Tentou não pensar na reação dos parentes, quando voltasse para junto deles. Nenhum deles tinha lugar para ela, mas haveria de encontrar outra colocação. Ela não titubearia em aceitar um trabalho mais pesado em uma casa menor, menos luxuosa, porém mais respeitável.
Na verdade, sabia que estava melhor preparada para enfrentar com bravura a ameaça da pobreza, do que ter de escutar mais um insulto dos lábios do conde de Hawthorne! E também não lhe importava como aquela boca era atraente!
O fato de quase ter se derretido aos pés dele nada tinha a ver com sua aflição, Chloe disse a si mesma.
Ela não estava habituada às maneiras dos homens mundanos, bonitos e nobres. Por isso poderia perdoar-se por agir como uma desmiolada, quando ele se inclinara... perto demais. Deslumbrando-a com os cabelos loiros, os dentes brancos e os olhos mais verdes do que uma floresta densa.
Ah! Podia até desculpar-se, mas já tinha idade suficiente para saber que um homem como aquele não podia estar lhe fazendo a corte! E ainda por cima ter demonstrado languidez, enquanto as insinuações tornavam-se cada vez mais absurdas.
Chloe sacudiu a cabeça àquela insanidade. Respirou fundo, para afastar o insulto de sua mente e concentrou-se em dobrar os poucos vestidos. Mal havia começado, quando a porta abriu-se, sem que ela houvesse escutado uma só batida. Chloe virou-se, esperando ver o conde preparado para exigir o que fora insinuado ainda há pouco no gramado. Mas era a viúva que estava na entrada, feroz e carrancuda.
- Quer dizer que já está fugindo? Pensei que fosse
uma mulher de fibra!
Mesmo sem ser convidada, a velha senhora entrou e aproximou-se com ar desaprovativo. Sem ao menos perguntar o que acontecera, ela continuou a repreender Chloe.
- Não me interessa saber o que se passou, mas suponho que ele deve ter menosprezado seus delicados sentimentos! - a mulher ironizou. - Ah! Pensei que as moças do campo tivessem mais energia do que aquelas londrinas afetadas que desmaiam por qualquer coisa. Claro, ele foi rude e desumano! Mas ele trata todo mundo dessa maneira!
Chloe nada disse, mas desconfiou que o conde de Hawthorne devia ter aprendido a agir daquela maneira com a avó.
- É assim que ele afugenta todas. Não lhe contei que ele afastou-se de todos os conhecidos? - a condessa perguntou, batendo a ponta da bengala no chão.
Chloe não se assustou. Já se acostumara àquele ruído. Voltou-se para encarar sua em- pregadora.
- Contou sim.
Mas a senhora não me advertiu sobre o calor que emana dele. Nem sobre o desejo que ele consegue despertar mesmo em uma solteirona como eu. Nem sobre o constrangimento escaldante de suaa rejeição!
Chloe sustentou o olhar da outra, sem nada dizer.
Com um resmungo abafado, a velha senhora virou-se para a porta, não sem antes lançar um desafio.
- A srta. é a minha última esperança. Não me decepcione.
Chloe teria ouvido a voz da viúva vacilar? Observando-a sair, ela pensou que a mulher não era tão desprovida de sentimentos como parecia. Nem era tão diferente do neto como pretendia ser. A fidalga arrogante jamais demonstraria o que era de verdade. E o conde?
Chloe sentou-se na beirada da cama. Considerou a questão, mesmo dizendo a si mesma que não deveria importar-se se Kit vivia escondido atrás do sofrimento, para despejar sua dor em cima do primeiro que atravessasse seu caminho. Mas aquilo lhe interessava. Qualquer ser humano com um mínimo de compaixão sentiria o mesmo. Então por que pensava em desistir? Certo, fora apanhada desprevenida pela força e pontaria do veneno de Kit, mas ela já sabia que não era bem-vinda.
Acabou entendendo que fora a própria fraqueza que a mandara correndo de volta ao quarto e à vontade de retomar a vida antiga. Chloe havia passado muitos anos escondida em Suffolk, feliz em seu pequeno mundo, sem nenhuma outra ameaça a não ser sua bolsa min- guada. Consternavaa descobrir uma vulnerabilidade até então desconhecida, ante um par de olhos verdes e uma silhueta alta, que nada perdia de sua beleza pelo uso de uma bengala elegante.
