- Não morra agora - ela pediu, checando-lhe o pulso fraco e limpando o ferimento em sua testa. Ela disse a si mesma que machucados na cabeça costumam sangrar abundantemente e que aquele talvez não fosse tão grave quanto parecia. Murmurou um misto de prece e de exortação, numa mistura de árabe, dinamarquês e inglês, como seu pai costumava fazer quando enfrentava um caso difícil. As palavras a acalmavam e a mantinham sob controle, embora ela soubesse que tudo não passava de ilusão. Seria um milagre se seu paciente sobrevivesse.
- Tudo bem. - Ela o ouviu dizer. - Sei que não vou sobreviver. - Ele permanecia de olhos fechados, mas ela viu que os lábios ensanguentados e rachados se moviam e concluiu que não imaginara tê-lo ouvido falar.
- Não seja ridículo! Claro que você vai sobreviver. - Ela ficou irritada por ele expressar exatamente o que ela acabara de pensar. Ele tentou dar um sorriso irônico e retorceu os lábios.
- Se é isso que você acha. - Ele sussurrou. - Mas não se aflija se estiver enganada. - Ele respirou com dificuldade. - Eu não me importo.
Ele ficou imóvel e ela deixou de ouvir sua respiração. Apavorada, procurou seu pulso e respirou aliviada. Seria melhor que ele ficasse inconsciente e não sentisse dor enquanto ela cuidava dos ferimentos. Somente mais tarde, quando colocava uma compressa molhada em sua testa, para combater a febre, ela se lembrou que ele falara em inglês. Quem seria ele? O que fazia um estranho solitário, de smoking, no deserto de Qusay?
Tahir sentia dor em todo o corpo. Sua cabeça latejava impiedosamente. Sua boca e sua garganta estavam secas e ásperas. Quando engolia, parecia estar comendo vidro. Seu corpo estava rígido, pesado e machucado.
Dessa vez a surra fora feia, ele pensou vagamente. O pai, afinal, fora longe demais. Tahir não tinha forças para abrir os olhos, sair da escuridão e tentar saber onde estava, pois instintivamente sabia que a dor seria insuportável. No momento, não tinha energia sequer para fingir que não se importava. Suas únicas armas contra o pai eram o orgulho e a falsa indiferença com que reagia, sem pedir misericórdia. Aquilo levava seu carrasco à loucura e roubava seu prazer de atacar o filho. Por maior que fosse a surra, por mais demorada e cruel, Tahir jamais pedira para que ele parasse, ou se lamentara: nem um murmúrio, nem um gesto, por maior que fosse a frieza e a violência do pai. Quando Yazan Al'Ramiz mandara seus capangas capturarem Tahir e prolongara seu castigo, ele se recusara a se entregar: fora uma vitória desafiar o homem que sempre o odiara e uma pequena compensação por não saber o motivo pelo qual era odiado, mas dera-lhe algo em que se concentrar, em vez de procurar uma explicação que o pai se recusava a lhe dar. Com certeza, Tahir não era do tipo que inspirava compaixão. Preferia ficar sozinho e se controlar. Era teimoso e bastante insolente para jamais ceder. Tornara-se uma questão de honra: quando tudo se acabava, ele reunia suas forças e se retirava, ainda que cambaleante e tonto, apoiando-se nos móveis ou na parede. Sua força de vontade o sustentava. Ele não se deixava abater ou intimidar pelo pai.
Tahir inspirou o ar com dificuldade e recobrou-se o suficiente para sentir uma pressão no peito e uma pontada no lado. Teria quebrado as costelas? Dessa vez não conseguiria fugir. A ideia lhe feriu o orgulho e atiçou sua teimosia. Ele sentiu algo tocar-lhe o pescoço, alguma coisa tão leve que ele pensou ter se enganado. Mas aconteceu outra vez. Sentiu algo úmido e frio passar pelo seu queixo, descer por seu pescoço e atingir-lhe o peito, refrescando a pele ferida. De repente, parou. Tahir ouviu o barulho de água e logo em seguida sentiu o pano úmido refrescar-lhe a testa e a cabeça. Ele gemeu de alívio, mas se perguntou se seria algum novo tipo de tortura preparada pelo pai - um intervalo para que ele se recobrasse e voltasse a sentir dor quando a surra recomeçasse.
-Afaste-se-ele tentou dizer, mas sua voz não saiu. O pano parou de repente, mas voltou a ser movimentado sobre seu rosto, numa carícia que ameaçava levá-lo à desgraça. Ele nunca se sentira tão fraco. Sua pele ardia e comichava como se estivesse queimada, mas a bênção daquele contato aumentava sua ansiedade, fazendo-o respirar com dificuldade. - Vá embora. - Tahir não tinha forças para suportar a farsa do tratamento gentil que o abalava mais que a força de qualquer punho.
