A velha senhora curvou os ombros. Tinha consciência de que as opções haviam terminado. Sentia o peso da idade. Porém não havia vivido esse tempo todo, enfrentado tantos contratempos e mortes, apenas para ver a família Hawthorne extinguir-se.
Seu neto não seria a causa desse desaparecimento!
O som de um barulho à porta fez com que ela se endireitasse. Não mostraria ao mundo nenhum sinal de fraqueza. Se fosse o neto, pretendia ralhar com ele. Mas era somente o mordomo, com a correspondência.
A condessa ficou tentada a ignorar tudo, pois sabia o conteúdo das missivas. Palavras de simpatia de velhos amigos. Preocupação dos menos chegados, apesar das insinuações veladas sobre o destino do condado.
A mulher virou a cabeça, relutante em lê-Ias. Hesitou por um momento e mexeu-se na poltrona.
- Traga meu atril - ela falou, brusca. Ela nunca recuava diante de uma tarefa difícil e nem pensava em começar a fazê-Io. Não somente leria todas as cartas, como também as responderia. As que lhe parecessem sinceras, usaria um tom leve e tranqüilizador. Às outras, imprimiria uma polidez cáustica que retribuiria as desconsiderações.
A tarefa não foi agradável, mas uma carta de Theodosia, uma prima insípida, chamou-lhe a atenção. Theodosia gostava de fazer troça e não era muito inteligente, mas escrevera algo que chamou a atenção da velha condessa. Era um pedido relacionado à srta. Chloe Gibbons, de Suffolk:
Querida prima,
Gostaria de pedir-lhe que encontrasse uma colocação decente para essa jovem, como governanta ou dama de companhia. Ela ficou à beira da falência com a morte de seu pai, o barão Tindale. Deve lembrar-se dele. É o mais velho de William. Ele não foi abençoado com filhos. O baronato está sendo passado para um sobrinho que, infelizmente, não encontrou serventia para ela.
Era um acontecimento bastante corriqueiro e a condessa não se preocupava com isso. Mas dessa vez, ela hesitou. Lembrava-se da jovem como uma criatura estudiosa que nunca havia freqüentado os círculos sociais.
Era calma e carinhosa, fato que o pai utilizara inadequadamente. Criara a filha como um cordeirinho, quando deveria ter-lhe conseguido um marido.
Tarde demais. Mas quem sabe a jovem poderia empregar suas habilidades em algum lugar?
Passou pela cabeça da velha condessa uma idéia, desprezou-a de início, mas depois tornou a considerá-Ia. Era uma medida extrema, de quem já esgotara todas as possibilidades. Um sorriso curvou-lhe os lábios.
Mergulhou a rêmige na tinta e iniciou a resposta para Theodosia.
[...]
Chloe Gibbons espiou a elegante casa de campo que se descortinava à sua frente e teve vontade de voltar.
Do coche, ela já notara que Hawthorne Park era uma grande propriedade. Gramados imensos se estendiam à distância, em direção a árvores altas, belas grutas e lagos que pareciam pintados. Passeios de cascalho muito limpos e relva aparada. Uma infinidade de plantas e arbustos artisticamente plantados.
Aquilo já era bem imponente. E o que dizer da mansão? Em estilo francês, ostentava fileiras e mais fileiras de janelas em pedra polida. Como é que ela viera parar ali?
Chloe engoliu em seco, com saudade de sua cabana velha e aconchegante. Mas o chalé não lhe pertencia e seus novos ocupantes não tinham lugar para ela. Também não podia permitir-se ter sua própria casa.
Sempre se sentira fora de seu ambiete, por ocupar o lugar intermediário entre as classes inferiores e os nobres que estavam fora de seu alcance. E até aquela altura, Chloe permanecera realmente à deriva, sem ter para onde ir, até receber a mensagem da condessa de Hawthorne.