Chloe franziu o cenho. Não era de seu feitio curvar-se frente a um homem. Ela havia gentilmente dissuadido vários pretendentes em potencial, até acabar fechada em uma concha. E nenhum deles, nem mesmo Tommy Roe, a melhor pessoa que já encontrara, tivera esse poder.
Era triste constatar, mas ela devia ser uma criatura bem superficial para ser afetada por aparências e posições, em vez de por inteligência e bondade.
Mas seria o conde tão horrendo quanto pretendia mostrar-se? Chloe não podia pensar em nada pior do que a maneira como ele a enganara com voz macia e palavras suaves. Deixara-a sem fôlego, afogueada e desejosa, para depois cometer o pior dos insultos.
Ainda assim, no instante em que ele se inclinara, ChIoe pensara ter visto algo diferente em seu olhar. Uma forte desesperança que lhe trouxe vontade de ajudá-Io, no que fosse capaz. Mas não ousou especular até onde iria para fazer isso.
Ela refletiu muito sobre as suas escolhas. Afinal, não
lhe restavam muitas. Pôs-se em pé e esvaziou a mala mais uma vez. Não tinha certeza se fazia a coisa certa. Mas disse a si mesma que o fazia pelo conde e não por sua avó intragável. E, de certo, não por que precisava demais de uma remuneração. Faria apenas um esforço para retribuir alguma coisa para um daqueles homens que haviam dado tanto por seu país e que haviam recebido muito pouco em troca.
Se o pensamento de Chloe Gibbons fosse além daquela generalização para o caráter específico de Kit Armstrong, certamente o mais belo e intrigante dos homens, então seria preciso guardar melhor seu coração.
A última coisa de que necessitava era deixar-se envolver emocionalmente por um conde, sendo ela mesma apenas a filha de um barão, e ainda por cima arruinada! E, como se isso não fosse suficiente, concluiu que sucumbir à fascinação por um homem desse tipo, atormentado pela culpa, sofredor e sabe-se lá mais o quê, seria a pior loucura que poderia cometer.
Depois de advertências severas a si mesma, resolveu esquecer a própria pessoa. Era tem- po de pensar na tarefa que tinha pela frente. Servir de dama de companhia a Kit. Ele já sofrera demais e Chloe chegou à conclusão de que seu dever era ajudá-Io, da melhor maneira que pudesse.
[...]
Kit caminhou até não agüentar mais sua perna dolorida. Finalmente retomou à residência e aos seus aposentos. Pensou em jantar ali, mas o leve gosto da covardia não permitiu. Estava até acostumado às reprimendas da avó. Mas não à ferroada de vergonha que sentia a esse tratamento, na frente de convidados. E pela primeira vez em muitos meses, Kit refletiu no que se tornara.
Ao voltar da guerra, começara a perguntar-se por que sobreviver a tantos outros homens de muito valor, inclusive seu irmão. Questionara o significado da vida em si. Assunto ético e espiritual complexo que teólogos, filósofos e intelectuais debatiam há séculos. Ainda assim, a despeito da sua arrogância primitiva, Kit não encontrara respostas.
Somente mais perguntas que alimentaram a sua ansiedade crescente. A confiança irresponsável de sua juventude fora substituída por dúvidas sobre si mesmo, sua família e a sociedade na qual uma vez se incluíra sem esforço. Durante a sua recuperação, tentara conversar sobre isso com outros sobreviventes.
Suas interrogações não encontraram eco. A maioria estava contente de voltar para casa, para as esposas e filhos e queria esquecer os horrores da guerra.
Os amigos de antes não participavam de tais entrevistas. Eram muito ingênuos e frívolos, sem lugar para assuntos mais abrangentes.
Kit começou a sentir-se muito isolado, tanto pelo desgosto como pela culpa. Sua avó só piorara a situação, ao insistir que ele tomasse o lugar de Garrett, tarefa que absolutamente não desejava. Com alegria, ele teria trocado de lugar com o irmão, devolvendo a vida a ele. E essa impossibilidade o deixava triste e frustrado.
