Nove da manhã.
O carro preto cortou o trânsito de Miami e parou diante da fachada espelhada da Santouro Holdings.
Steven desceu, ajeitou o paletó e atravessou o saguão com o mesmo passo de sempre, firme, preciso, o tipo de presença que até o silêncio obedecia.
O elevador o levou direto ao último andar.
O escritório o recebeu com o cheiro habitual de couro novo, café requentado e poder contido.
Daniel, o secretário, o esperava à porta, com um envelope dourado nas mãos, e a cautela de quem já sabia que certas notícias tinham peso demais.
- Senhor, chegaram convites do Global Medical Innovation Summit. A voz de Daniel era polida, como a de quem sabe andar sobre vidro. A empresa é uma das patrocinadoras do evento.
Steven passou por ele sem diminuir o passo.
- Jogue fora.
- Talvez queira reconsiderar. Daniel manteve o tom neutro. O congresso terá cobertura internacional. Sua ausência será notada.
- A ausência é meu melhor marketing. A resposta veio seca, medida. Ele se sentou, girou a cadeira e ficou olhando o horizonte de prédios pela parede de vidro.
Daniel pousou o envelope sobre a mesa, hesitante.
- A médica indicada para o caso do seu pai vai estar lá. Pausa breve. Ela será premiada esta noite.
Steven ergueu o olhar, desconfiado.
- Nome.
- Dra. Hérica Fernandes do Group Orlando Memorial Hospital.
O nome quebrou o ar.
Por um instante, o escritório inteiro pareceu escutar.
Steven o repetiu em silêncio, saboreando o som, Hérica.
O nome não lhe dizia nada. Mas o silêncio depois dele dizia tudo.
Um leve incômodo atravessou o peito, como se o destino tivesse soprado uma nota que ele ainda não sabia decifrar.
- Pode sair. Disse, recostando-se na cadeira.
Daniel obedeceu, e o escritório voltou a ser o mesmo espaço caro e estéril de sempre.
Steven pegou o convite, girou-o entre os dedos, leu o nome impresso e o deixou de lado.
Não respondeu se iria.
O telefone tocou.
No visor: Pai.
- Já falou com ela? Perguntou Domênico Santouro, sem sequer um cumprimento.
- Ainda não.
- Quero que me traga resposta hoje.
- Está bem.
- Hoje, Steven. A voz veio rouca, firme, como aço. Pague o que for preciso, faça o que for preciso, mas traga essa mulher até mim.
A ligação terminou.
O silêncio ficou.
Steven olhou o celular, imóvel, o incômodo crescendo como um eco antigo.
Virou o convite na mesa. O nome da médica permanecia ali, Hérica Fernandes, pulsando dentro dele como uma promessa que não havia feito, mas que o destino já cobrava.
Enquanto em Orlando o dia morria, o som era outro: zumbido de monitores, respiração filtrada por máscaras, o compasso ritmado do bisturi elétrico.
Hérica conduzia a cirurgia como quem comanda uma orquestra.
Cérebro exposto, luz intensa, foco absoluto.
- Aspiração leve. Pediu.
- Sim, doutora. Respondeu o residente.
O tumor parecia um nó de sombra entre vasos rosados.
A pinça bipolar brilhou. O tecido respondeu.
O cheiro metálico do sangue se misturou ao do álcool hospitalar.
Ela sabia que o bisturi cortava mais que carne, cortava a distância entre a vida e o arrependimento.
Três horas depois, a hemorragia estancou. O monitor cardíaco voltou a marcar ritmo regular.
- Fechamento padrão. Anunciou com calma.
O silêncio da equipe era o de quem acabara de ver um milagre e fingia ser rotina.
No vestiário, já sem o gorro, ela prendeu o cabelo num coque simples e se olhou no espelho.
A pele pálida, o olhar exausto.
O relógio marcava quase seis da tarde. O evento começaria em duas horas.
Na sala de descanso, a equipe comemorava.
- Doutora, vai se atrasar pro prêmio! Brincou Megan, empolgada.
- Se eu pudesse, trocava o palco por café, vinho, um bom livro e cama. Respondeu, tentando sorrir.
As risadas preencheram o ambiente.
- A senhora precisa sair mais. Insistiu Megan.
- Eu saio. Todos os dias. Para o centro cirúrgico.
- Não é disso que estou falando. Megan sorriu. Falo de viver. De dançar, se permitir... beijar na boca, talvez.
Hérica levantou o olhar, o rosto sereno, mas a voz distante.
- Eu já vejo gente demais. E isso é mais do que suficiente.
As risadas cessaram.
Ela pegou a bolsa, desligou o celular e saiu.
Não havia tempo, nem espaço, para o que chamavam de vida.
Em Miami, o sol se escondia atrás dos prédios quando Steven entrou no closet.
Camisa branca, terno escuro, relógio herdado do pai.
Não era vaidade, era armadura.
Daniel o esperava no hall.
- Vai mesmo? Perguntou.
Steven ajeitou o paletó.
- Tenho uma promessa a cumprir.
O motorista abriu a porta do carro.
No reflexo do vidro, o homem que olhou de volta parecia pronto pra qualquer coisa, menos pra sentir.
Em Orlando, Hérica chegou em casa com o tempo contado.
O vestido azul-petróleo refletia sob a luz do abajur: decote discreto, tecido fluido, elegância sem esforço, o tipo que não busca atenção, mas prende o olhar.
Prendeu o cabelo num coque baixo, colocou o colar de pérolas que fora da mãe.
O relógio marcava sete.
Pegou a bolsa e saiu, o som dos saltos ecoando pelo corredor.
Enquanto em Miami a noite se acendia, o salão principal do Global Medical Innovation Summit fervilhava.
Telões, flashes, jornalistas, o som metálico de taças e vozes.
Steven entrou pelo fundo, o olhar de quem avalia um campo de guerra.
Sentou-se em um camarote lateral, afastado o bastante para observar sem ser notado.
O mestre de cerimônias subiu ao palco.
- Senhoras e senhores, boa noite. Daremos início à homenagem aos profissionais que revolucionaram a medicina nos últimos anos.
O público aplaudiu.
Steven manteve-se imóvel, as mãos unidas, o olhar fixo no palco.
Esperava apenas o nome que já sabia que viria.
- E agora, o prêmio de excelência em neurocirurgia vai para a Dra. Hérica Fernandes, do Orlando Medical Center!
Aplausos. Luzes. Câmeras.
O som subiu, o salão respirou junto.
Hérica subiu os degraus lentamente.
De costas, o vestido azul movia-se como mar sob vidro e luz.
Cumprimentou o apresentador, recebeu o troféu.
O cerimonialista estendeu a mão para ajudá-la a se posicionar diante do microfone.
Ela respirou fundo, ajeitou o cabelo.
E virou-se para a plateia.
O som dos aplausos pareceu pulsar dentro dele.
Cada batida lembrava o compasso de algo que Steven não queria sentir.
O rosto dela, o mesmo traço de firmeza que Matteo tinha descrito anos atrás, e então tudo parou.
Steven ergueu o olhar.
O nome, o rosto, o tom de voz, tudo se encaixou num golpe surdo, como se o passado o tivesse encontrado no meio da multidão.
O ar pareceu rarefeito.
O som do público virou ruído distante.
A mulher que o pai queria que o salvasse.
A mulher que ele não sabia que já o estava salvando.
O impacto não veio do prêmio.
Veio do reconhecimento.
Do destino, que enfim marcara hora, sem avisar.