Para os parentes não muito nobres de Chloe, a viúva, condessa de Hawthorne, era admirada como uma mulher bem-educada, de família não muito importante, mas que pelo casamento se tornara rica e privilegiada. Chloe, que a havia encontrado apenas uma vez, tinha um ponto de vista menos entusiasmado. Lembrava-se de uma velha senhora, altiva, que dava ordens a todos, fazia pedidos ultrajantes e parecia uma cabra.
Claro que ela ficara temerosa de servir a fidalga, como dama de companhia paga. Mas que outra escolha lhe restava? Os parentes acharam a oferta uma dádiva de Deus, então... ali estava ela. Determinada a fazer o melhor que pudesse, em um posto tão inferior.
Chloe suspirou e tentou animar-se. O lugar não podia ser tão grande como parecia. Aliás, era melhor que fosse. Assim, poderia manter a distância entre ela e a empregadora. Entretanto, continuava sem entender o que a velha senhora pretendia com ela. A mulher tinha servos às suas ordens em quantidade. Para que precisava de Chloe Gibbons?
Theodosia, sua tia-avó, dissera que a condessa tomara conhecimento da reputação de Chloe para cuidar de enfermos. Mas ela duvidava que a mulher precisasse de qualquer tipo de ajuda, apesar da bengala.
Chloe sempre fora chamada de santa por cuidar do pai, o que não se mostrara uma tarefa fácil. O pai não era exigente e se mostrava agradecido pela ajuda da filha, principalmente depois da gota que o impedira de andar. Mas ela não se ressentira da dedicação.
Alguns parentes diziam que deveria aproveitar as temporadas, mas o dinheiro era curto e não havia mais ninguém para cuidar do pai. De qualquer forma, ela não se entusiasmava com vestidos caros e festas. Preferia ficar no sossego do lar, desfrutando do aconchego da lareira e da beleza do jardim.
Chloe tornou a suspirar, ante a ironia. Nada podia estar mais longe do pequeno mundo que ela apreciava, do que a sede histórica do condado de Hawthorne. O grande esplendor revelava uma herança de riqueza, poder e privilégio, muito além de seus objetivos.
Embora as terras circundantes denotassem quietude e beleza bucólica, ela não era tão ingênua a ponto de acreditar que haveria paz para uma empregada da condessa. Chloe foi levada a seus aposentos por uma criada jovem e tagarela, que se mostrou contente de ter alguém novo na casa. Teve de admitir que a mobília do dormitório enorme, da sala e do quarto de vestir era muito bonita.
Foi até agraciada com o luxo de um banho, necessário após a viagem prolongada, e com a assistência de outra criada para ajudá-Ia a vestir-se para o jantar. No conjunto, a sua chegada transcorreu tranqüilamente. Era hora do jantar. O momento do temido primeiro contato com a condessa.
Chloe ergueu, o queixo e as saias pretas do vestido de luto. Determinada a dar o melhor de si, iniciou a descida da escada íngreme e sinuosa que dava no vestíbulo de mármore. No meio do caminho, ouviu o som de passos e o ruído inconfundível do clique de uma bengala. Apesar da tentação de voltar para o quarto, ela continuou a descida. Era melhor aprender logo como comportar-se diante da dama imperiosa.
Chloe chegou ao pavimento inferior, sem levantar os olhos. Assustou-se, quando foi detida por uma bengala que não pertencia à condessa. Quem a empunhava era um homem. E que homem! Era certamente o espécime mais perfeito da face da terra.
Alto e espadaúdo. Magro e rijo. As madeixas loiras eram revoltas e pareciam iluminadas pelo sol. Ela perdeu o fôlego. Os olhos verdes daquele homem, profundos e misteriosos atingiram-lhe o coração.
Ele era tão bonito, que poder-se-ia dizer que parecia quase efeminado. Mas o contorno do rosto, o queixo forte e a expressão sofrida, creditavam-lhe forte masculinidade. Chloe, que não era de impressionar-se com belas fisionomias, ficou presa no lugar, incapaz de fazer mais nada, além de fitar o desconhecido que abaixava os supercílios com ar sombrio.
Ela saiu daquele transe com o barulho de uma segunda bengala. ,A condessa parou ao lado do cavalheiro vestido com elegância e também mirou Chloe com curiosidade.
