O nome que ela repetiu tantas vezes em silêncio, como se fosse um segredo bonito demais para ser dito em voz alta. Um dos seiyuus mais reconhecidos da indústria. Um artista que mergulhava tão fundo em cada personagem que parecia desaparecer dentro deles. Uma voz que podia confortar, destruir, ou fazer o coração acelerar - dependendo do papel.
No começo, Marina dizia a si mesma que era só admiração.
Só admiração por alguém talentoso, dedicado, brilhante.
Mas admiração tem um jeito estranho de crescer quando encontra espaço para isso. E com o tempo, o que ela sentia foi tomando forma dentro dela de um jeito silencioso, quase inevitável - até se transformar em algo que ela tentou negar por meses: amor.
Um amor platônico, claro.
Irreal.
Quase infantil.
Porque ela vivia do outro lado do mundo, numa realidade completamente diferente da dele.
Porque ele era famoso, cercado de oportunidades e pessoas
Porque ela era apenas Marina - alguém comum, de um país distante, aprendendo a sobreviver devagar num mundo que parecia sempre rápido demais.
Mas mesmo assim, ela amava.
Amava a voz, a dedicação, as entrevistas, os pequenos trechos de bastidores que assistia quando estava triste. Amava o jeito como ele parecia olhar para o microfone como se estivesse conversando com alguém invisível.
Às vezes, achava até que ele falava com ela.
E quando a chance apareceu, uma porta se abrindo depois de tantas fechadas - Marina não pensou duas vezes.
Ela fez as malas.
Respirou fundo.
E embarcou na maior loucura da sua vida.
Porque, pela primeira vez, sentia que a voz que sempre a guiou nos piores momentos podia estar, de algum jeito, levando-a até o seu próprio destino.
E assim, com o coração acelerado e o futuro aberto diante dela, Marina deu seu primeiro passo em solo japonês.
Conforme os meses foram passando, a realidade atingiu Marina de uma forma amarga e silenciosa. O brilho inicial de estar finalmente no Japão foi perdendo intensidade diante da rotina dura e da pressão constante do dinheiro diminuindo.
Ela contava cada iene antes de dormir, fazendo cálculos mentais que nunca fechavam. O valor que trouxera do Brasil já não parecia tão grande quanto antes. E, por mais que tentasse se convencer do contrário, ela sabia: se não conseguisse um emprego logo, teria que voltar. E essa era a última coisa que queria.
Mas nada estava sendo fácil. As entrevistas eram poucas. E era quase impossível disputar vagas com candidatos nativos. A cada "vamos entrar em contato", que nunca virava contato algum, o coração dela afundava mais um pouco.
Foi quando, em uma tarde, já exausta de entregar currículos e de segurar as lágrimas, ela conheceu outra brasileira. O encontro aconteceu por acaso, na saída de um mercado. A moça sorriu para Marina como se reconhecesse a luta estampada na expressão dela.
- Oi, você é brasileira também? - perguntou a desconhecida, simpática, segurando duas sacolas pesadas.
Seu nome era Camila Duarte - falante, acolhedora, e com aquela energia que só alguém que também sabe o peso de recomeçar em outro país poderia ter.
Elas conversaram por alguns minutos e, quando Marina mencionou sua dificuldade em encontrar trabalho, Camila abriu um sorriso esperançoso.
- Olha, tem um café aqui perto, o Café Kizuna. Os donos são um casal de brasileiros, super gente boa, o Rafael e a Débora Martinelli. Eles sempre dão oportunidade para brasileiros que chegam aqui. Inclusive, acho que estão precisando de alguém agora. Vai lá amanhã, de verdade. Fala que eu te indiquei.
Era como ver uma fenda de luz abrindo num céu fechado.
No dia seguinte, Marina acordou mais cedo, respirou fundo em frente ao espelho e, pela primeira vez em semanas, sentiu esperança de verdade. Vestiu a melhor roupa que tinha - simples, mas limpa e ajeitada -, prendeu o cabelo e saiu em direção ao endereço que Camila havia escrito para ela num papelzinho amassado.
O Café Kizuna era pequeno e acolhedor, com cheiro de pão fresco e café forte que lembrava um pouco o Brasil. Rafael e Débora a receberam com sorrisos gentis e uma conversa leve, que não parecia uma entrevista, mas sim um encontro entre pessoas que entendiam profundamente o que era recomeçar longe de casa.
Eles gostaram dela - da forma respeitosa com que falava, do brilho tímido nos olhos quando contava sobre seus sonhos, da determinação por trás da voz.
E então veio a frase que fez seus olhos marejarem:
- Marina, se você quiser, a vaga é sua.
Ela tentou não chorar, mas falhou. Rafael riu, compreensivo, e Débora apertou sua mão com carinho.
O salário não era alto, eles deixaram claro. Mas era suficiente. Daria para pagar o aluguel do seu pequeno kitnet, comprar comida e, acima de tudo, continuar ali. No Japão.
Era tudo que ela precisava naquele momento. Uma chance.
E, ao sair do café com o contrato simples dobrado dentro da bolsa, Marina sentiu o coração leve pela primeira vez desde que pisara no país.
Aquela era a nova vida dela começando de verdade.
