Minha mente correu para a última notícia: um avião de carga havia caído naquela rota há apenas algumas semanas. Não havia sobreviventes. Ele sabia. Ele sabia do perigo.
"Por que Rafaela?", perguntei, a voz um sibilo baixo. Eu estava me controlando, mas por dentro, o fogo já começava a consumir. "Por que ela está vindo na nossa viagem de família?"
Murilo encolheu os ombros. "Ela faz parte da família, Bruna. Sempre fez."
Minha mandíbula travou. Eu sentia um rosnado primordial subindo pela minha garganta. Ele chamou Rafaela de família. A mulher que o abandonou na miséria. Mas eu? Eu, que paguei por cada tijolo desta casa, por cada bocado de comida na mesa, eu não era família.
"E por que eu tenho que viajar sozinha?", minha voz subiu um tom, mas ainda estava contida. O tremor em meus dedos era o único sinal externo da tempestade. "Por que você cancelou meu assento no jatinho que EU paguei?"
"O jatinho ficou lotado, Bruna," ele repetiu, impaciente. "Não tinha mais lugar."
"Você fez a reserva", eu o lembrei, as palavras escorrendo como veneno. "Você reservou o jatinho inteiro. Os assentos foram pré-designados. Você me tirou de lá. Você deu o meu lugar para ela."
Ele suspirou, como se eu fosse a criança birrenta. "Você é forte, Bruna. Você sempre foi. Rafaela é delicada. Ela não aguentaria a viagem comercial."
Forte. Delicada. As palavras dele ecoaram na minha mente, cada uma delas uma lâmina. Ele me amava pela minha força, mas a desprezava. Ele amava a fraqueza dela.
Eu olhei novamente para a passagem. A rota era a mais perigosa. Não havia como ele não saber. "Então a delicada Rafaela está protegida no jatinho, e eu, a forte, devo arriscar minha vida?"
Ele pigarreou. "Você sempre quis aventura, não é? Esta é a sua chance."
Eu me virei para Marcelino e Carmelinda. Eles estavam sentados no sofá que eu paguei, com o ar condicionado que eu mantinha ligado, bebendo o chá que eu comprei. Marcelino desviou o olhar, sua covardia palpável. Carmelinda pigarreou.
"Bruna, querida", disse Carmelinda, com um sorriso forçado. "Não faça tempestade em copo d'água. Rafaela é como uma filha para nós. Murilo e ela têm uma história tão bonita. E você é tão independente. Você pode pegar um voo mais longo, talvez. Há um que sai amanhã."
Meus olhos se estreitaram. Um voo mais longo. Mais perigoso. Eles não se importavam.
Maitê, que até então estava mexendo no celular, levantou a cabeça. "É verdade, Bruna. A Rafaela é tão fofa. Você é mais... forte. Você aguenta. A Rafaela é importante para o Murilo."
Eu soltei uma risada. Uma risada fria, sem alegria, que parecia arranhar o ar. "Então, quem é a família aqui? Eu, que sustento todos vocês? Ou a mulher que os abandonou e agora volta para sugar o que resta?"
Murilo me encarou, os olhos escuros de raiva. "Não ouse falar assim da Rafaela. Ela é parte da nossa vida. Sempre foi."
"Parte da sua vida?" Eu dei um passo à frente, meu corpo tenso. "Você a trata como se fosse sua companheira. Por que não se casou com ela então? Por que não deixou ela te sustentar quando sua família estava na lama?"
A cor sumiu do rosto de Murilo. Ele ficou em silêncio.
"Você quer que eu faça sacrifícios, Murilo?", minha voz baixou, tornando-se mais perigosa. "Para provar que sou sua companheira? É isso?"
Naquele instante, a porta da mansão se abriu. Maitê gritou, "Rafaela!" e correu para a porta.
Rafaela entrou, vestida com um conjunto de grife que valia o salário de um ano de Murilo. Seus cabelos estavam perfeitamente arrumados, sua maquiagem impecável. Ela era a imagem da perfeição superficial.
Maitê pegou uma das malas de Rafaela, que parecia mais leve do que as outras. "Que bom que você veio, Rafaela! Senti tanto a sua falta! Lembra das nossas brincadeiras com Murilo quando éramos crianças?"
Rafaela sorriu para Maitê, um sorriso condescendente. Deu um beijo no topo da cabeça da garota. Carmelinda se levantou, os olhos brilhando. "Minha querida Rafaela! Que bom que você está aqui. Eu sabia que Murilo ia te convencer. Você sempre foi a nora perfeita para a nossa família."
Ela pegou a mão de Rafaela, apertando-a com carinho. "A nossa futura nora", ela disse, sem desviar o olhar de Rafaela, e sem sequer me olhar nos olhos.
As palavras foram ditas na minha frente, em alto e bom som. Sem qualquer hesitação.
Meu coração, que eu achava que já havia endurecido, simplesmente congelou. Congelou com todos eles dentro.