Distraído com esses pensamentos, Kit chegou ao salão. E a presença da visita indesejável trouxe-o de volta à realidade. Depois da grosséria que cometera, esperava que ela já houvesse partido. Como acontecera com todas as outras. E para sua surpresa, ela estava lá, serena como de costume. Era óbvio que aquela moça devia ser mais resistente do que a maioria. Isso ficava evidente na postura dos ombros e no olhar calmo e sincero que traduzia um temperamento estável.
Boa de briga, ele pensou, ainda que a única ameaça ali para Chloe fosse ele mesmo.
De alguma forma, vê-Ia aqueceu-lhe o coração. Kit se deteve para observá-Ia. Era uma jovem adorável, com grandes olhos castanhos e cabelos sedosos. O preto nao combinava nada com ela e ele imaginou o que Chloe vestiria normalmente. Cor de vinho, vários tons de azul e verde.
Que especulação estranha, ele cismou.
Mais estranho ainda é ele ficar ali olhando. Adiantouse e ofereceu-lhe o braço.
Por um momento, achou que Chloe iria recusar, mas ela aceitou com um aceno de cabeça.
- O senhor demorou. Deve ter muita ocupação em seus aposentos - ela comentou, sem ao menos olhá-Io.
Kit piscou. Estava tão acostumado à bajulação das outras, que a farpa dela surpreendeu-o, principalmente por vir de uma mulher que ele insultara sem motivo.
Não fugira e não aparentava nenhum rancor contra ele. Isso tranqüilizou-o um pouco e descontraiu-o. Foi até capaz de esboçar um sorriso.
- Não tanto quanto eu gostaria - Kit ouviu-se dizer.
Ela avaliou-o e tentou afastar-se, mas ele a segurou com firmeza.
- Quero desculpar-me por minhas palavras - ele segredou. - Se conhecesse minha avó tão bem quanto eu, poderia entender melhor minha suposição errônea.
Kit viu os lábios carnudos estremecerem, antes de
sorrir.
- Acho que já tive tempo para notar algumas coisas.
Kit respondeu com um sorriso largo, um pouco torto pela falta de uso. Deu-se conta de que a conduzia à sala da jantar com passos mais leves. Estava certo ao deduzir que ela não obedeceria cegamente à viúva. Imaginou se a interferência da avó a levaria a contrariá-Ia.
Ao levá-Ia até à mesa, Kit se perguntava se não havia ganho uma aliada.
Na verdade, Chloe provou isso. Para qualquer arenga da condessa, a jovem encontrava uma maneira de mudar de assunto. Na verdade, Kit começava a prestar atenção às conversas.
Enquanto Chloe falava, ele entendia que se escondera tanto ali no campo, que nem mais tinha consciência do que acontecia no mundo. Bebeu as notícias como um homem sedento.
Essa súbita curiosidade o surpreendeu. Era como se acordasse de um sono profundo. E ainda que renegasse a companhia, Kit foi atraído pela linguagem de Chloe. Culta, inteligente, defendia suas opiniões de maneira segura e educada. Parecia uma luz que aquecia o seu caminho gelado e triste.
Chloe tinha um sorriso maravilhoso. Não um daqueles falsos, encomendados na hora certa e para tirar proveito. Era um sorriso sincero, real. Vagaroso, ele florescia e revelava uma fileira de dentes alvos com uma pequena imperfeição. Kit ficou fascinado com a falha em um dos incisivos centrais. Assustou-se ao pensar como seria passar a língua ali.
Se ele a houvesse conhecido há alguns anos, teria dado o melhor de si para manter esse sorriso. Mas no auge de sua futilidade, talvez nem a notasse. O maior dos tolos. De qualquer forma, já era muito tarde. Ele poderia observar e admirar, mas era um homem morto. Não literalmente, mas bem próximo disso. Frio demais para tentar qualquer mulher.
Chloe não passava de uma digressão. Um intervalo para seu pesar e sua culpa não esque- cidos. Ela poderia ser uma ajuda na sua batalha contra os desmandos de sua avó. E era só.
Se não estivesse tão perdido no mundo, poderia até pensar em como a pequena e valente Chloe poderia ajudá-Io a enfrentar os demônios. Mas Kit já não acreditava em milagres há muito tempo.