- Você está acordado. -A voz dela era um sussurro suave como a brisa. Tahir tentou identificá-la. Com certeza, ele não se esqueceria de uma mulher com uma voz como aquela: suave, doce e com um toque de sedução. Em meio à névoa que envolvia sua cabeça, ele chegou à conclusão que não a conhecia. Deveria ser uma das mulheres do pai. O gosto da amargura ultrapassou o sabor do sangue em sua boca. Ele deveria saber que o pai inventaria algo novo para tentar controlar sua rebeldia. Nada melhor que a carícia de uma mulher...
- Deixe-me em paz. - Tahir percebeu, desgostoso, que sua voz saíra num gemido rouco.
- Espere. - Ela levantou-lhe a cabeça com muito cuidado, mas Tahir sentiu uma dor lancinante e precisou conter um grito de agonia. - Eu sei que dói, mas você precisa beber. - Ela o fez beber um pouco de água fresca. Ele sorveu o precioso líquido, esqueceu o orgulho e tentou pedir mais. Ela o advertiu docemente: - Seja paciente. Logo você poderá beber mais. - Ela deixou que ele apoiasse a cabeça em seu colo, e Tahir sentiu o calor de seu corpo e seu perfume de mel e de canela. - Você está desidratado, precisa de líquido, mas não pode beber depressa.
- Quando é que ele volta?
- Ele? - ela perguntou. - Não há mais ninguém, só eu e você.
Tahir ouviu a voz rouca, tentadora, e engoliu um gemido de desespero. Como poderia combater a promessa daquela voz, a gentileza daquelas mãos? No seu estado de fraqueza, ele não tinha mais energia, e tudo o que queria era que ela o mantivesse no seu colo macio e que o segurasse como se a realidade não existisse. Quanto tempo ele levaria para implorar, pela primeira vez? Maldito fosse seu pai por encontrar um jeito de dobrá-lo. Ela acabaria com sua força de vontade como nenhuma surra conseguiria fazê-lo.
- Diga. - Ele tentou sentar, mas estava tão fraco que ela o conteve apenas com a palma da mão. - Quando ele voltará?
- Quem? Havia alguém com você no deserto? - Ela pareceu preocupada.
- Deserto? - Tahir tentou se lembrar. O sheik Yazan Al'Ramiz apreciava demais as comodidades da vida para passar algum tempo no deserto, ainda que este fosse o lar tradicional de seus antepassados. Ela tentava enganá-lo.
- Onde está meu pai? - ele perguntou, trincando os dentes de dor. - Ele vai querer se deleitar.
- Eu já lhe disse que não há ninguém aqui, além de nós.
- Podem ter me batido até que eu perdesse os sentidos, mas não sou tolo. - Ele sorriu, embora lhe doesse, e agarrou-a pelo pulso. Ela era jovem. Sua pele era suave e macia. Ele sentiu a batida de seu pulso e ouviu-a reter o fôlego.
- Alguém bateu em você? Pensei que você tinha sofrido algum acidente.
Afinal, Tahir conseguiu abrir os olhos. O mundo lhe pareceu distorcido e borrado. Ele levou algum tempo para enxergar, e quando o fez, perdeu o fôlego. Maldito velho! Ele o conhecia muito bem. Ela resplandecia à oscilante luz da lamparina. Seu rosto macio e pálido era perfeito. Seus lábios formavam um arco que prometia prazer. O pulso de Tahir acelerou só de olhar para ela. A despeito da dor, ele sentiu um calor nas entranhas quando ela passou a língua no lábio, nervosa. O formato do seu queixo revelava um caráter firme e determinado, que logo o agradou, e os seus olhos... Ele queria mergulhar nas profundezas castanhas daqueles olhos magníficos, sedutores e sem maldade. As tranças de cabelos pretos haviam se soltado e emolduravam-lhe o rosto sem um pingo de maquiagem. A moça olhou para ele, arregalou os olhos e pestanejou. Ela era a imagem da tentação inocente. Tahir sentiu o corpo dolorido e fraco: se ele tivesse forças, aplaudiria a escolha do pai. Como ele adivinhara que o encanto inocente abalaria mais a determinação do filho que os ardis de uma mulher insinuante e experiente?
Tahir praguejou ao recordar como descobrira ter um fraco pela imagem feminina virginal e doce. Quem pensaria que depois de tanto tempo ele ainda teria uma fraqueza por aquele tipo de fantasia? Ele tentaria evitá-la. Ela parecia frágil e calma, mas seu pulso dizia o contrário. Estaria com medo de seu pai? Fora coagida? Ele deveria lhe perguntar, mas se esforçara demais e seus olhos teimavam em se fechar. Ele soltou a mão dela.
