Ele atravessou a vereda e seguiu pelo gramado, caminhando com dificuldade. A perna entrevada reagia à umidade fria do ar. Ele estremeceu, rangeu os dentes e continuou andando para longe da mansão.
Talvez a avó estivesse tentando apenas um tipo diferente de isca e admitiu que a recém- chegada era bastante atraente. A condessa já congregara ao redor do neto as belezas mais marcantes da temporada anterior. Com feições e educação perfeitas, olhos cúpidos...
Sabia muito bem que a maioria teria dado boas risadas ante uma proposta do capitão Kit Armstrong. Mas o casamento com o conde de Hawthorne, independente dos defeitos que ele pudesse ter, traria a elas a posição e a riqueza que desejavam. A ânsia de poder estava entranhada nos ossos de todas.
Kit podia facilmente imaginar a vida ao lado de uma, dessas jovens. Depois de um tempo, ela iria para Londres, teria uma fileira de amantes e deixaria o marido aleijado para trás.
Ele rejeitara todas que desfilaram à sua frente como gado reprodutor à espera de uma medalha, o que deixara a avó furiosa. Quando a viúva parou de repisar sobre os deveres para com as propriedades, iniciou os discursos sobre a necessidade de conseguir um herdeiro. Kit não achava necessário informá-Ia de que estava em perfeitas condições de escolher uma esposa por si mesmo e cuidar da progenitura. Mesmo sem ter certeza de que no segundo item tudo continuava normal, isso não o preocupava.
Ele estivera muito ocupado em lutar pela sobrevivência, voltar a andar e retornar à sua casa. Mas desde que chegara, as esperanças de retomar uma existência razoável haviam naufragado. Não somente pela morte de Garrett, mas também pela recepção de Júlia.
Filha de um duque, não precisava de um condado, caíra de amores pelo oficial vistoso que ele havia sido. Porém, Kit sofrera mudanças motivadas pela guerra, o que não a agradou nem um pouco. Ele não somente perdera a irreverência da juventude, como também o pleno uso de um de seus membros.
Kit jamais esqueceria de suas palavras, em pé, na frente dele, no grande salão, impassível: Eu quero um homem inteiro, Christopher, Júlia dissera. Rompera o compromisso e destruíra qualquer desejo que ele pudesse ter pelo sexo oposto. Ele tornara-se frio e começara a suspeitar de que os fetimentos haviam-no afetado de uma outra maneira. E para sempre.
A sua visão continuava funcionando perfeitamente.
Não podia negar que a srta. Chloe Gib- bons era encantadora. Talvez seu gosto houvesse se apurado ou a proximidade da morte lhe trou- xera algum bom senso. Qualquer que fosse a razão, Kit não se importava mais com as loiras insensíveis, das quais sua noiva era uma das representantes. Seu estômago também não agüentava mais conversas inconseqüentes e nem as propostas de mulheres mais corajosas.
Em resumo, o interesse vivo pelas mulheres terminara. Mas Chloe, com suas roupas sim- ples e suas maneiras tranqüilas, era muito atraente. Transmitia uma sensação de conforto e segurança.
Não era exatamente o tipo feminino que ele perseguira outrora, Kit pensou, com amargor.
Lembrou a si mesmo que ela estava ali a pedido de sua avó, por algum motivo escuso.
Ou talvez não tão escuso.
Nisso, ele a viu, saindo da mansão. Vinha apressada em sua direção, sem parecer importar-se com os efeitos da grama molhada na barra de sua saia.
Isso não é típico de uma mulher.
Mesmo assim, não teria paciência para tolerá-Ia. Como Kit não podia andar depressa, Chloe acabou por alcançá-Io. Humilhado, ele encarou-a com rudeza.
A moça não pareceu incomodar-se com a falta de cortesia e saudou-o alegremente, assim que se aproximou.
- Olá! - disse, meio sem fôlego.
Ela, sempre de preto, trazia um xale sobre os ombros. Kit achou que se comovia pela po- breza das roupas da jovem. Mas por que isso? Quais os objetivos de sua avó? Não podia acre- ditar que a velha condessa pretendesse casá-Io com a parente destituída e enlutada.
Mas se não era isso, então o que seria? Kit estudoua, com olhos apertados. Não era nenhuma beldade, embora o rosto não tivesse defeitos. Pele clara, sobrancelhas perfeitas e os olhos castanho-escuros eram sombreados por cílios espessos. Os cabelos eram do mesmo tom dos olhos, longos e sedosos. E naturalmente ondulados, ao contrário da moda de cachos das damas londrinas. Ela os trazia presos de maneira simples e ele imaginou como pareceriam soltos sobre o busto. Kit fitou de soslaio as curvas suaves.
Mas o que é que elas pretendiam?
Furioso com as duas e consigo mesmo, ele virou-se para voltar.
- Espere! Pensei que pudesse mostrar-me os arredores - ela declarou, tocando-o na manga.
De novo.
