Dama de Vermelho
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Capítulo 5 5

Kit observou Chloe desculpar-se e deixar a mesa. Os cabelos escruos dela caíam nas costas. Ele surpreendeu-se com uma sensação estranha. Chegou a pensar que fosse efeito do jantar. Apesar de sua altura, normalmente tinha pouco apetite, mas naquela noite havia comido mais. Talvez porque a conversa interessante de Chloe o houvesse distraído das arengas ácidas de sua avó.

- Menina simpática, apesar de simplória, não é mesmo? - a velha senhora perguntou, depois de manter um silêncio abençoado por alguns instantes.

Kit franziu a testa. Sabia muito bem das intenções da

avó, mas ela enganava-se em pensar que Chloe era simplória. Contudo, resolveu não discursar sobre os méritos da convidada. Apenas deu de ombros, como se o assunto não fosse de seu interesse e terminou de comer.

- Claro, ela não faz o seu gênero - a velha condessa acrescentou, maliciosa.

Ele levantou a cabeça.

- Como assim? E o que tem isso a ver com o trabalho dela aqui? - Como ela não respondesse, Kit continuou: - A menos que esteja pensando que vou desonrá-Ia.

A viúva fungou.

- Bem, eu gostaria que se interessasse por alguma coisa, nem que fosse por uma insignificância.

Kit fitou a avó com dureza.

- Ela não é insignificante.

- Claro que não.

As suspeitas de Kit se avolumaram, mesmo sabendo que Chloe não era culpada.

- A senhora contratou-a para que me seduzisse? - perguntou, sem o pesar costumeiro.

- Não! - ela gritou, mas Kit percebeu-lhe um lampejo de admissão no olhar.

- Então por que ela está aqui? Não é para ser sua dama de companhia, pelo jeito com que a colocou como isca à minha frente. E com que propósito? Responda!

O tom frio e acusador da voz do neto deixou a condessa sem resposta. Kit ergueu-se, com um resmungo de contrariedade.

- A senhora não passa de uma alcoviteira, apesar de todos os seus títulos e ares grandiosos! E também não me importo com a sua opinião a meu respeito.

Kit saiu da sala, com os membros cansados aquecidos por um calor estranho. Estava furioso não só por constatar que suas suspeitas se confirmaram, mas que a avó envolvera uma mulher inocente e adorável no esquema. Um despropósito! E pior, tratava-se de Chloe. A cabeça de Kit girava. Até mesmo seus sentimentos embotados recusavam-se a admitir o uso indigno de uma jovem honesta, ainda mais sendo uma parente!

Embora ultimamente não se agitasse por nada, Kit entendeu que não podia deixar a trama prosseguir. Claro que não pretendia divertir-se com Chloe e nem com qualquer outra. E nem poderia permitir que ela fosse usada por sua avó. A velha senhora havia ido longe demais essa vez. Conhecia-lhe as artimanhas, mas era inconcebível submeter uma bem-nascida filha de um barão a uma baixeza dessas.

A viúva merecia umas chibatadas, Kit refletiu, com uma raiva quente e inflamada.

E foi essa sensação estranha que o confundIu. Era o mesmo que perder o equilíbrio. Como se músculos em desuso voltassem à vida. Pensou em culpar a perna ferida, mas a dor insistente que ali sentia nada tinha a ver com aquele calor repentino. Deu-se conta de que ainda não experimentara tal impressão, desde que voltara para casa.

A força de sua ira abalou a inércia que se mantinha entre o pesar e a culpa.

Espantado pela revelação, Kit viu Chloe passar. Deu uma tossidela, para que ela o notasse.

- Preciso falar-lhe - ele avisou, um tanto ríspido e percebeu a surpresa na expressão dela. - Mas não aqui - ele indicou a sala de jantar próxima. - Venha comigo.

Pegou-a pelo braço. O toque trouxe mais calor e sensibilidade, e ele deixou cair a mão. Atarantado, fitou os próprios dedos. Voltou à realidade e fez sinal para que saíssem do alcance dos ouvidos da avó e dos criados.

- Vamos lá para fora - ele pediu.

Mesmo indecisa, Chloe empinou o queixo e atravessou as altas portas francesas do grande salão ao lado de Kit. Ele fechou-as pelo lado de fora, na penumbra que se avolumava, e deu alguns passos no terraço de pedra circundado por parapeitos curvos. Abaixo, ainda era possível ver os terrenos bem tratados.