- Vá, antes que ele machuque você também. - Ele percebeu que sua fala estava enrolada e tentou permanecer acordado.
- Quem? De quem você está falando?
- Do meu pai, claro. - A dor sufocou suas palavras e ele desmaiou.
Annalisa o colocou de volta sobre o travesseiro, aturdida. Olhar para os olhos azuis era como fixar o sol durante algum tempo. Porém, olhar para o céu nunca a deixara sem fôlego e nervosa. A voz dele, embora fosse um sussurro saído de lábios rachados, ressoara em seu íntimo. Ela olhou para além da lamparina e da fogueira do acampamento, na direção da duna por onde ele descera. Teria sido atacado? Por um estranho, ou por seu pai, como ele afirmara? Estaria confuso por causa dos ferimentos na cabeça? Além do corte profundo na testa, ele tinha um hematoma na parte posterior da cabeça, e ela levara horas examinando suas pupilas, embora nada pudesse fazer se ele tivesse uma hemorragia cerebral. Levaria dias até que a caravana voltasse, e aquela região árida do país era um buraco negro em matéria de telecomunicação. Ela sentiu um arrepio e estremeceu. Fizera todo o possível para reidratá-lo e abaixar sua temperatura. Agora surgia mais uma preocupação. Annalisa levantou, remexeu na bagagem e pegou uma pistola muito antiga que pertencera a seu pai. Todos os homens de Qusay sabiam atirar, e muitos praticavam esportes tradicionais como a falcoaria e o arco e flecha, mas seu pai, um estrangeiro, jamais usara a arma que recebera do sogro no dia de seu casamento. Ela se sentira melhor sabendo que estava armada ao viajar sozinha, mas sua sensação de isolamento aumentara e a calma que tanto lutara para conseguir lhe fugira. E se houvesse mais alguém no deserto, perdido e machucado, furioso e violento? Não poderia investigar: se abandonasse seu paciente, talvez ele morresse.
Annalisa voltou para o lado de Tahir. A febre estava alta demais. Ela pegou o pano molhado, mas receava tocá-lo. A despeito dos cortes e arranhões, das olheiras arroxeadas, ele era mais bonito que qualquer homem que ela conhecera. Suas mãos largas e fortes eram estranhamente fascinantes. Ela recordou como ele a agarrara pelo pulso e as sensações que provocara. A luz tremulante da lamparina, a camisa aberta revelava um peito musculoso e atraente, apesar da pele esfolada. Quanto à cintura e aos quadris... Annalisa foi forçada a sentar e a apreciar, fascinada, os pelos que formavam uma estreita linha descendente e sumiam no cós das calças. Ela sentiu vontade de tocá-los, seu coração acelerou e ela corou de vergonha ao perceber que o devorava com os olhos. Torceu o pano molhado e o passou no corpo dele. Recusava-se a notar como suas mãos tremiam e como seu corpo reagia ao tocar no corpo de um homem que, mesmo desmaiado, tinha mais virilidade que qualquer outro que ela conhecera.
Tahir despertou sentindo dor, mas a sensação de que sua cabeça iria explodir passara e agora se limitava a um constante martelar. Ele tentou sorrir, mas seus lábios ressecados e feridos apenas se contorceram. Ele abriu os olhos. Não estava escuro, nem claro: a luz era fraca e esverdeada. Ele ouviu o murmúrio do vento e inalou o perfume característico de Qusay: mormaço, areia e um aroma sutil de especiarias que ele jamais conseguira identificar. Ele sentiu uma onda de emoções confusas lhe subir pelo peito e ameaçar sufocá-lo.
- Então, eu não estou morto - ele disse em voz áspera.
- Não, você não está.
Tahir ficou rígido ao reconhecer vagamente a voz que lhe falava: cheia, suave, levemente rouca. A voz de uma mulher sedutora que fora mandada para enfraquecê-lo. Ela falou novamente:
- Você não parece muito satisfeito.
Tahir deu de ombros e seus músculos protestaram. Ele não costumava revelar seus pensamentos íntimos a ninguém. .
- Por que está tudo verde? Onde estamos? - Ele preferiu olhar para outro lado, evitando encarar a dona da voz até conseguir se controlar. Ele se sentia perdido, incapaz de recuperar seu autodomínio. A última surra destruíra a sólida armadura de desdém com que ele se defendia da brutalidade ao seu redor, e sua vulnerabilidade o assustava.
- Estamos no oásis de Darshoor, no meio do deserto de Qusay. -A voz dela soava como o murmúrio da água, e por um instante ele divagou... Até que a realidade o atingiu.
