Eu voltei a espiar pelo espaço estreito entre o pilar e a parede. Gabriel estava de volta ao palco. Mariana se inclinou contra ele, sua cabeça repousando em seu ombro, os olhos fechados, como se estivesse à beira de um colapso. Mas um pequeno sorriso, quase imperceptível, brincava em seus lábios enquanto Henrique acariciava seu braço.
Henrique. Meu irmão. Ele estava ali, ao lado deles. A maneira como ele olhava para Mariana, com preocupação e ternura, fez meu estômago revirar. Ele era o guardião dela, o protetor. E eu, sua irmã mais velha, que o havia salvado daquele incêndio anos atrás, que o havia criado, era agora uma estranha para ele.
Eu me lembrei daquele dia fatídico. O fogo consumindo nossa casa, a fumaça sufocante. Eu o peguei em meus braços, correndo pelas chamas, protegendo-o com meu próprio corpo. A cicatriz em meu ombro queimava, um lembrete físico de um sacrifício que ele parecia ter esquecido.
Mariana pegou a mão de Henrique, apertando-a suavemente. Ele estremeceu, um rubor subindo ao seu rosto. Ela sussurrou algo em seu ouvido, e ele riu, um riso leve e descontraído. O riso que um dia foi só meu.
Aquela cena, a imagem deles, tão próximos, tão cúmplices, me atingiu mais forte do que qualquer palavra. Eu não era mais a Aline que ele amava. Eu não era mais a Aline que ele protegia. Eu era a intrusa.
A dor que irradiava do meu útero se intensificou. Eu toquei minha barriga, sentindo o pequeno inchaço. Nosso filho. Filho? Não. Meu filho. Eu estava sozinha. Mais sozinha do que nunca.
Eu me afastei da coluna, cambaleando levemente. A festa, os risos, os aplausos - tudo parecia distante, abafado. Eu precisava sair dali. Eu precisava respirar.
Eu saí do salão, ignorando os olhares curiosos dos poucos convidados que me notaram. Eu tropecei, mas me recuperei rapidamente. Eu não iria cair. Não mais.
Eu caminhei pelos corredores do luxuoso hotel, a dor em meu corpo e em minha alma se tornando um peso insuportável. Eu só queria um canto escuro para desabar. Mas eu não podia. Não ainda.
Quando cheguei ao meu carro, meu celular tocou novamente. Era a Dra. Clara, minha antiga mentora na Faculdadede Agronomia. Ela era a única pessoa que parecia se importar comigo.
"Aline? Você está bem? Eu ouvi umas coisas estranhas sobre Gabriel e Mariana." A voz dela estava cheia de preocupação. "Fiquei sabendo que algo grave está acontecendo na fábrica da Tavares. Você está segura?"
Eu fechei os olhos, a cabeça girando. A fábrica. Eu tinha um projeto lá, um sistema de irrigação inovador que eu havia desenvolvido.
"Eu estou bem, Dra. Clara," eu menti, a voz fraca. "O que está acontecendo na fábrica?"
"Não sei direito," ela disse, a voz cheia de urgência. "Mas há rumores de um vazamento de produtos químicos, e parece que uma explosão é iminente. Eles precisam de alguém para desligar o sistema de segurança. Gabriel está lá, mas ele não tem o conhecimento técnico para isso."
Meu coração gelou. Gabriel estava lá. E a fábrica. Meu projeto. Minha responsabilidade.
"Eu preciso ir," eu disse, sem hesitar. "Eu sei como desligar o sistema. Eu o projetei."
"Não, Aline! É muito perigoso!" Dra. Clara gritou. "Deixe a equipe de segurança fazer isso!"
Mas eu já estava ligando o carro. Eu precisava ir. Não por Gabriel, mas pela minha consciência. Pelo meu trabalho. Pela minha vida que estava desmoronando, mas ainda podia ser útil para algo.
Eu dirigi em alta velocidade, o vento chicoteando meu rosto. As notícias nas rádios confirmavam os rumores: um desastre estava se desenrolando na fábrica da Tavares. Eu senti uma pontada de preocupação por Gabriel. Apesar de tudo, ele ainda era o pai do meu filho.
Quando cheguei à fábrica, a cena era caótica. Sirenes uivavam, luzes de emergência piscavam. Eu vi Gabriel, ao longe, com Mariana nos braços, correndo em direção à saída. Ele parecia pálido, assustado, mas seus olhos estavam fixos nela.
Eu ignorei a dor em meu corpo, a fraqueza em minhas pernas. Eu precisava desligar o sistema. Eu corri para dentro, para o coração da fábrica, onde a fumaça e o cheiro forte de produtos químicos eram quase insuportáveis.
Eu encontrei a sala de controle. As luzes piscavam, os alarmes soavam. Eu comecei a trabalhar, meus dedos voando sobre os painéis, seguindo os procedimentos que eu havia criado. Eu podia sentir o calor da explosão se aproximando.
De repente, uma mão agarrou meu braço. Era Gabriel. Ele estava ali, ofegante, com Mariana em seus braços.
"O que você está fazendo aqui, Aline?" ele gritou, a voz cheia de raiva. "Você quer nos matar?"
"Estou desligando o sistema, Gabriel!" Eu gritei, tentando me soltar. "Você não sabe como fazer isso!"
Mariana tossiu, uma tosse fraca e teatral. "Meu amor, eu estou com medo," ela sussurrou, se agarrando a ele. "Cuidar de mim. Salve-me."
Gabriel me olhou, os olhos cheios de ódio. Ele hesitou por um segundo, seus olhos se movendo entre mim e Mariana. E então, ele me empurrou. Ele me empurrou para a direção oposta, para o perigo iminente.
"Saia daqui, Aline!" ele gritou, a voz distorcida pelo desespero. "Não precisamos de você!"
Eu caí, a perna se dobrando em um ângulo antinatural. Uma dor excruciante me percorreu. Eu gritei, um som agudo e desesperado. Eu senti um calor intenso, a explosão me atingindo, me arremessando contra a parede.
A última coisa que vi foi Gabriel correndo com Mariana em seus braços, me deixando para trás, enquanto as chamas lambiam o ar.
E então, tudo ficou escuro.