Kit percebeu o ruge-ruge das saias de Chloe, que se apoiou na balaustrada.

- Isto aqui é muito lindo - ela comentou, com sua voz melodiosa.

Kit teve de esforçar-se para tirar os olhos daqueles cabelos brilhantes e fitar os arredores.

Estivera ali por noites sem conta, principalmente depois de seu retorno, admirando a beleza de Hawthorne Park e do interior de Yorkshire. Erá a única coisa que lhe trazia momentos de paz.

Ainda assim, naquela noite tudo parecia diferente. As estrelas estavam muito brilhantes. O luar mais luminoso refletia-se com maior poesia no gramado desvanecido. Que estranho. Kit sentia-se quase... humano de novo.

- É, sim. Parece uma pintura. Mas não foi por isso que eu a trouxe aqui. Novamente, que- ro desculpar-me pelo que houve de manhã. E acho que minhas suspeitas não eram totalmente infundadas.

Ela fitou-o com os olhos grandes e escuros, e Kit teve

de concentrar-se no que tinha para dizer.

- Receio que minha avó contratou-a sob falsos pretextos - ele explicou, com o olhar fixo no faial distante.

Chloe não respondeu e Kit fitou-a de relance. Os olhos escuros eram profundos, tranqüilos e confortantes.

- Ela não precisa e nem quer uma acompanhante, e também não se importa com a miséria dos parentes distantes. Apesar de seu título, ela não é melhor do que a pior das mulheres. Em resumo, srta. Gibbons, ela a trouxe aqui com a esperança de que eu a levasse para cama. Embora eu não entenda a lógica de minha avó, como sempre, só posso imaginar uma coisa. Ela pretende que, depois de retomado o vigor masculino, eu assuma todos os deveres que ela jogou sobre mim, sem protestar, graças ao seu sacrifício virginal.

Kit esperou outra bofetada ou uma expressão chocada. Qualquer coisa, menos a risada baixa, longa e embriagante que se seguiu.

Ele virou a cabeça e encarou-a. Chloe imediatamente cobriu com a mão os lábios carnu- dos, a falha do dente e o riso delicioso.

- Sinto muito, mas isso é muito ridículo.

Kit teve de admitir que era verdade. Certamente a avó

não esperava que ele se aprovei- tasse de uma parente, sem o mínimo de consciência. Ou talvez ela pensasse que o Exército houvesse apagado nele todos os códigos de ética, exceto matar ou ser morto. Ou quem sabe de- duzisse que ele era um indivíduo sem moral.

- Quero dizer, por que motivo o senhor seria tentado por uma solteirona sem um vintém sequer e insignificante? - Chloe continuou e depois riu, sem estar ofendida, como quem obser- vava a cena de fora.

- E o que a faz supor que não posso sentir-me atraído pela srta.? - Kit perguntou, curioso. - A sociedade me aborrece e não preciso de dinheiro. Logo, a sua riqueza ou posição social são irrelevantes.

Na verdade, ele fora cativado pelo riso gutural, pela promessa de conforto do olhar aveludado e pelas curvas suaves do corpo feminino. Ah, como se ele estivesse interessado em alguma dessas coisas!

- Perdoe-me, mas dificilmente eu seria o tipo de pessoa que poderia exercer atração sobre um homem como o senhor, ainda mais levá-Io a um desejo incontrolável! - ChIoe protestou.

Kit estranhou as palavras ditas de maneira tão casual. Mas era certo que havia muitos, dos chamados cavalheiros em evidência, que não hesitariam em satisfazer seus instintos com uma empregada, fosse ou não com o beneplácito de uma avó. Kit subitamente compreendeu o desamparo da bela Chloe e sentiu um desejo urgente de protegê-Ia... como parente, era claro.

- O que pretende dizer com alguém como eu? Será que ela se referia à lacuna, por ele mesmo admitida, no terreno dos impulsos libidinosos? Kit percebeu que ela corava e teve remorso do que pensara dela.

Ela fitou as próprias mãos.

- É que, alguém tão bonito, charmoso, jovem e...

- Já fui jovem e bonito, Chloe - ele interrompeu-a, com o coração mais leve -, e atraente.

- Ah - Chloe riu novamente -, eu não pretendia subestimar seu charme.

- E nem eu, o seu - Kit murmurou, fitando-a com intensidade.

