Então ela se obrigou a respirar fundo, ignorou o tremor ridículo das mãos e juntou as travessas vazias o melhor que conseguiu. Ainda que seus dedos estivessem trêmulos e a primeira bandeja quase escapasse, ela a segurou firme contra o peito e caminhou rápido em direção à cozinha.
Empurrou a porta com o quadril e entrou. Assim que colocou as travessas na bancada metálica, o som ecoou pela cozinha como se tivesse jogado um balde no chão.
- Ué, Marina? - perguntou Dona Lurdes, virando-se com a esponja nas mãos. - O que foi isso, menina? Quase derrubou tudo?
- N-nada... - ela respondeu rápido, sem ar. - Só escorreguei um pouco.
- Escorregou? Logo você? - Lurdes estreitou os olhos, desconfiada. - Tá pálida que nem papel. Cê tá passando bem?
- Tô sim - ela mentiu, forçando um sorriso que não convenceu ninguém.
Ela apoiou as mãos na beirada fria da pia, sentindo o metal gelado ajudar a reordenar seus pensamentos. O coração martelava tão forte que parecia querer saltar pela boca. Aquela voz... a voz dele. Se Kaito falasse mais uma vez, Marina tinha certeza de que suas pernas iriam simplesmente desistir.
"Você trabalha aqui. Você é funcionária. Você não pode simplesmente sumir atrás da porta como uma covarde."
Isso ajudou um pouco.
Respirando fundo, ela endireitou a coluna, ajeitou o avental com mãos ainda trêmulas e empurrou a porta de volta para o salão.
No instante em que abriu, ouviu novamente aquela voz inconfundível, suave e profunda, conversando com alguém.
Não olha. Não olha. NÃO. OLHA.
Mas, antes que conseguisse chegar ao balcão, a voz de Camila - sempre alta, sempre espontânea - cortou o ar.
- Mari! - chamou ela em português. - Pode cortar um pedaço do bolo de matcha com chocolate branco pra mesa três? Eu faço o café!
O problema não foi o pedido e sim o fato de ter falado em português, alto o suficiente para quem estivesse por perto prestar atenção.
Incluindo ele.
Marina sentiu o ar ao seu redor mudar sutilmente, como se alguém tivesse desligado todos os sons por um segundo. Ela sabia - sabia pelo arrepio que correu pela nuca - que Kaito tinha olhado na direção delas.
E aí não teve como.
Ela ergueu os olhos.
E o encontrou.
Kaito Hayami estava sentado perto da janela. Camisa preta simples, jaqueta esportiva azul-marinho caída sobre os ombros, cabelos escuros ligeiramente desalinhados, como se tivesse passado a mão neles há pouco. A luz do entardecer tocava seu rosto, destacando seus olhos profundos - escuros, atentos, curiosos.
Mas o que destruiu Marina por dentro foi o instante em que ele franziu levemente o cenho e sorriu com gentileza, claramente intrigado pela língua que ouvira - e pela garota que segurava uma espátula como se fosse uma arma.
Quando seus olhares se cruzaram, o mundo de Marina simplesmente caiu.
Seu estômago deu um salto tão forte que ela quase levou a mão para segurá-lo. Um calor subiu pelo pescoço até o rosto, deixando suas bochechas queimando. As pernas enfraqueceram, como se o chão tivesse decidido virar água.
A sensação era tão poderosa que ela teve certeza: se alguém encostasse nela naquele momento, ela caía dura no chão.
O olhar de Kaito era gentil, mas firme - como se estivesse realmente tentando entender quem ela era. Ele inclinou a cabeça de leve, curioso, e foi impossível para Marina não imaginar que ele estivesse analisando sua expressão, sua postura... talvez até tentando lembrar se já a tinha visto antes.
E tudo o que ela conseguiu pensar foi:
Meu Deus. É ele. É ele. Ele está olhando para mim.
Seu coração perdeu o compasso.
E, por um segundo impossível, Marina teve a sensação de que o tempo parara - só ela e ele existiam ali.
Foi Camila quem a puxou de volta.
- Marina? - repetiu, agora baixinho, cutucando o braço dela. - O bolo?
Ela piscou, voltando para o presente, quase tropeçando em si mesma.
- A-ah... s-sim... o bolo. - Sua voz mal saiu.
Mas, antes de virar de costas, seus olhos encontraram os dele mais uma vez.
E dessa vez, Kaito sorriu de verdade.
Um sorriso pequeno. Calmo. Educado.
Mas que fez o coração de Marina virar uma confusão irreparável.
Cortou o bolo de matcha com chocolate branco com a precisão possível para alguém à beira do colapso emocional. Colocou o pedaço no prato e o entregou para Camila, que, como sempre, parecia completamente alheia ao tumulto interno que sacudia Marina desde que ele havia entrado pela porta.
- Marina, corta mais um pedaço pra mim? - disse Camila, em português.
A palavra Marina, dita alta e clara, chamou a atenção de Kaito. Ela sentiu isso antes mesmo de olhar.
Mesmo assim... olhou.
E quando olhou, os olhos de Kaito já estavam nela.
Aquele olhar tranquilo... escuro e gentil... pousou nela como se a reconhecesse.
Marina tentou disfarçar, cortando o bolo como se estivesse tudo normal. Mas seu coração pulava, suas mãos tremiam e seus olhos ardiam com a urgência de desviar, fugir - qualquer coisa.