- Ah! Então está aí, jovem! - A viúva analisou Chloe
mais de perto e voltou-se para o homem. - Hawthorne, quero que conheça a srta. Chloe Gibbons.
- Kit. Meu nome é Kit - ele afirmou, estreitando os olhos verdes.
A condessa emitiu um som reprovador, antes de encarar Chloe novamente.
- Meu neto, Hawthorne, que tem aversão por cerimônias. Pode chamá-lo de Kit, pois a srta. tem laços com a família, embora distantes. Chloe é parente da prima Theodosia e ficará conosco.
Kit, que Chloe deduziu ser o conde, não pareceu entusiasmado com a novidade.
- E em que condições? - ele resmungou, de maneira insultuosa.
- Não é de sua conta. Ela está aqui e pronto.
- Ah, mas é sim. Pensei que tivéssemos concordado que a senhora desistiria de comandar minha vida. E que iria parar com o desfile de pretendentes jovens e aceitáveis, embora eu duvide de seu julgamento neste caso.
Kit fitou Chloe com insolência, de alto a baixo. De repente, ela se deu conta de sua aparência. Uma jovem simples, vestida com um modelo ultrapassado e tingido de preto por causa do luto, embasbacada com tudo. Mesmo com os cabelos arrumados pela criada, Chloe entendeu que, lamentavelmente, não combinava com a casa luxuosa do conde.
- O que queria que eu fizesse? Mandar a jovem embora? - a condessa indagou. - Ela não tinha mais nenhum lugar para onde ir. A propriedade de seu pai está vinculada e vai para um sobrinho tratante. Ela foi praticamente destituída! Quer que a mande para o asilo de pobres?
As faces de Chloe tornaram-se escarlate. Embora consciente de sua situação precária, não queria que a lembrassem disso e ainda mais, publicamente.
- Se houver algum problema em empregar-me aqui, posso procurar em outro lugar - declarou, com orgulho.
A velha senhora desdenhou e o neto fitou a recémchegada com olhar penetrante, certamente aprendido com a avó e destinado a espantar o inimigo. Chloe não se deu por achada, mas lembrou-se do que sabia sobre o atual conde. Era um herói, como todos os que lutaram na longa guerra e a sua bengala atestava os sofrimentos por que passara. Fitou a perna dele e enterneceu-se.
- Se a srta. está pretendendo pescar uma posição de condessa, posso assegurar-lhe que não estou procurando uma esposa! - Kit esbravejou, apagando qualquer traço de simpatia por parte de Chloe.
- Esposa?! - a viúva exclamou. - Quem é que falou nisso? Ela é uma dama de companhia!
Por um momento, Chloe esqueceu o próprio embaraço. Fitou a dama e o neto envolvidos em uma luta de vontades, que não parecia ser nova. Imaginou uma luta de bengalas, se essas fossem as armas escolhidas, e balançou a cabeça. Tornava-se claro que dali para a frente teria de conviver com dois temperamentos fortes. Ergueu a cabeça, passou por ele e dirigiu-se para onde pressupôs fosse a sala de jantar.
Infelizmente, ela se enganara.
- Por aqui!
Duas cabeças indicaram o caminho certo e Chloe teve de segui-Ias, temendo ser castigada com uma das armas, se não o fizesse. Mal havia dado alguns passos, quando a voz contundente da velha condessa a fez parar.
- Hawthorne, leve a srta. Chloe até a sala de jantar - a dama ordenou.
O conde, que ia à frente apesar da claudicação, estacou e voltou-se, carrancudo. Por um momento, Chloe pensou que ele fosse protestar e preparou-se para recusar. Ela podia ser apenas a filha de um barão, mas conhecia as regras de etiqueta. O conde deveria escoltar a condessa. Mas não pretendia discutir tão cedo com sua empregadora e por assuntos tão banais. Perma- neceu simplesmente à espera de que ele estendesse o braço para ela.