O calor que emanava do olhar de Chloe confundiu-se com o de Kit. Uma ligação entre eles pareceu crescer e avolumar-se.

Chloe desviou o olhar.

- O senhor me lisonjeia, milorde, isto é, Kit. Agradeço sua preocupação por minha causa, embora eu ache que está enganado.

- A srta. não conhece minha avó e suas maquinações.

- Estou aprendendo rapidamente. Acho que ela acredita nos próprios esquemas, como se os fins justificassem os meios.

Chloe impediu-o de responder, com a mão quente e pálida no braço dele.

- Como também já notei que os dois nunca estão de acordo. Kit, ela não me contratou para seduzi-Io, mas simplesmente para cuidar do senhor, como uma simples dama de companhia. Ela tem muita preocupação a seu respeito...

- O quê? - Kit espantou-se. Qual o conto de fadas que ela teria contado para essa jovem?

- A condessa tem receio de que possa cometer algum desatino - Chloe murmurou, depois de alguns instantes de silêncio.

Kit inspirou fundo, sem acreditar no que ouvia.

- Tenho vontade de matá-Ia. Bruxa velha! Chloe tornou a rir e, por um momento, Kit esqueceu o ultraje. O som da risada era baixo e quente. Lembrava noites de amor. Como podia ser de uma jovem solteira e ingênua como

Chloe? Na verdade, uma dama de companhia de quem quer que fosse não deveria ter uma voz igual à dela. Quente, profunda e sensual.

Kit piscou. Por mais que Chloe fosse agradável, atraente ou mesmo apetecível, não devia permitir que ela permanecesse ali. Ainda mais servindo de babá para um homem como ele!

A avó devia estar maluca ou pior, talvez o considerasse um insano.

Sim, ele gostaria de ter trocado de lugar com Garrett. Mas cometer suicídio não traria o irmão de volta. E ele não desonraria os companheiros mortos daquela maneira!

Kit virou-se para a jovem que estava parada à frente dele, muito calma e como se não houvesse dito nada demais. Ele refletiu que não poderia dispensar uma parente na miséria e a viúva esperta contava com isso. Mas também não precisava ficar ao lado da dama de companhia.

- Vamos fazer um trato. A srta. me deixa sozinho e eu também a deixarei em paz.

Obviamente chocada, ela balançou a cabeça.

- Receio que não possa fazer isso.

- E por que não?

- Por que fui empregada para exercer uma tarefa e tenho de cumpri-Ia.

Não podia ser, Kit espantou-se. Certamente ela não pensava em ser a sombra dele, testar as bebidas para conferir o veneno ou tirar todos os objetos pontiagudos de sua frente? Humilhado, ele riu com amargura. Se tivesse mesmo intenção de fazer uma coisa dessas, não seria uma jovem delgada que o impediria. Como ela também não poderia ser uma companhia para todas as horas, se ele não a aceitasse como tal.

- Boa sorte, srta.!

Kit virou-se e, mancando, voltou para dentro, deixando Chloe Gibbons sozinha no frio.

Ainda bem.

[...]

Kit esgueirou-se, às primeiras luzes da aurora. Ele tinha dificuldade para dormir e era comum levantar-se na hora em que outros pensavam em procurar uma cama, depois de uma noite passada em bailes elegantes ou salões de jogos, os favoritos da maioria. Os dias tomavam-se longos e mais dificeis de serem tolerados. E naquela manhã ainda teria de levar a melhor sobre a sua, assim chamada, dama de companhia.

Kit encaminhou-se aos estábulos, com um sorriso maldoso. Talvez ele não fosse capaz de evitá-Ia a pé. Mas no dorso de um cavalo, o assunto era bem diferente. Dali a instantes, ele estava montado em Raja.

Pretendia usufruir de um passeio demorado e solitário na floresta brilhante com as cores do outono. O garanhão fogoso era o mais rápido da estrebaria, mas Kit não tinha pressa. Prosseguiu devagar, escalando a ladeira longa e suave que conduzia aos carvalhos das colinas.

Deduziu que Chloe ainda estava na cama e isso trouxe-lhe algumas imagens inquietantes. Ela, corada e sonolenta, com os cabelos desalinhados. Ele tratou de concentrar-se na trilha à frente.

