De cima, da galeria, observei o salão.
Os jornalistas circulavam como abelhas em volta de gente perfumada demais.
E no centro, ela, Hérica Fernandes, falava com o diretor da clínica e dois médicos estrangeiros.
Ela segurava a taça de champagne com a delicadeza de quem tem o controle até do gesto mais simples.
Não tentava chamar atenção; mesmo assim, era impossível não notar.
Enquanto eles falavam, ela ouvia com o queixo levemente inclinado, um meio sorriso contido.
Nada no corpo dela denunciava vaidade, mas tudo gritava presença.
A cada palavra que o diretor dizia, ela reagia com um aceno breve, uma concordância sutil, como se calculasse o tempo exato entre a razão e a cortesia.
Quando um dos médicos se aproximou demais, ela recuou um passo, não por recato, mas por hábito de defesa.
E eu entendi que aquela mulher carregava mais segredos do que títulos.
Eu me encostei no corrimão da galeria, observando-a como quem lê algo que ainda não sabe se deve compreender.
O vestido azul petróleo se movia a cada passo; o tecido refletia a luz das luminárias de cristal.
Os olhos, mesmo à distância, pareciam absorver tudo, atentos, mas longe.
Não havia vaidade, mas havia uma muralha de controle.
E aquilo me intrigou mais do que qualquer beleza.
Uma garçonete parou ao meu lado oferecendo champagne. Peguei a taça sem olhar.
No reflexo dourado do líquido, vi o rosto dela.
E por um instante, senti o tipo de curiosidade que eu costumava reprimir.
Não era interesse. Era uma sensação antiga, como se eu reconhecesse algo que nunca vi.
Decidi descer.
Caminhei devagar entre os grupos, fingindo ouvir cumprimentos.
O ar estava carregado de perfume e sons falsos, risadas ensaiadas, elogios caros.
Mas o mundo pareceu silenciar quando o Dr. Miles Anderson se virou e pousou a mão no ombro dela.
Ela o olhou com respeito, inclinando levemente a cabeça, e foi então que ele me notou.
- Senhor Santouro? Disse Miles, surpreso. Que honra! Achei que não tivesse vindo. Não o vi chegar.
- Eu estava na galeria superior. Respondi. Observando. Parabéns pelo evento.
Ele assentiu, orgulhoso, e sorriu.
Então tocou no ombro dela, chamando sua atenção.
- Doutora Hérica, preciso apresentá-la a alguém especial. Este é Steven Santouro, nosso maior patrocinador internacional.
Ela virou.
Foi rápido. Um segundo, talvez menos.
Mas foi o suficiente.
A luz refletida no salão desenhou seus olhos com uma intensidade quase irreal, azuis. Não claros e vazios, mas profundos, como se escondessem mar e tempestade.
Pele clara. Cabelos loiros presos em um coque baixo impecável.
O vestido azul petróleo abraçando o corpo sem exagero.
Ela me encarou.
Sem vacilar.
E sorriu o suficiente para desestabilizar a minha calma.
- Prazer. Disse.
- O prazer é meu, senhorita Fernandes. Respondi, sentindo algo estranho percorrer meu estômago. Aliás, peço licença para roubar a doutora por um instante. Preciso de uma palavra a sós.
Miles sorriu.
- Claro, claro. Ela é toda sua. Mas não por muito tempo, a imprensa já está esperando.
E se afastou.
Ficamos frente a frente.
Silêncio de meio segundo. Longo demais para ser casual.
- Primeiro, parabéns pelo prêmio. Falei. Segundo... você é muito mais jovem do que eu imaginava. E mais linda do que qualquer reportagem descreveu.
Ela pareceu não saber se agradecia ou desviava.
- E terceiro, e mais importante, não estou aqui pelo evento. Vim para conhecê-la. Em nome do meu pai, Domênico Santouro, gostaria de convidá-la a ir ao hospital onde ele está internado. Ele tem um tumor cerebral. Quer... que você o opere.
O cristal da taça dela tremeu levemente.
Só quem observa demais percebe isso.
Ela piscou devagar.
- Desculpe, senhor Santouro... Você... me pegou de surpresa.
- Me chame de Steven. Interrompi. Sei que estou diante de uma menina, mas só tenho quarenta anos.
Ela olhou para o chão, mordeu o lábio antes de responder, quase rindo da ironia.
- Senh... Steven. Minha agenda é apertada. Posso analisar o caso, mas vocês poderiam levar o prontuário à clínica. Eu entro muito cedo, saio muito tarde... e ainda tenho um filho de nove anos que quase não vejo.
Filho.
A palavra atravessou o ar.
- Então você é casada? Perguntei sem pensar.
- Não. Ela enrijeceu. Meu... namorado morreu. Justamente na noite em que eu daria a notícia da gravidez. Ele... não sobreviveu.
Silêncio.
Aquela dor não era encenada. Era sutil e verdadeira, como quem sangra por dentro, todo dia.
Eu respirei fundo.
- Quer... ir comigo lá fora? Só um minuto. Prometo não roubar muito do seu tempo.
Ela hesitou.
Olhou o salão lotado. Olhou para mim.
- Promete?
- Sim.
Ela colocou a taça na mesa.
- Tudo bem.
Caminhamos lado a lado até a porta lateral.
A noite de Miami tinha cheiro de grama molhada e mar distante. O jardim estava quase vazio, luzes baixas, vento leve.
Parei no bar externo, pedi um vinho tinto.
- Duas taças, por favor.
Ela ficou de braços cruzados, observando.
Sentamos em um banco de madeira sob uma árvore iluminada.
Entreguei a taça.
- Às vidas difíceis. Disse, erguendo a minha.
Ela encostou sua taça na minha, sem desviar os olhos.
- Aos começos difíceis.
O vidro tilintou.
E por algum motivo que eu não sei explicar... aquele som ficou preso dentro de mim.