4 O BEIJO QUE NÃO DEVERIA TER ACONTECIDO
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Capítulo 6 DEPOIS DO SILÊNCIO img
Capítulo 7 O DIA DEPOIS img
Capítulo 8 O DIA QUE NADA FICOU NO LUGAR img
Capítulo 9 O CAOS QUE VICIA img
Capítulo 10 O DIA DEPOIS DO CAOS img
Capítulo 11 A SEMELHANÇA QUE FERE O img
Capítulo 12 OS RASTROS DO IRMÃO img
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Capítulo 4 O BEIJO QUE NÃO DEVERIA TER ACONTECIDO

Quando duas dores se reconhecem

STEVEN SANTOURO

O jardim estava quieto.

A música do salão chegava distante, como um eco de outro mundo.

As luzes refletiam no vinho, e o vento movia o vestido dela com a calma de uma lembrança.

Por um momento, fiquei só observando. Cada gesto, cada pausa.

- Então, você já é mãe de um menino de nove anos? Perguntei, tentando disfarçar a curiosidade na voz. Qual a sua idade, se me permite?

Ela sorriu leve, sem afetação.

- Tenho vinte e cinco. Me apaixonei por um homem bem mais velho. Sempre tive essa queda por maturidade. Minha mãe dizia que homens mais velhos dão segurança, proteção.

Deu um gole no vinho, o olhar perdido.

- Ele estava a trabalho no Brasil. Nos encontramos algumas vezes e eu, nova, ingênua, achei que era pra sempre. Descobri a gravidez logo no início. Fui contar a ele e, antes que pudesse terminar a frase, a tragédia aconteceu. A voz dela vacilou. Ele morreu nos meus braços.

Fiquei em silêncio.

A forma como ela disse "morreu nos meus braços" não parecia ensaio. Era cicatriz.

Ela respirou fundo e continuou.

- Eu era jovem demais, mas juro, Steven, eu sabia o que sentia. Ele não me forçou, não me enganou. Pelo contrário, me amou, me protegeu. Até o dia em que tiraram ele de mim. No dia seguinte vim pra Orlando, terminei os estudos, me formei e aqui estou. Criando o fruto desse amor curto. O resto foi escolha minha, fugir, proteger meu filho e nunca mais olhar para trás.

A palavra amor soou sagrada quando saiu da boca dela.

Por um segundo, senti inveja de um morto.

- Então você é brasileira? Perguntei. Fala inglês como se tivesse nascido aqui.

Ela sorriu, mas sem alegria.

- Nasci no Brasil, sim. Mas ele era daqui, da Flórida. O corpo foi velado aqui. Os dedos giravam a taça. Prefiro não falar mais sobre isso.

Assenti devagar.

- Entendo. E me desculpe. Deve ter sido difícil pra alguém tão jovem carregar um luto, uma gravidez e ainda chegar tão longe.

Ela não respondeu.

Só me olhou. E eu entendi que ela tinha desaprendido a esperar compaixão.

Continuei, baixo.

- Eu também perdi alguém assim. Meu irmão.

Ela ergueu os olhos, surpresa.

- Ele estava no Brasil, a trabalho. Disseram que reagiu a um assalto e morreu no local. Uma moça que passava ligou pra polícia. Meu pai foi buscá-lo, trouxe o corpo pra casa. Ele tinha trinta e seis anos, cinco a mais que eu. Era meu herói.

- Sinto muito, ela murmurou. Perder um irmão é indescritível.

- É. Meu pai diz que ele se envolveu com a filha de um dos nossos maiores rivais comerciais, mas não acredita em assalto. Acredita em assassinato. Disse que foi por causa dela. Dei um riso curto, sem humor. Então, de certo modo, eu entendo um pouco da sua dor.

Ela baixou o olhar.

A taça balançou em silêncio.

Os dedos longos pareciam segurar o vidro como quem segura o próprio passado.

- Sinto muito pela sua dor, Steven, disse com voz serena. Mas perder um irmão, seja por acidente ou emboscada, nunca vai se comparar à dor de ver sua esperança morrer nos seus braços, com um fruto no ventre, e precisar fugir pra outro país pra não perder o único presente que restou. Ergueu o olhar, firme, sem autopiedade. E chegar onde cheguei, sozinha, sem apoio. Mas sabe? Eu não lamento nada disso. Eu uso tudo isso como combustível pra seguir em frente.

A sinceridade dela me desmontou.

Eu estava acostumado a máscaras, a vozes treinadas para dizer o que eu queria ouvir.

Mas ela falava como quem não devia mais nada a ninguém.

Por um instante, não reconheci o homem que estava ali parado.

Aquele que sempre dominava cada sala, cada negociação, cada olhar.

Diante dela, eu só conseguia escutar.

- Agora, se me dá licença, disse. Eu preciso ir. Já é tarde.

Ela se levantou, ajeitou o vestido e sorriu, educada, como se o mundo não tivesse acabado nos braços dela um dia.

Eu me levantei junto, sem pensar.

- Espere, falei, a voz mais baixa do que eu pretendia. Leve tudo o que tiver sobre o caso do meu pai. Quero que veja com seus próprios olhos. Posso mandar o dossiê completo pra sua clínica amanhã?

Ela assentiu.

- Claro. Mande para a minha assistente.

E começou a se afastar.

Mas o impulso veio antes da razão.

Dei um passo à frente e toquei o braço dela.

Ela virou devagar, surpresa.

Quando os olhos dela encontraram os meus, não havia mais distância possível.

Silêncio. Respiração. O som distante do salão.

Minha mão subiu até o rosto dela. O calor da pele era um aviso e uma sentença.

- Hérica...

Ela abriu a boca pra dizer algo.

Mas não deu tempo.

Eu beijei.

A taça escorregou dos dedos dela e se quebrou no chão. O som seco cortou o ar.

Mas nenhum de nós se moveu.

O beijo começou contido, mas ela não recuou.

E quando o corpo dela cedeu, não havia mais espaço entre controle e necessidade.

O gosto do vinho misturado à respiração dela era a combinação mais perigosa que já provei.

Minhas mãos seguravam o rosto dela como quem segura algo que não deveria possuir.

Quando ela se afastou, o olhar veio carregado de algo que eu não soube decifrar.

Raiva, dor, desejo. Talvez tudo junto.

Ela se virou sem dizer nada.

Ficou parada por um segundo, respirando fundo.

Depois caminhou de volta para o salão.

Fiquei ali, olhando o chão, o brilho do vinho derramado refletindo as luzes do jardim.

E percebi que o impacto real não foi o beijo.

Foi o que ele acendeu.

            
            

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