O aviso do hospital chegou naquela manhã, um envelope branco e austero cheio de palavras frias e impessoais. Minha cobertura do plano de saúde estava acabando. Os tratamentos experimentais, os exames intermináveis, os cuidados paliativos - tudo custava dinheiro, dinheiro que eu não tinha muito mais. Meu fundo fiduciário, a herança da minha mãe que deveria garantir meu futuro, ainda estava bloqueado, inacessível. E havia a outra parte, a razão pela qual eu realmente precisava voltar: o vestido de noiva da mamãe. A obra-prima feita sob medida que ela usou, confiada a mim antes de sua morte. Era o único elo tangível que me restava com ela, e era meu por direito.
Então, apesar do "não" gritando na minha cabeça, meus pés me levaram de volta. De volta à imponente propriedade dos Alencar, uma mansão que um dia pareceu um lar, agora uma gaiola dourada de memórias dolorosas. Os portões de ferro forjado, familiares, mas ameaçadores, se abriram lentamente.
Bruno estava esperando na entrada, as mãos enfiadas nos bolsos de seu terno sob medida. Ele estendeu a mão, um gesto de conforto hesitante, mas eu recuei, um reflexo nascido de anos de hematomas emocionais e físicos. Ele viu, o recuo quase imperceptível, e sua mão caiu, pendendo desajeitadamente no ar.
"Só tentando te ajudar com a mala", ele murmurou, seu olhar fixo em algum lugar sobre meu ombro. O ar entre nós era denso, pesado com palavras não ditas, com anos de mágoa e ressentimento.
"Eu consigo", respondi, minha voz seca, segurando minha pequena mala de viagem com mais força. Eu preferia carregar meus próprios fardos, físicos ou não. Era mais seguro assim. Menos expectativa, menos decepção.
A viagem do cemitério para a casa foi silenciosa, o carro de luxo um casulo de tensão. Agora, o silêncio se estendeu novamente enquanto caminhávamos pelo grande hall de entrada, passando pelos retratos de ancestrais que eu mal reconhecia, em direção ao coração da casa.
Então, uma voz, doce como mel, afiada como uma navalha. "Bianca! Você realmente voltou!"
Gabriela. Seus olhos, grandes e aparentemente inocentes, continham um brilho predatório que eu conhecia muito bem. Ela desceu a escadaria imponente, uma visão em um vestido pastel, seu sorriso muito brilhante, muito perfeito. Ela me abraçou, um abraço rápido, quase superficial, mas senti a tensão calculada em seu corpo, o triunfo mal contido. Ela achava que tinha vencido.
Ela achava que eu estava aqui para reivindicar meu lugar, para lutar por uma família que há muito me descartara. Ela achava que eu ainda era a mesma garota frágil e insegura que ela manipulou com tanta facilidade. Mas ela estava errada. A garota que ela conhecia se foi, substituída por alguém oco, alguém que não tinha mais luta para batalhas triviais. Minha doença tirou muito, mas também me deu uma estranha paz, uma aceitação que transcendia seus joguinhos mesquinhos. Minhas prioridades mudaram. Tudo que eu queria agora era morrer em paz, perto da minha mãe.
"É bom te ver, Gabriela", eu disse, minha voz calma, quase distante. Meu olhar piscou para o anel de noivado brilhando em sua mão esquerda. Era um diamante substancial, um símbolo de tudo que ela havia roubado de mim.
Fernando, meu pai, saiu de seu escritório, sua presença ainda tão imponente como sempre, mas seu rosto gravado com novas e cansadas linhas. Ele acenou secamente para mim, um reconhecimento distante. Sua frieza era um peso familiar, uma constante em minha vida turbulenta. Ele era a força imóvel, o arquiteto do meu exílio, e sua indiferença era um escudo atrás do qual aprendi a viver.
Eu não perdi tempo com gentilezas. Meus olhos examinaram os arredores familiares, procurando por algo. "Onde está o vestido de noiva da mamãe?", perguntei, minha voz cortando a fachada educada. Meu fundo fiduciário era uma coisa, mas aquele vestido... aquele era minha mãe.
A governanta, Sra. Neves, uma mulher gentil que sempre me tratou com uma pena suave, torceu as mãos. "Ah, senhorita Bianca... o vestido..." Ela parou, seus olhos dardejando nervosamente em direção a Gabriela.