Chloe foi afetada pela proximidade, de uma maneira peculiar e inesperada, mesmo sem fitá-lo. Quando o tocou, a corrente entre eles foi até os dedos dos pés. Sentiu calor e uma espécie estranha de languidez. O que a deixou ansiosa para fugir, mas relutante em soltar-se.
Eles andaram devagar por causa da bengala e Chloe lamentou ser uma carga adicional. Essa simpatia logo desvaneceu-se, ao perceber a alegria do conde ao soltar-lhe o braço.
Ele observou-a sentar-se, com um resmungo. Foi até seu lugar em uma das extremidades da mesa longa, que estava posta com belos pratos. Herói ou não, parecia um nobre típico, arrogante demais para tomar conhecimento dela. O que fez do jantar um acontecimento interminável e canhestro.
Embora a comida fosse deliciosa, muito mais variada e sofisticada de todas as que ela conhecera, a conversa não se sustentou. A velha condessa gritava qual um macaco, o conde permanecia mergulhado em si mesmo e Chloe não sabia o que fazer. Logo tornou -se claro que a distância entre Kit e sua avó ia muito além da distância que os separava, nas cabeceiras opostas da mesa.
Por um momento, Chloe desejou estar em ambiente menos carregado e em companhias mais agradáveis. Teve saudade de seu pai, que discutia com ela assuntos variados, sempre de modo inteligente e agradável. Logo tratou de afastar a melancolia e decidiu mudar a situação que não lhe agradava.
Discorreu primeiro sobre a viagem, tentou não recuar quando a viúva interrompeu-a com uma altercação paralela e voltou-se para o novo lar.
- Estou encantada com o interior de Yorkshire - ela afirmou, com sinceridade.
- Ah! Só se fosse uma fázendeira ou leiteira - a outra fez pouco-caso.
Mas Kit pareceu um tanto mais animado, talvez para contrapor-se ao desdém da avó.
- Já viajei muito e nunca vi terras como essas, principalmente no outono - ele declarou.
- Estou ansiosa para conhecer os arredores - Chloe admitiu, sem ter certeza se as suas tarefas lhe deixariam tempo livre. Era evidente que a condessa Hawthorne não iria escalar colinas e nem percorrer os vales. - Imagino que deve haver muitos passeios para serem feitos por perto. Hawthorne Park tem uma paisagem belíssima.
- Ela foi idealizada por Capability Brown em pessoa e penso que deve ter custado muito dinheiro - a condessa explicou, com uma ponta de orgulho. - Naquele tempo, as pessoas gostavam de jardins extensos e bem cuidados. Não dessa confusão selvagem de hoje em dia.
- Talvez os gostos tenham mudado, mas não se pode negar que este é o melhor trabalho de Brown - Kit acrescentou.
Chloe fitou-o, surpresa. Ainda que ele falasse casualmente, ela pôde perceber o mesmo orgulho permeando-Ihe as palavras. Talvez a velha condessa e o neto não fossem tão diferentes.
- Bem, se está tão enamorado de tudo isso, por que não leva ChIoe para um passeio depois do jantar? - a condessa sugeriu, causando um certo desconforto a Chloe.
Embora conhecesse o conde muito pouco, sabia que ele recusaria.
- Já está muito escuro, não vai dar para ver nada - ele confirmou as suspeitas de Chloe e mudou imediatamente de assunto.
- Pode levá-Ia amanhã, quando houver luz suficiente - A fidalga não se deu por vencida e encarou a ambos, como se fizesse planos. Mas bastou fitar a expressão implacável de Kit, para Chloe entender que a opinião dele era bem diferente. Na verdade, supôs que ele desapareceria, antes de mostrar qualquer traço de hospitalidade.
Sentiu-se ferida pela rejeição evidente, o que deixou-a ainda mais solitária. Era natural.que procurasse um amigo por ali. Mas seria melhor eliminar Kit como uma possibilidade. Não tencionava perder tempo com um conde carrancudo, agressivo e mal-educado.
Para comprovar a suspeita de Chloe, Kit saiu da mesa sem muita educação, desobedecendo as ordens da avó para reunir-se a elas no salão grande. Ele ignorou-a de tal maneira, que Chloe nem se preocupou em desculpar-lhe a grosseria.