Não precisava de babás, damas de companhia, ou qualquer coisa do gênero. Por que sua avó não o deixava em paz? Ninguém o entendia. Preferia mesmo ficar sozinho, à mercê de seus pensamentos torturantes. Imaginou, e não pela primeira vez, se não devia deixar Hawthorne Park, abandonar sua avó, herança e condado, tudo de uma só vez. Mas havia uma coisa que o prendia à vida antiga.

Os vales de Yorkshire estavam no seu sangue. Kit inspirou o ar impregnado com os odores de relva, folhas e flores. A tensão interior cedeu um pouco. Estava no único lugar que lhe conferia um pouco de paz. Então por que o abandonaria só por causa da avó? O melhor seria mandá-Ia embora!

Kit ainda não estava muito longe, quando ouviu o trote de outro cavalo atrás dele.

Não pode ser!

Chloe certamente dormia e jamais poderia persegui-lo com tanta rapidez. Assim mesmo, que estranho, não desgostou de pensar naquela hipótese. Kit virou-se devagar, como em um desafio. Horrorizado, viu Chloe montada em Pégasos, uma égua alta puro-sangue e que neces- sitava do pulso firme de um cavaleiro experiente. Além de ser conhecida por não gostar de companheiras do mesmo sexo. A potranca vinha dançando e atirando a cabeça. Chloe agarrava- se nas rédeas, sem muita eficácia.

Num instante, Kit aproximou-se delas. Sem hesitar, levantou Chloe da sela e puxou-a para seu colo. Surpresa, ela agarrou-se no casaco dele, como se temesse ser atirada ao solo. Ele segurou-a pela cintura com firmeza e percebeu que ela tremia. Ou seriam as próprias mãos que acompanhavam o descompasso do coração?

- Mas o que a srta. estava fazendo sobre Pégasos?

Pelo menos ela pareceu envergonhada, ou talvez arrependida.

- Eu pedi a seu cavalariço uma montaria que pudesse alcançar a sua. Mas isso foi porque o senhor resolveu sair sem me esperar.

Kit blasfemou com todas as letras.

- A srta. não tem juízo? Poderia ter-se matado, e para quê? - Por minha causa, ele pen- sou, feroz. - Não pretendo ter outra morte à minha porta!

- Mas eu estou bem, Kit - ela afirmou, com suavidade.

A voz baixa e firme de Chloe varreu a raiva e a aflição, e ele pôde enxergar novamente. A figura delicada preencheu-lhe a visão. Ela era um raio de luz em meio à escuridão que o cercava.

Kit sentiu, sob seus dedos, o corpo delgado de Chloe, sólido como uma âncora. Os cabelos dela estavam mal presos e caíam em madeixas soltas aqui e ali. Os cílios espessos faziam sombra sobre os olhos que o arrastavam em uma promessa imaginária de paz, conforto e... paixão.

Entre esses devaneios bizarros, o último foi o que mais chamou-lhe a atenção. De repente, Kit passou a fitarlhe os lábios, carnudos e suculentos.

Um calor tórrido explodiu ao redor dele. Queria mergulhar naquela boca, achar ali refügio e prazer, abandonar seu pesar e sua culpa, em troca de vida e amor. E isso apavorou-o mortalmente.

Inspirou fundo, desviou o olhar e incitou Raja a voltar para o estábulo.

Kit manteve o olhar fixo na construção baixa, até parar o garanhão perto do cavalariço que ajudou Chloe a desmontar. Demonstrou seu desagrado para o homem e cometeu o erro de fitar novamente Chloe. Em pé, abaixo dele, ela o fitava tranqüilamente como se nada houvesse acontecido.

Em vez de sair galopando para as colinas e fugir da ameaça que ela representava, Kit viu-se pedindo ao palafreneiro uma montaria mais adequada para Chloe. E antes de que ele se desse conta do que estava acontecendo, ambos saíram em direção ao carvalhal do outeiro.

Trotaram em silêncio e Kit descontraiu-se. Afinal, qual o perigo que a parente jovem e ingênua que montava um capão a seu lado poderia oferecer? Certamente ele exagerava em suas apreensões. Havia muito tempo que não sentava uma mulher em seu colo. Por isso era natural que se sentisse alvoroçado, mesmo que seu corpo não pudesse mais reagir como antigamente.

Kit tratou de esquecer tais pensamentos e deixou a

paz da manhã lavar-lhe a alma. Não suportava mais a tagarelice incessante daqueles que nada mais queriam, a não ser ouvir a própria voz. Esse era um dos motivos por que ele procurava o campo, os espaços abertos, os carvalhos rijos e mudos, onde os únicos ruídos eram o canto dos pássaros, o farfalhar dos vegetais e o movimento fortuito de algum animal.