Meu estômago despencou. Eu já sabia. Um pavor frio se infiltrou em meus ossos.
"Gabriela está com ele", Bruno forneceu, sua voz seca. "Ficou lindo nela. Ela vai se casar no próximo mês, sabe."
Raiva, fria e aguda, perfurou a dormência que se tornara minha companheira constante. Não pelo dinheiro, não pelo afeto deles, mas por isso. Pelo vestido da mamãe. Não era apenas tecido; eram memórias, um legado, um pedaço da minha mãe que eu pensei que estava seguro, esperando por mim. E eles o deram a ela. Para ela.
"Ela vai se casar?", perguntei, minha voz perigosamente calma, as palavras com gosto de cinzas. "Com quem?" Eu já sabia, no fundo, uma premonição doentia torcendo minhas entranhas.
O sorriso de Gabriela se alargou, um sorriso triunfante que ela mal se preocupou em esconder. Ela levantou a mão esquerda, o diamante brilhando. "Com o Caio, é claro! Ele me pediu em casamento no mês passado. Não é maravilhoso?"
Minha respiração engasgou. Caio. Meu Caio. Meu namorado de infância, o garoto que um dia jurou me proteger, que me prometeu o para sempre. O garoto cujas mãos quebraram minha perna, acabando com meus sonhos. O garoto que escolheu Gabriela em vez de mim, repetidamente. O garoto que agora estava prestes a se casar com ela, usando o vestido da minha mãe.
Uma onda fria me percorreu e, por um momento, o mundo inclinou. Caio. Como ele pôde? Eu me lembrava dele, tão claramente, me defendendo na escola primária, afastando os valentões, sua pequena mão firmemente na minha. "Deixem a Bianca em paz!", ele gritou uma vez, seu rosto vermelho de indignação.
Então, as coisas começaram a mudar. Depois que mamãe morreu, depois que Gabriela chegou, Caio começou a se afastar. Ele passava mais tempo com Gabriela, ouvindo suas histórias de som inocente, acreditando em suas lágrimas fabricadas. Lembro-me do dia em que os peguei na biblioteca, o braço dele ao redor dela, confortando-a após alguma ofensa inventada. Eu o confrontei, lágrimas escorrendo pelo meu rosto. "Caio, como você pôde? Você não vê o que ela está fazendo?"
Ele olhou para mim, não com o calor familiar, mas com um lampejo de irritação. "Bianca, ela é tão frágil. Você sempre faz uma cena." Suas palavras foram um golpe físico, pior que qualquer soco. "E pare de chamá-la de 'a novata', Bianca. Ela é Gabriela agora."
Lembro-me de implorar a ele, chorando: "Por favor, Caio, não me deixe. Você é tudo que eu tenho." Ele gentilmente, mas com firmeza, afastou minhas mãos. "Você está me sufocando, Bianca. Você é sempre tão... intensa."
Então veio o "sequestro". Gabriela, com lágrimas escorrendo, uma bochecha machucada, sussurrando meu nome. Caio, seus olhos cheios de uma raiva que eu nunca tinha visto, acreditando em cada palavra dela. Ele me prendeu contra a parede, seu aperto como ferro, seu rosto a centímetros do meu. "Você é uma vadia doente e pervertida, Bianca! Você a machucou! Você machucou a Gabriela!" O chute, rápido e brutal, no meu joelho. O estalo doentio que ecoou em meus ossos, quebrando não apenas minha perna, mas meu futuro. Minha carreira de balé, tudo pelo que eu havia trabalhado, se foi em um instante. E ele apenas me viu cair, seu rosto uma máscara de nojo, antes de se virar para confortar Gabriela.
Agora, ele ia se casar com ela. Usando o vestido da mamãe. Meu vestido.
Meu mundo, que já havia sido reduzido a uma contagem regressiva finita, de repente pareceu totalmente estéril. Eles haviam tirado tudo. Minha mãe, meu lugar na família, minha carreira, minha sanidade, meu amor. Agora, até a última memória sagrada, o vestido da minha mãe, não estava a salvo de suas mãos gananciosas. Eu não tinha mais nada. Nada.