Ela conhecia pessoas que haviam voltado da guerra muito mais feridas. Homens que regressaram para nada e ainda assim mantinham a civilidade. E ali estava um homem atraente, rico e privilegiado, que não passava provações e nem miséria, mas que não sabia comportar-se dentro de sua própria casa.
Chloe começava a pensar que não gostava de Kit Armstrong, o conde de Hawthorne, ou fosse lá como ele gostava de ser chamado.
- Vá! Vá atrás dele! - a viúva interrompeu-lhe os pensamentos e surpreendeu-a. - Ele provavelmente irá fazer uma caminhada. Não é o que queria, jovem?
Seria esse um tipo de humilhação?, Chloe refletiu. Se fosse, não a aceitaria.
A órfã empinou o queixo e calmamente adoçou o chá, sem demonstrar interesse.
- Acredito que milorde deixou bem claro que não quer a minha companhia.
- Ah! Esse menino não sabe o que quer! - a viúva respondeu, com uma batida da ponta da bengala. - A srta. foi contratada como dama de companhia. Vá desempenhar seu serviço!
Chloe estacou. Não! Certamente não entendera as palavras da condessa.
- Estou aqui para ser sua dama de companhia -
Chloe enfatizou.
O encargo já seria bastante desagradável, sem aquelas disputas entre avó e neto.
- Eu a empreguei, mas não exatamente para mim. Acha que eu preciso disso? Quero que observe meu neto.
Que o distraia desse mau humor em que está mergulhado, desde que voltou para casa.
Chloe ficou inquieta, mas decidiu dar à dama o benefício da dúvida. Afinal, a outra era idosa e talvez a preocupação com o neto a tivesse deixado perturbada.
- Acho que um homem seria muito mais conveniente - Chloe sugeriu, com gentileza.
A viúva bateu a bengala de novo.
- Acha que já não tentei? Ele não quer ver seus velhos amigos e nem os companheiros de Exército! Não se interessa por nada e nem por ninguém.
- Sinto muito. - Chloe estava pesarosa com o sofrimento do conde, mas o que poderia fazer? - Não entendo o que milady espera de mim. Ele também me evita.
- Ah, mas a srta. é mulher - a viúva comentou, um tanto maliciosa.
Chloe retesou-se, rejeitando a indireta. Já ouvira falar em dissabores que atingiam mulheres jovens em situação difícil, mas não esperava vir a ser uma delas. Como também não aceitava cair em desgraça, sob a responsabilidade única da condessa de Hawthorne. Não se considerava nenhuma tola.
Ainda que se considerasse uma solteirona para os padrões da época, não ignorava totalmente o que se passava entre um homem e uma mulher. Era, apesar de tudo, instruída. O simples pensamento de participar de uma atividade ilícita com o conde de Hawthorne era horrível e ao mesmo tempo agradavelmente excitante. Chloe estremeceu ao lembrar-se do toque da mão dele em seu braço, mas assim mesmo endireitou os ombros.
- Receio que tenha havido algum mal-entendido. Gostaria muito de servir a milady como dama de companhia, mas não pode esperar que eu exerça a mesma função com um homem da casa.
- Ah! Não estou lhe pedindo para dormir com ele - a viúva retrucou, áspera. - Quero apenas que o anime um pouco.
Chloe respirou, um pouco mais aliviada. Ainda assim, não deveria consentir.
- Contudo, é uma atitude inteiramente inadequada.
- Ah! Não é certo ajudar um parente? Ele não pode mandá-Ia embora, por que a srta. não tem para onde ir. Está aqui por um dever de família, minha jovem, e será bom que entenda isso!
Chloe franziu o cenho, mas não se abalou com a impertinência da velha senhora. A viúva certamente pensava que era muito esperta por contratar uma parente falida.