Sob os ramos das árvores acolhedoras, Kit encontrou o alívio para sua mente atormentada, mas de uma forma diferente. Naquele dia, não era a solidão de um solitário. Ele partilhava de um calor que vinha não somente da beleza da floresta.

Chloe mostrava-se uma companhia agradável e Kit gostou de ouvir-lhe a voz.

- O que é esse cheiro podre? - ela perguntou, enrugando o nariz.

Kit admirou-se ao ouvir o próprio riso, rouco e enferrujado.

Eles haviam chegado à clareira onde as águas quentes formavam uma pequena lagoa, borbulhante e espumosa de encontro às pedras.

- Esta é a nossa fonte medicinal. Há vários pontos desses espalhados pelo parque.

- Que maravilha! - ela entusiasmou-se e desmontou, admirando o lugar. - E dá para tomar banho! Já experimentou? Tenho certeza de que poderia melhorar os movimentos de sua perna.

Kit estava desmontando, quando escutou as palavras de Chloe. Ele estremeceu, apesar do calor da manhã.

- O que quer dizer com isso? - Ele fitou-a com severidade.

- Quando ela estiver latejando ou incomodando, o senhor deveria vir aqui e...

- E como sabe que isso me incomoda? - ele interrompeu-a, com brusquidão.

Chloe não pareceu incomodar-se com a grosseria.

- Posso ver isso pelo movimento de seu queixo. Percebo que nesta manhã ela não o está perturbando. Mas quando o senhor anda bastante, acho que o mal-estar se agrava.

Kit não soube o que responder. Sentiu-se despido, apanhado em flagrante.

- Esta sua nascente pode ser maravilhosa para isso - ela continuou, sem se alterar. - Meu pai sempre se sentia melhor depois de uma viagem a um balneário, principalmente Bath. Ele sofria muito de gota.

Chloe suspirou, perdida em suas memórias e Kit deduziu ser saudade do pai. Ele sentiu-se culpado por haver sido tão rude. Mergulhado em sua própria dor, Kit não reconhecera que ela também estava sofrendo.

- A srta. deve estar pensando que sou um patife egoísta - ele murmurou.

Kit fitou-a, esperando encontrar a desaprovação que sempre via no rosto da avó. Mas Chloe estava sorrindo, com a ponta do dente quebrado à mostra. E isso de certa forma acalmou-o.

- Não - Chloe respondeu, com suavidade. - Vejo um homem atormentado pelo sofrimento e pela angústia... e talvez alguma coisa a mais. Do que Se trata, Kit?

A perspicácia dela espantou-o e ele teve de afastar-se um pouco, com um nó na garganta. Não tinha a menor intenção de contar nada, mas as palavras saíram sem querer.

- Estou vivo e muitos outros morreram - ele disse, em um fio de voz. - Inclusive Garrett. Isso não é correto.

Chloe seguiu-o, ele estava de costas, mas não se aproximou demais.

- Até pode ser. Mas quem é o senhor para decidir isso? Se houvesse feito alguma coisa diferente, teria mudado o rumo de Waterloo? Poderia ter evitado as grandes perdas britânicas? - Ela esperou uma resposta que não veio e continuou, tranqüila: - Quando sua mente estiver mais desanuviada, as respostas aparecerão.

- Mas por que eu? - ele sussurrou a pergunta que vinha se fazendo há meses.

- Talvez por que seja digno desse direito.

Kit virou-se e ela já estava ao alcance de seus dedos. Poderia tocá-Ia, se ousasse. Mas ele permaneceu imóvel, fitando aqueles olhos enormes e castanhos. E dentro deles, Kit viu a sensatez, a misericórdia e algo mais que o arrastava...

- Lamente a morte de seus companheiros e de seu irmão, como eu faço por meu pai. Mas não desperdice sua vida preciosa com remorsos sem sentido. O senhor é um homem inteligente, jovem, cheio de vitalidade e ainda tem muito a oferecer ao mundo.

As palavras dela tiveram o efeito de lâminas em suas feridas. A dor foi muito grande e Kit teve vontade de gritar. Mas limitou-se a montar Raja e voltar pela mata, em direção a seu lar, seguido pela indesejável dama de companhia.

                         

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