Kit sentiu outra vez aquele arrepio que o acometera na noite anterior, quando fora obrigado a conduzi-Ia a sala de jantar. Então não fora imaginação sua. Era uma centelha de calor que lhe permeava o frio interior. E como tal, não era bem-vinda. Ele puxou o braço e afastou-se, sem uma palavra. Mas Chloe seguiu-o.
- Aonde vai? - ela perguntou, com uma calma irritante.
Ou aquela moça era ignorante, ou inconsciente, ou não tinha modos. Será que era mesmo uma parente ou seria alguma infeliz que a avó havia contratado na rua? Embora tivesse de admitir que seu modo de falar indicava uma criação de boa estirpe. E como será que perdera a herança? Kit tornou a virar-se e encarou-a, disposto a ser o mais grosseiro possível.
- Vou para meus aposentos. Sozinho. - Ele lançoulhe um olhar duro. - Ou será que pretende seguir-me até lá?
- Mi... milorde, por favor! - ela tartamudeou, sem saber o que responder.
Kit estreitou o olhar mais uma vez. Suspeitava saber por que a srta. Chloe estava ali, em- bora isso o desapontasse.
- Pensei que já houvesse entendido que meu nome é Kit - ele declarou, com uma voz macia que não empregava há anos. - Afinal somos parentes, ou não somos?
- Ah, claro que sim - ela parecia agitada -, Kit.
Ela passou a língua nos lábios, como se fosse um gesto inocente. Mas Kit não se deixou enganar. Avançou devagar, com o andar mais afetado que lhe permitiu a coxeadura. Ela arregalou os olhos mas não se afastou, o que confirmou a suspeita dele. Kit ergueu o braço livre e apoiou-o na árvore atrás dela. Inclinou-se para a frente, aprisionando-a.
- Muito bem.
O rosto dele estava a milímetros do de Chloe. Pelo visto a avó planejara com critério. O luto faria parte de alguma encenação? E por que estava tão curioso? Não lhe importava saber nada sobre aquela mulher ou qualquer outra! E nem sobre nada!
- Por que não evita uma perda de tempo para nós dois e diz logo o que pretende? - Kit empregou um tom sedutor.
- Bem, um passeio pelos gramados poderia ser agradável - ela respondeu com voz baixa que lembrava sedução.
Kit fez ar malicioso de desaprovação.
- Talvez eu devesse reformular a questão. Chloe, por que simplesmente não me conta a natureza de sua tarefa? - Ele ergueu as sombrancelhas e foi brindado com um olhar tímido e revelador.
- Entendo - Kit murmurou. - Até onde pretende levar seu papel de dama de compa- nhia? Aos meus aposentos? Até minha cama? Ou será que teremos de aborrecer-nos com tais picuinhas? É simples. Basta levantar a saia e resolveremos o assunto aqui mesmo.
Kit maravilhou-se por ela ainda corar. Mas quando sentiu o calor que emanava do rosto de ChIoe, afastou-se da árvore, com um olhar gélido.
- Se foi contratada por minha avó para servir-me, receio ter de desapontá-Ia.
Chloe piscou e pareceu tão chocada, que ele foi levado a pensar que se tratava de uma atriz.
- Bem? Corra e diga à condessa que falhou em suas provocações - Kit advertiu-a.
Ela pareceu não entender o significado das palavras, mas, de repente empalideceu, embora as manchas vermelhas permanecessem no rosto.
- O senhor não está pensando que sou uma... - hesitou, incapaz de terminar a frase.
Kit admirou-lhe a técnica. Talvez ela fosse daquelas que bancavam a virgem ultrajada para vários clientes. Ainda que Chloe estivesse prolongando demais a brincadeira, ele sabia que muitos cavalheiros gostavam e pagavam por isso.
- E por que sua avó - ela continuava atrapalhada - contrataria uma mulher de moral duvidosa para... - ela interrompeu-se de novo, como quem não sabia o que dizer.
- E por que não? - Kit deu de ombros. - Ela está tão aflita para ter um herdeiro... Só posso supor que ela não se importe de onde venha a criança.
Chloe não conseguiu conter-se e esbofeteou-o. Para alguém acostumado às batalhas, Kit foi pego de surpresa pelo tapa. Talvez seus reflexos houvessem ficado mais lentos ou, mais exata- mente, ele não se importasse mais. Mas era evidente que ele não esperava uma resposta dessas. Cauteloso, levou a mão à face ardente, enquanto a observava afastar-se com um ressentimento que não parecia fingido.
Será que me enganei a respeito dessa senhorita? Será que minha avó também cometeu o mesmo erro?
Após alguns instantes, superada a surpresa do tapa, concluiu que qualquer que fosse o motivo da jovem estar ali, ela era voluntariosa o bastante para não aceitar as maquinações da velha condessa.
Tratou de afastar a curiosidade que tornou a invadi-Io. Mas então, no ar frio da manhã, ele chegou a lamentar o fato de haver afugentado a primeira pessoa que começava a interessá-Io, depois de tanto tempo.
[...]