DUAS VIDAS UM DESTINO. O Preço da Culpa
img img DUAS VIDAS UM DESTINO. O Preço da Culpa img Capítulo 1 💠 PRÓLOGO
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Capítulo 6 DEPOIS DO SILÊNCIO img
Capítulo 7 O DIA DEPOIS img
Capítulo 8 O DIA QUE NADA FICOU NO LUGAR img
Capítulo 9 O CAOS QUE VICIA img
Capítulo 10 O DIA DEPOIS DO CAOS img
Capítulo 11 A SEMELHANÇA QUE FERE O img
Capítulo 12 OS RASTROS DO IRMÃO img
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DUAS VIDAS UM DESTINO. O Preço da Culpa

LynneFigueiredo
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Capítulo 1 💠 PRÓLOGO

A dor me moldou

Saudades, a dor que o tempo não cura

HÉRICA FERNANDES

O anúncio do voo ecoava pelo alto-falante como uma sentença.

Orlando. Portão 17. Última chamada.

Eu fechei os olhos e respirei fundo, sentindo o cheiro de querosene misturado ao da minha própria roupa, ainda manchada do ontem que eu queria esquecer.

Apertei o passaporte entre os dedos, e junto dele, a ultrassonografia amassada.

Aquela pequena sombra dentro de mim era tudo o que restava de um amor que o tempo não teve tempo de salvar.

Eu vou te proteger, meu amorzinho...murmurei, a voz arranhando a garganta.

Não vou deixar ninguém te tocar. Ninguém vai te tirar de mim.

As pessoas passavam apressadas, arrastando malas, trocando sorrisos apáticos.

Ninguém via a mulher que estava ali, só o corpo dela tentando fingir que ainda era inteiro.

Mas eu não era mais.

O som do alto-falante se misturou à lembrança.

O chão frio, o sangue.

O nome dele escapando de mim, como se dissesse um último adeus.

Matteo.

- Luta, por favor... Minha voz voltava como um eco distante dentro da cabeça.

- Você prometeu. A gente vai ter um bebê...

O olhar dele, o mesmo que um dia me fez acreditar em eternidade, foi apagando devagar.

O tempo parou. A cor sumiu.

E eu fiquei ali, tentando reanimar o impossível.

A ambulância chegou tarde demais.

Os passos, as vozes, o barulho metálico das macas, tudo distante, como se o mundo tivesse abaixado o volume pra não ouvir meu grito.

Quando o pai dele apareceu, o ar da rua mudou.

Aquela presença, fria, calculada, vestida de terno preto, carregava poder e sentença.

O homem que decidia o que devia viver e o que devia ser esquecido.

Se eu ficasse, ele tomaria o que era meu.

O bebê seria um Santouro, herdeiro de um império sujo de segredos.

Mas não teria o direito de ser livre.

Então eu corri.

Agora, no aeroporto, as lágrimas desciam sem som.

A aeromoça conferiu meu bilhete e me desejou boa viagem.

Se soubesse o que eu levava comigo, teria dito boa fuga.

Subi as escadas metálicas com o coração batendo fora do peito.

Cada degrau era uma despedida.

Da cidade. Dele. De quem eu fui.

Pela janela do avião, o amanhecer rasgava o céu em tons de cobre.

A cor preferida de Matteo.

Apertei a ultrassonografia contra o peito e sussurrei:

- Eu vou te guardar.

Vou te criar longe das promessas quebradas, longe do sangue que matou teu pai.

As turbinas rugiram.

A cidade encolheu.

E o juramento saiu de mim antes que eu pudesse medir:

- Eu nunca vou voltar.

Mas o destino, como o amor, não entende a palavra nunca.

E naquele voo, entre nuvens e silêncio, começou tudo o que eu passaria a vida tentando esquecer.

STEVEN SANTOURO

Eu não queria estar ali.

O cheiro de flores, vela e chuva me embrulhava o estômago.

Velórios sempre me pareceram uma espécie de castigo público, gente que finge consolar, enquanto cada um carrega a própria ruína por dentro.

Fiquei à sombra de uma árvore, observando o pátio do cemitério encharcado.

O vento frio cortava o rosto, e por um instante, pensei em ir embora.

Mas não fui.

Há dores das quais a gente não foge.

As pessoas chegavam de preto, com guarda-chuvas tremendo como asas de corvos.

Rostos que eu conhecia, outros que fingiam conhecer o morto.

O caixão ainda não tinha chegado.

E naquele intervalo miserável entre a espera e o adeus, eu descobri um lado de mim que ainda não conhecia.

Não era tristeza.

Era raiva.

Bruta, quente, absurda.

Trinta e um anos e um coração já velho demais.

Meu irmão. Matteo, foi tudo o que eu nunca consegui ser.

Calmo, leal, o orgulho da família.

E agora, ele estava dentro de um caixão que a chuva insistia em lavar.

O carro fúnebre dobrou a esquina.

O barulho do motor cortou o silêncio como faca.

As vozes baixaram.

O caixão desceu devagar, coberto por flores brancas que logo murchariam.

Fui até ele.

Li o nome gravado na placa dourada.

Matteo Santouro.

Meu irmão.

Meu herói.

O único que ainda acreditava que a gente podia ser bom, mesmo vindo de onde viemos.

Ajoelhei ao lado.

A madeira refletia o céu cinzento, e o meu próprio rosto.

O punho fechou sem que eu percebesse.

Uma lágrima caiu, quente, impaciente, misturada à chuva.

Sussurrei, baixo o bastante pra ninguém ouvir:

- Eles vão pagar.

Porque, dentro de mim, algo havia quebrado de vez.

E o que restou não sabia mais rezar, só prometer.

Quando o padre começou a falar, eu me afastei.

O som das palavras sobre céu e redenção não fazia sentido.

Céu era pra quem acreditava em perdão.

Eu acreditava em dívida.

Meu pai se aproximou logo depois.

O rosto duro, o luto disfarçado de poder.

- Onde você estava, Steven?

- Aqui.

- Honre o seu irmão.

- Cada um honra à sua maneira, pai.

O olhar dele me atravessou.

Talvez naquele instante ele tenha percebido o que eu já sabia:

O filho mais novo tinha herdado a dor, e com ela, a sede de justiça.

Saí antes de ver meu irmão ser enterrado.

Ouvi os passos do meu pai atrás de mim.

Ele me puxou pelo braço com força.

- Volte agora, moleque.

Balancei a cabeça.

- Não dá, pai. Essa não será a última lembrança que terei do meu irmão.

Dei as costas.

- Steven, volte agora! Ele gritou, mas eu continuei andando, com a chuva apagando o som dos passos.

Saí do cemitério enquanto a chuva engrossava.

Atrás de mim, o som das pás de terra batendo na madeira parecia o compasso do que restava do meu coração.

Entrei no carro, olhei pro vidro embaçado e disse pro silêncio do motorista:

- Descansa em paz, meu irmão.

Porque no mundo dos vivos, não haverá paz pra quem te tirou de mim.

A cidade passava lenta pela janela, coberta de cinza e memória.

E foi ali, naquele dia, que eu aprendi:

Quem nasce no fogo, aprende a queimar cedo.

E a dor, quando não mata, ensina a destruir.

            
            

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