Os dias foram passando, e Marina, com sua dedicação natural, aprendeu rápido tudo o que precisava fazer no Café Kizuna. Era cuidadosa, educada e observadora, absorvendo cada detalhe do funcionamento do lugar.
Atender os clientes, principalmente os japoneses, era a parte que ela mais se esforçava para fazer da forma correta. Ela seguia os costumes, a formalidade adequada, a postura curvada em respeito, o sorriso leve, a fala gentil.
E a língua... bem, a língua nunca foi problema. Era quase um alívio poder usar o japonês que havia estudado por tantos anos com tanto amor.
Ainda assim, havia uma parte de sua vida que ela mantinha trancada: seus sentimentos por Kaito Hayami.
Marina nunca comentou sobre isso com ninguém - nem mesmo com Camila, que havia se tornado sua amiga mais próxima naquele novo país. Era difícil explicar, afinal. Amar alguém que não se conhece. Amar uma voz que te acompanhou em noites solitárias, que embalou seus sonhos, que parecia falar diretamente com o seu coração.
Quem entenderia?
Então Marina guardava aquilo para si. Escondia o brilho nos olhos sempre que o nome de Kaito surgia em alguma conversa sobre animes. Mudava de assunto quando alguém falava sobre seiyuus famosos. Era um amor silencioso, quase sagrado.
Certo dia, durante o intervalo no meio da tarde, ela e Camila estavam sentadas atrás do café, tomando água gelada perto da porta que dava para o depósito. O calor estava forte, e as duas tentavam aproveitar os poucos minutos de descanso.
Foi então que Camila comentou, como quem fala sobre algo corriqueiro:
- Sabe que de vez em quando aparece uns seiyuus por aqui, né? - disse ela, abanando o rosto com um guardanapo.
Marina quase engasgou com a própria respiração.
- S-seiyuus? Aqui?
Camila riu da reação exagerada - sem imaginar o motivo real.
- Sim! O café não é muito grande, nem famoso, mas eles gostam daqui. Acho que é pelo café brasileiro, sabe? E porque ficamos perto do Studio Aozora. Muita gente grava lá. Às vezes, quando o dia é puxado, eles dão uma passada aqui para relaxar.
O coração de Marina bateu mais forte. A informação ficou ecoando na mente dela como um sino distante:
"Studio Aozora... perto daqui... seiyuus... aqui..."
E então, inevitavelmente, seu pensamento correu para ele.
Kaito Hayami.
A voz que ela conhecia há anos.
O homem que admirava em segredo, de um jeito que ultrapassava qualquer lógica.
Será que ele também passava por ali?
Será que um dia ela o encontraria?
Ela tentou disfarçar o turbilhão interno, mas era impossível impedir o próprio coração de imaginar.
Desde o dia em que Camila mencionou que alguns seiyuus apareciam por ali, Marina passou a observar a porta do café com mais frequência do que admitiria. Cada cliente que entrava trazia consigo uma pontada de esperança que, minutos depois, virava frustração silenciosa.
Ela nunca perguntou diretamente se Kaito Hayami era um dos frequentadores - o medo de expor seu sentimento escondido a fazia engolir a curiosidade.
Então, Marina apenas esperou. Paciente... e ao mesmo tempo ansiosa.
Até que, num entardecer de céu alaranjado, essa espera chegou ao fim.
O café estava mais calmo, o horário intermediário entre a saída das escolas e o pico do fim de tarde. Marina estava atrás do balcão de vidro onde ficavam os bolos, tortas e salgados brasileiros. Havia acabado o estoque de pão de queijo, e ela retirava as travessas vazias para levar até a cozinha.
Segurava duas bandejas de metal quando a porta se abriu, fazendo o sininho de entrada tilintar.
- Irasshaimase! - Camila cumprimentou do outro lado do salão.
Marina não olhou. Estava concentrada em equilibrar as travessas nos braços.
Mas então...
- Konbanwa. Ainda tem café passado? - perguntou uma voz masculina, gentil, profunda, com aquela ressonância que parecia tocar direto o peito de quem ouvia.
Marina congelou.
Seu coração parou - foi isso que ela sentiu.
As mãos tremeram tão forte que quase deixou cair as travessas. Ela precisou respirar fundo para não fazer barulho.
Aquela voz.
Ela reconheceria em qualquer lugar do mundo.
A voz que a acompanhou por anos.
A voz que a fez atravessar um oceano inteiro.
Era Kaito Hayami.
O sangue pareceu sumir de seu rosto. As pernas ficaram vacilantes, como se o chão tivesse ficado macio demais. Ela apertou as travessas contra o corpo, tentando se recompor, mas a respiração saiu trêmula.
- Tem sim, Hayami-san, - respondeu Camila, casual, como se fosse a coisa mais normal do mundo. - Quer o de sempre?
O de sempre.
Significava que ele vinha ali... com frequência.
Marina sentiu o coração bater no ritmo errado - rápido, forte, desesperado.
Porque, pela primeira vez, ele não era só um nome distante em créditos de anime.
Não era só uma imagem em eventos, nem só uma voz que ela amava em segredo.
Kaito estava ali.
A poucos metros dela.
Respirando o mesmo ar.
Vivendo a mesma cena.
E Marina...
Sentia que o mundo inteiro tinha acabado de girar rápido demais.