Assim que terminou, Camila pegou o prato com naturalidade.
- Deixa que eu levo. Fica no caixa, tá? - avisou, saindo antes que Marina pudesse protestar.
No caixa? Logo hoje?
Marina queria chorar. Ou rir. Ou sair correndo. Qualquer coisa menos ficar ali, parada, no local exato para onde Kaito viria quando terminasse o lanche.
Mas não tinha escolha.
Ela ficou.
O tempo correu lento, como se torturasse cada nervo dela.
Até que ouviu passos.
Passos firmes, tranquilos, aproximando-se do caixa. O coração dela subiu até a boca e ficou preso ali, sufocando suas próximas respirações.
E então, quando levantou os olhos...
Kaito estava diante dela.
Tão próximo que Marina pôde enxergar detalhes que nunca apareciam em entrevistas nem em fotos: o formato sutil dos cílios, a leve curvatura do canto dos lábios, o perfume suave - aquele cheiro amadeirado e limpo que fazia o mundo dela girar.
Ele colocou a carteira sobre o balcão e sorriu - aquele sorriso calmo, gentil, que parecia nascer de dentro.
- Arigatou - disse ele, estendendo o recibo. - Está sempre tudo delicioso aqui.
A voz dele... tão perto... tão real...
A mente de Marina virou um borrão.
Ela engoliu em seco, tentando parecer normal.
- F-fico feliz em saber - conseguiu dizer, torcendo para que a voz não soasse tão tremida quanto ela sentia.
Kaito observou-a por um instante.
Não de forma invasiva.
Mas de forma... curiosa.
Atenta.
Como se percebesse que algo nela havia mudado desde a primeira vez que ele a viu - e gostasse da mudança.
- Você é nova aqui, certo? - perguntou, inclinando levemente a cabeça.
Marina congelou.
Sua garganta secou. Sua mente entrou em pane.
Ele... percebeu que eu existo?
Apesar de quase ter esquecido como funciona uma frase, ela assentiu.
- Cheguei há alguns meses - respondeu, tímida.
Kaito sorriu de novo, e aquele sorriso fez a pele dela arrepiar como se tivesse sido tocada.
- Espero ver você mais vezes - disse ele.
Marina prendeu o ar.
E Kaito continuou:
- Realmente gosto deste lugar.
Ele recolheu a carteira, deu um último olhar - um olhar que ficou queimando dentro dela - e se afastou para a porta.
Quando ela finalmente soltou o ar, percebeu que estava com as mãos suando, o coração aos pulos e o rosto quente demais.
Naquela noite, Marina se revirou na cama como se o colchão tivesse se tornado pequeno demais para todas as emoções que carregava.
Ela encarava o teto do seu kitnet, ouvindo o som distante da cidade noturna, mas tudo o que conseguia realmente ouvir era a voz dele.
E cada vez que lembrava do momento em que os olhos deles se cruzaram, seu coração disparava como se estivesse vivendo tudo de novo.
Marina puxou o cobertor até o queixo, tentando se acalmar.
Mas não dava.
- Meu Deus... ele é ainda mais bonito pessoalmente... - murmurou para o vazio, com uma risadinha nervosa.
Porque era verdade.
Na tela ele já era encantador, mas pessoalmente...
Pessoalmente era quase injusto.
A pele suave, os olhos escuros e atentos, o sorriso gentil... e aquela presença tranquila, que parecia preencher todo o ambiente sem fazer esforço algum.
E ele falou comigo... falou comigo como se eu fosse... normal. Como se fosse natural me notar naquela situação ridícula, toda tremendo com a espátula na mão...
Marina cobriu o rosto com as mãos, envergonhada e emocionada ao mesmo tempo.
Ela sempre soube que nutria um amor impossível. Sempre soube que era algo unilateral, distante, quase infantil.
Um amor alimentado por entrevistas, personagens, dublagens, trechos de bastidores - coisas que ela sabia que não significavam nada no mundo real.
Mas hoje...
Hoje o mundo real tinha colidido com tudo aquilo.
E o impacto ecoava dentro dela como um terremoto silencioso.
Virou-se de lado, abraçando o travesseiro.
A sensação do olhar dele não saía de sua mente - aquele olhar que havia demorado um pouco demais, como se estivesse tentando entender quem ela era.
Como se a visse.
E isso... isso mexeu com ela de um jeito que Marina não sabia explicar.
- Não cria expectativa, Marina... - disse para si mesma, embora até sua voz interna soasse pouco convincente. - Ele só foi educado...
Mas quanto mais tentava se convencer disso, mais a lembrança do sorriso dele se intrometia entre seus pensamentos, desarmando qualquer resistência emocional.
Ela virou para o outro lado, tentando encontrar uma posição confortável.
Não encontrou.
Suspirou, frustrada e ao mesmo tempo... feliz.
Porque, apesar de saber que estava sendo boba, apesar de saber que deveria colocar os pés no chão...
A sensação era boa demais para afastar.
Era calor que corria pelas veias.
Era esperança sussurrando baixinho.
Era a sensação de que algo dentro dela havia despertado de um longo sono.
E mesmo que nada acontecesse...
Mesmo que nunca mais trocassem uma palavra...
Aquele encontro já tinha deixado uma marca que não seria apagada tão cedo.
Com um sorriso bobo no rosto, Marina finalmente fechou os olhos - sabendo muito bem que aquela seria a primeira de muitas noites em que Kaito Hayami invadiria seus pensamentos.