Gabriel, que agora estava de volta à sala, parecia um pouco mais calmo, mas ainda visivelmente abalado. Seus olhos estavam focados em Eliza, que rapidamente escondeu o celular e voltou à sua pose de fragilidade.
"Eliza, você está bem?" Ele perguntou, a voz suave, preocupada.
Ela assentiu, os olhos marejados. "Sim, Gabriel. Só... pensando na Irene. Queria que ela estivesse bem."
As palavras dela eram uma afronta, um soco no meu peito invisível. Eu a observei, a raiva fervendo. Como ele podia ser tão tolo?
Gabriel se sentou ao lado dela, puxando-a para um abraço. "Não se preocupe com ela agora. Os médicos estão cuidando. Você precisa descansar." Ele beijou a testa dela, um gesto de carinho que um dia foi meu. Meu estômago se revirou, mesmo sem estômago.
"Mas e você, Gabriel? Você está tão abalado", ela sussurrou, a voz carregada de falsa preocupação. "A culpa não é sua. Eu sei que você nunca faria nada para machucá-la de verdade."
"Não sei, Eliza. Eu estava tão furioso. Aqueles documentos... o projeto. Eu não podia acreditar que Irene faria algo assim." Ele suspirou, o rosto enterrado no cabelo dela.
Meus joelhos invisíveis falharam. Era a mesma velha história. Mais uma vez, ele me acusava, e Eliza o "confortava". Lembrei-me de inumeráveis ocasiões em que Gabriel me repreendeu por "reagir exageradamente" às suas "piadas", ou por "estar com ciúmes" de Eliza. Ele sempre invalidava meus sentimentos, me fazendo duvidar da minha própria percepção. Gaslighting. Era isso. Eu senti isso tantas vezes, mas nunca tive um nome para isso.
Lembrei-me de uma noite, meses atrás, quando um rato apareceu na cozinha. Eu tinha terror de ratos. Gritei, pulando na cadeira, pedindo ajuda a Gabriel. Ele estava no escritório com Eliza, "trabalhando".
"Gabriel, por favor! Tem um rato na cozinha!" Eu gritei, a voz embargada pelo pânico.
Ele apareceu, mas não veio ao meu resgate. Olhou para mim com impaciência. "Irene, por favor, pare de fazer drama. É só um rato. Eliza nunca faria essa cena."
Eliza estava atrás dele, com um sorriso de canto de boca. "Não se preocupe, Gabriel, eu lido com isso." E ela, a "frágil" Eliza, pegou uma vassoura e enxotou o rato, se exibindo.
Gabriel me olhou com desapontamento. "Está vendo? É só um rato. Você é tão sensível."
Eu chorei naquela noite, não apenas pelo rato, mas pela sua indiferença. Pela forma como ele sempre me comparava a Eliza, sempre me diminuía. Eu me convenci de que eu era mesmo dramática, sensível demais. Eu me forcei a ser mais forte, a não reclamar, a engolir a dor.
Agora, eu desejava poder voltar no tempo e gritar com ele, mostrar a ele o monstro que Eliza realmente era. Mas eu era impotente. Uma alma presa, observando meu próprio inferno se desenrolar.
"O que você vai fazer agora, Gabriel?" Eliza perguntou, a voz suave, quebrando meus pensamentos. Ela se afastou um pouco dele, olhando-o com adoração. "Com a Irene no hospital... e a mídia vai começar a falar."
Gabriel franziu a testa. "A mídia... é verdade. Isso vai ser um escândalo. Eu preciso limpar meu nome. Isso pode afetar o Grupo Marques."
Meu peito invisível se apertou. Seu nome. A empresa. Nunca eu. Nunca meu sofrimento.
"Precisamos encontrar um culpado", ele disse, mais para si mesmo do que para Eliza. "Alguém que vazou os documentos. Alguém que me incriminou."
Eliza sorriu, um brilho nos olhos. "Sim, Gabriel. Claro. Você é o CEO. Você não pode ter seu nome arrastado na lama."
A farsa era tão óbvia. Eu estava morta clinicamente, e ele estava preocupado com sua imagem.
Gabriel se levantou, a raiva voltando aos seus olhos. "Ele é quem vai pagar por isso. Elias!" Ele chamou.
Elias entrou na sala, parecendo hesitante.
"Elias, eu quero que você encontre quem vazou os documentos. Encontre quem realmente sabotou o projeto", Gabriel ordenou, a voz firme. "Eu não vou deixar que Irene me coloque nessa posição. Limpe meu nome."
Elias hesitou. Seus olhos encontraram os de Eliza por um segundo, uma troca rápida que ninguém mais notou. Mas eu vi. Eu vi a sutil tensão, a desconfiança em Elias.
"Mas senhor... a Irene..." Elias começou, mas Gabriel o interrompeu.
"Não importa Irene agora! A prioridade é proteger a empresa e meu nome! Acha que ela fará o mesmo por você? Ela tentou destruir tudo que construí!" A voz de Gabriel era um trovão. "Eu quero a cabeça do culpado, Elias. Não me importa quem seja. Faça o que for preciso."
Elias assentiu lentamente, seus olhos baixos. "Sim, senhor. Farei o que puder."
Ele saiu da sala.
Eliza se levantou e foi até Gabriel, abraçando-o novamente. "Você é tão forte, Gabriel. Eu sempre soube. Você vai superar isso."
Eu observei a cena com uma mistura de horror e fascínio. Ela era tão boa em sua manipulação, tão perfeita em sua atuação. Eu, a Irene fantasma, era a única que podia ver através dela.
Eu queria poder gritar para Elias, dizer a ele para olhar para Eliza. Dizer a ele que ela era a cobra, o veneno. Mas eu não tinha voz. Eu era apenas uma testemunha, uma alma impotente.
"Eu te amo, Gabriel", Eliza sussurrou, e eu a vi levantar a cabeça, depositando um beijo suave nos lábios de Gabriel.
Meus olhos se arregalaram, embora eu não tivesse olhos de verdade. Gabriel a beijou de volta, com paixão, com desejo.
Era isso. O beijo da traição. O beijo de Judas.
A dor que senti naquele momento superou tudo. Não era o beijo em si, mas a total e completa falta de respeito por mim, que estava à beira da morte no hospital. Ele não esperou nem minha "reflexão". Ele nem sequer fingiu luto.
Eu flutuei para trás, para longe da cena, sentindo-me mais leve ainda, como se a dor estivesse me diluindo ainda mais. Meu novo corpo etéreo, embora imune ao frio, ainda ardia com a mágoa.
"Eu te amo também, Eliza," Gabriel murmurou. "Você é a única que sempre esteve ao meu lado. A única que realmente me entende."
Aquele era o Gabriel que eu achava que conhecia. O Gabriel que eu amava. E ele estava perdido. Completamente cego. Completamente dela.
Eu não sabia o que era mais doloroso: a traição dele, a manipulação dela, ou a minha própria impotência.
Mas uma coisa eu sabia. Se eu tivesse uma chance, se eu voltasse, eu não seria a mesma mulher. Eu não seria a vítima. Eu faria Eliza pagar. E Gabriel... ele pagaria também.
Minha alma, antes atormentada, começou a se solidificar com uma nova determinação. Eu não morreria. Eu não podia. Eu tinha que voltar. Eu tinha que expor a verdade.
O vento invisível que me carregava, agora parecia mais forte. Eu estava sendo puxada para longe da mansão, para longe daquela cena repugnante. Para onde? Eu não sabia. Mas eu senti que estava sendo levada para onde a verdade precisava ser encontrada. Para onde Elias iria.