Mesmo nesse caso, Chloe não via como poderia ajudar. O conde não era enfermo, pelo menos fisicamente, ela pensou, corando ao lembrar-se de sua vitalidade aparente. E sem conhecer-lhe a personalidade antes dos ferimentos, como podia fazê-Io voltar ao que era? O homem era tão sisudo, que seria preciso muito mais de que um sorriso e algumas palavras de coragem para suavizá-Io. Principal- mente alguém cuja presença ele execrava.
Em contrapartida, Chloe sentia uma simpatia genuína pela situação difícil que Kit enfrentava. Era raro uma mulher ou um homem não conhecer alguém que fora ferido ou morto na guerra. Chloe sabia que deveria fazer o que pudesse por esses heróis, mesmo sem ter idéia do que eles haviam sofrido nas batalhas.
- É natural que ele fique deprimido, pelos horrores que deve ter visto e que nós nem po- demos imaginar quais sejam - murmurou.
- Hawthorne não é o único! Guerra é guerra! Ele tem de esquecer isso e assumir suas responsabilidades.
Chloe entendeu o porquê do distanciamento entre avó e neto. Mas a compaixão a fez achar que ele não podia ser melhor. Lembrou-se de que Kit assumira o título com a morte recente do irmão. Será que ele tivera um período adequado de luto? Chloe tivera uma experiência semelhante. Ainda sentia muita dor com a falta do pai.
- Ele sofreu outras perdas - comentou, em voz baixa.
- Meu neto tem tido alguns contratempos, alguns revezes - a velha condessa admitiu, mordaz. - Por exemplo, aquela jovem idiota por quem estava tão apaixonado. Imagine, eu lhe disse que ela não passava de uma tola mimada, embora fosse filha de um duque. Mas ele não me escutou. Propôs-lhe casamento antes de partir e quando voltou, ela achou que não gostava do novo corte da roupa dele!
- Eles estavam noivos? - Chloe perguntou, espantada.
- Ah! Se é que pode falar assim. Um engano de juventude, eu diria, e dos grandes!
Chloe achou a notícia perturbadora. Claro, um homem atraente como Kit devia gostar de mulheres belas, elegantes e da mais alta linhagem. No âmbito da experiência limitada de Chloe, ela as conhecia como paparicadas, esnobes e insensíveis. Mas pensar que uma dessas criaturas fúteis pudesse ser tão cega e cruel, a ponto de rejeitar um herói de guerra apenas por ele ser manco?! Não podia aceitar isso. E o mais estranho foi ela cogitar se ele a amara.
Será que ele estaria sofrendo por amor?
- Aquela moça lhe fez um grande favor ao deixá-Io. - A condessa afastou a preocupação de Chloe com um gesto dos dedos cheios de anéis. - Embora meu neto não possa entender isso agora... Está por demais afundado em suas tristezas. Demais - ela murmurou.
O tom de voz baixo fez Chloe esquecer suas reflexões e fitar a velha senhora, mas a outra desviou o olhar. De repente a fortaleza da fidalga pareceu evadir-se, deixando em seu lugar uma anciã cansada, magra e frágil. - Meu marido era um pouco... taciturno - ela comentou, devagar. - Ainda que meu filho não tenha herdado a tendência à melancolia do pai, posso ver esse traço em Christopher. E eu não gostaria que esse mal o dominasse.
A condessa bateu a bengala com força, mas Chloe pôde ver nela o desamparo e a frustração, por isso as palavras ásperas e violentas não tiveram o mínimo efeito em Chloe.
O vislumbre da real personalidade coberta pela fachada feroz da viúva fizeram-na considerar a proposta. Com um suspiro, Chloe tentou avaliar a lógica da fidalga. Teria a noiva mergulhado Kit na escuridão? Ou ele teria uma predisposição para exagerar sentimentos? O que a avó tentara fazê-Ia entender? Qual a profundidade de sua depressão?
De repente, Chloe arrepiou-se, antes de expressar o que sentia.
- A senhora não está imaginando que ele possa... matar-se, está? - ela sussurrou.
A questão trouxe-a de volta a si mesma e a viúva bateu com a ponta da bengala, com vigor renovado.
- Claro que não, minha jovem. E espero que a srta.
não permita que ele o faça.