- No deserto? - Ele virou a cabeça, mas fechou os olhos quando a dor explodiu como um clarão.
- Sim. A luz é esverdeada porque você está dentro da minha tenda.
Uma tenda. No deserto. As palavras não faziam sentido.
- Meu pai...
- Ele não está aqui - ela interrompeu antes que ele pudesse raciocinar. - Acho que você pensou que ele estivesse aqui, mas você estava confuso. Você estava... perturbado. - Tahir estremeceu. Nada fazia sentido. Seu pai morava na cidade, onde tinha fácil acesso aos seus vícios: mulheres, jogo, negociatas e corrupção. - Você parecia achar que tinha sido espancado.
Tahir ficou gelado. Ele jamais admitiria tal coisa, ainda mais para um estranho! Quem seria aquela mulher? Ele reabriu os olhos e mergulhou nas profundezas castanhas. A luz do dia ela era ainda mais bonita. Agora ele se recordava da mulher que o perseguira em pensamento, ou seria em sonhos?
- Quem é você? - Ele notou os cabelos cuidadosamente presos, a ausência de joias, a blusa amarela e as calças de algodão bege. Ela não se vestia como uma das mulheres locais, mas somente alguém da região estaria ali. Da posição que ele estava, ela parecia ter pernas intermináveis, e o algodão marcava a curva de suas coxas e de seus quadris. Ela sentou no chão, ao lado dele, exalando um suave perfume, e, quando se inclinou na sua direção, seus seios repuxaram o tecido da blusa amarela. Tahir sentiu um calor na virilha. Não, ele ainda não morrera. Afinal, talvez isso fosse uma vantagem.
- O meu nome é Annalisa Hansen. - Ela hesitou, como se esperasse que ele dissesse algo. - Você está aqui há alguns dias. Você simplesmente surgiu no meio do deserto.
- Há alguns dias? - Como ele perdera a noção por tanto tempo?
- Você está ferido. - Ela apontou a cabeça e o peito de Tahir. - Meu palpite é que você esteve um bom tempo no deserto. Quando me encontrou, estava seriamente desidratado. - Ela tocou-lhe a testa. Tahir teve a sensação de frescor e de familiaridade. Ele tinha uma vaga lembrança de ser tocado, de água e de palavras de ânimo. - Você alternou períodos de consciência e inconsciência. - Ela recolheu a mão e ele desejou que ela voltasse a tocá-lo. - O seu amiguinho estava preocupado.
- Amiguinho? - Ele olhou ao redor e viu a tenda despretensiosa, os utensílios cuidadosamente arrumados num canto. A brisa agitou as páginas de um livro aberto.
- Você não se lembra? - Ela o examinou, muito séria.
- Não. - Ele se lembrou a tempo que não deveria balançar a cabeça. - Eu não me recordo. - Era verdade. Seu raciocínio estava frágil e incompleto. Ele não conseguia registrar os fatos.
- Tudo bem - ela disse, compreensiva. Tahir se perguntou quem seria aquela mulher que cuidava dele num oásis do deserto. - Você levou uma tremenda pancada na cabeça. É natural que fique confuso por algum tempo.
- Diga... - Ele estava preocupado com a perda de memória. Lembrava-se de um cassino, de uma mulher quase sentada em seu colo, da pilha de fichas que aumentava. Lembrava-se de um iate em uma marina movimentada, de uma festa num apartamento de cobertura, de uma reunião de negócios onde as pessoas tinham os rostos borrados. Não se recordava de detalhes. - Que amiguinho? - Ela sorriu e o sol pareceu iluminar o interior da tenda.
- Você estava carregando um cabrito.
- Um cabrito? Que maluquice é essa?
- Sim - ela deu uma risada. - Um cabritinho. Ele parece seu amigo. Ele sai à procura de comida, mas sempre volta para dormir do lado de fora da tenda.
Um cabrito? Ele não se lembrava, e o branco era apavorante.
- O que mais? - ele murmurou. Tinha que haver algo mais. Ela deu de ombros e ele viu um brilho em seus olhos. Seria aflição, medo?
- Nada mais. Você apenas apareceu. Talvez você possa me dizer alguma coisa. - Ela apertou o lóbulo da orelha, nervosa. - Quem é você?
- Meu nome é Tahir...
- E... - ela disse, encorajando-o.
Ele sentiu um peso no peito, seu estômago se contraiu e o sangue lhe subiu à cabeça. O caleidoscópio de imagens indistintas girava em sua cabeça e a deixava vazia.
- Receio que isso seja tudo o que sei. - Ele tentou sorrir. - Parece que perdi a memória.