Eu vou te proteger, meu amorzinho...murmurei, a voz arranhando a garganta.
Não vou deixar ninguém te tocar. Ninguém vai te tirar de mim.
As pessoas passavam apressadas, arrastando malas, trocando sorrisos apáticos.
Ninguém via a mulher que estava ali, só o corpo dela tentando fingir que ainda era inteiro.
Mas eu não era mais.
O som do alto-falante se misturou à lembrança.
O chão frio, o sangue.
O nome dele escapando de mim, como se dissesse um último adeus.
Matteo.
- Luta, por favor... Minha voz voltava como um eco distante dentro da cabeça.
- Você prometeu. A gente vai ter um bebê...
O olhar dele, o mesmo que um dia me fez acreditar em eternidade, foi apagando devagar.
O tempo parou. A cor sumiu.
E eu fiquei ali, tentando reanimar o impossível.
A ambulância chegou tarde demais.
Os passos, as vozes, o barulho metálico das macas, tudo distante, como se o mundo tivesse abaixado o volume pra não ouvir meu grito.
Quando o pai dele apareceu, o ar da rua mudou.
Aquela presença, fria, calculada, vestida de terno preto, carregava poder e sentença.
O homem que decidia o que devia viver e o que devia ser esquecido.
Se eu ficasse, ele tomaria o que era meu.
O bebê seria um Santouro, herdeiro de um império sujo de segredos.
Mas não teria o direito de ser livre.
Então eu corri.
Agora, no aeroporto, as lágrimas desciam sem som.
A aeromoça conferiu meu bilhete e me desejou boa viagem.
Se soubesse o que eu levava comigo, teria dito boa fuga.
Subi as escadas metálicas com o coração batendo fora do peito.
Cada degrau era uma despedida.
Da cidade. Dele. De quem eu fui.
Pela janela do avião, o amanhecer rasgava o céu em tons de cobre.
A cor preferida de Matteo.
Apertei a ultrassonografia contra o peito e sussurrei:
- Eu vou te guardar.
Vou te criar longe das promessas quebradas, longe do sangue que matou teu pai.
As turbinas rugiram.
A cidade encolheu.
E o juramento saiu de mim antes que eu pudesse medir:
- Eu nunca vou voltar.
Mas o destino, como o amor, não entende a palavra nunca.
E naquele voo, entre nuvens e silêncio, começou tudo o que eu passaria a vida tentando esquecer.
STEVEN SANTOURO
Eu não queria estar ali.
O cheiro de flores, vela e chuva me embrulhava o estômago.
Velórios sempre me pareceram uma espécie de castigo público, gente que finge consolar, enquanto cada um carrega a própria ruína por dentro.
Fiquei à sombra de uma árvore, observando o pátio do cemitério encharcado.
O vento frio cortava o rosto, e por um instante, pensei em ir embora.
Mas não fui.
Há dores das quais a gente não foge.
As pessoas chegavam de preto, com guarda-chuvas tremendo como asas de corvos.
Rostos que eu conhecia, outros que fingiam conhecer o morto.
O caixão ainda não tinha chegado.
E naquele intervalo miserável entre a espera e o adeus, eu descobri um lado de mim que ainda não conhecia.
Não era tristeza.
Era raiva.
Bruta, quente, absurda.
Trinta e um anos e um coração já velho demais.
Meu irmão. Matteo, foi tudo o que eu nunca consegui ser.
Calmo, leal, o orgulho da família.
E agora, ele estava dentro de um caixão que a chuva insistia em lavar.
O carro fúnebre dobrou a esquina.
O barulho do motor cortou o silêncio como faca.
As vozes baixaram.
O caixão desceu devagar, coberto por flores brancas que logo murchariam.
Fui até ele.
Li o nome gravado na placa dourada.
Matteo Santouro.
Meu irmão.
Meu herói.
O único que ainda acreditava que a gente podia ser bom, mesmo vindo de onde viemos.
Ajoelhei ao lado.
A madeira refletia o céu cinzento, e o meu próprio rosto.
O punho fechou sem que eu percebesse.
Uma lágrima caiu, quente, impaciente, misturada à chuva.
Sussurrei, baixo o bastante pra ninguém ouvir:
- Eles vão pagar.
Porque, dentro de mim, algo havia quebrado de vez.
E o que restou não sabia mais rezar, só prometer.
Quando o padre começou a falar, eu me afastei.
O som das palavras sobre céu e redenção não fazia sentido.
Céu era pra quem acreditava em perdão.
Eu acreditava em dívida.
Meu pai se aproximou logo depois.
O rosto duro, o luto disfarçado de poder.
- Onde você estava, Steven?
- Aqui.
- Honre o seu irmão.
- Cada um honra à sua maneira, pai.
O olhar dele me atravessou.
Talvez naquele instante ele tenha percebido o que eu já sabia:
O filho mais novo tinha herdado a dor, e com ela, a sede de justiça.
Saí antes de ver meu irmão ser enterrado.
Ouvi os passos do meu pai atrás de mim.
Ele me puxou pelo braço com força.
- Volte agora, moleque.
Balancei a cabeça.
- Não dá, pai. Essa não será a última lembrança que terei do meu irmão.
Dei as costas.
- Steven, volte agora! Ele gritou, mas eu continuei andando, com a chuva apagando o som dos passos.
Saí do cemitério enquanto a chuva engrossava.
Atrás de mim, o som das pás de terra batendo na madeira parecia o compasso do que restava do meu coração.
Entrei no carro, olhei pro vidro embaçado e disse pro silêncio do motorista:
- Descansa em paz, meu irmão.
Porque no mundo dos vivos, não haverá paz pra quem te tirou de mim.
A cidade passava lenta pela janela, coberta de cinza e memória.
E foi ali, naquele dia, que eu aprendi:
Quem nasce no fogo, aprende a queimar cedo.
E a dor, quando não mata, ensina a destruir.