Aparentemente, ele estava fora de perigo, mas ainda dormia demais e, às vezes, tinha febre alta. Também não conseguia lembrar nada além de imagens esparsas. Annalisa quase desejava ter seguido os conselhos de seu pai e estudado medicina, para saber o que fazer, mas, embora se orgulhasse de ajudá-lo, a medicina jamais fora seu sonho.
- Há quanto tempo você é astrônoma?
Annalisa desviou os olhos da refeição que cozinhava na fogueira. Tahir estava sentado no lugar habitual, encostado na palmeira, lendo um livro de astronomia. A pergunta inofensiva fora a primeira de cunho pessoal. Ele sempre perguntava sobre o deserto e sobre Qusay, e ela se divertia com a conversa inteligente, mas não tinha o hábito de falar a respeito de si mesma.
- Eu não sou, mas o meu pai era astrônomo amador. Cresci observando as estrelas.
- Era ele quem costumava acompanhá-la no deserto? - ele perguntou.
Ela tirou a panela do fogo.
- Era. - Aquelas viagens constituíam um precioso descanso do exaustivo trabalho do pai.
- Ele não pôde vir desta vez?
Annalisa se concentrou em mexer o delicioso cuscuz de amêndoas, especiarias e frutas secas.
- Meu pai morreu. - Ela foi quase seca, mas era difícil falar sobre o pai, que fora o centro de sua vida, seu esteio, seu amigo.
- Sinto muito por sua perda, Annalisa.
- Obrigada. - Ela hesitou, percebendo que deveria dizer algo. - Foi há seis meses, mas ainda é difícil.
- Você não tem mais ninguém?
Annalisa ficou tensa ao lembrar como sua família insistira para que ela se casasse, na melhor das intenções. Ficara cada vez mais difícil evitar as propostas de lhe arranjar um homem respeitável que cuidasse dela. Ela crescera com toda a liberdade que o pai europeu lhe proporcionara, e mesmo o avô, tão conservador, compreendera que um casamento arranjado não daria certo para ela. Ficaria sufocada, levando a vida restrita de uma esposa tradicional de Qusay. Mas seu avô também morrera... Ela mordeu os lábios, intensamente triste. Não precisava que alguém cuidasse dela. Tinha planos de conhecer um mundo do qual só ouvira falar, e queria ela própria escolher sua vida.
- Minha mãe morreu quando eu era menina, mas não estou sozinha. - Ela sorriu, enquanto os servia e sentava ao lado de Tahir. - Tenho tios e tias, primos e seus filhos. - Ela era uma estranha na família da mãe e nunca se sentira à vontade.
- Obrigado. Como um médico chamado Hansen veio parar em Qusay? O nome é estrangeiro.
- É dinamarquês. - Annalisa se ajeitou na esteira. - Meu pai era meio dinamarquês, meio inglês. Há muitos anos ele veio até Qusay para observar as estrelas. Gostou e resolveu ficar. - Ela não mencionou a lenda que corria na família, de que o pai se apaixonara por sua mãe à primeira vista, o mesmo ocorrendo com ela. Os dois haviam esperado anos, até que a família aprovasse o casamento.
- Então, observar as estrelas é uma tradição de família?
- Mais ou menos. Meu pai acreditava ter descoberto um cometa. Ele e vários amigos ao redor do mundo esperavam poder provar sua existência. - Ela suspirou ao recordar a promessa que fizera ao pai. - Espero encontrá-lo. O cometa Asiya.
- Bonito nome.
Annalisa engoliu em seco. Era o nome de sua mãe, de quem ela mal se lembrava. Tudo que ela recordava era da tristeza do pai e do seu amor, que durara muitos anos. Ele lutara contra a doença para tentar provar a existência do cometa e lhe dar o nome da esposa, mas seu corpo o traíra antes que conseguisse. Annalisa conteve as lágrimas.
- Eu prometi que estaria aqui para vê-lo. - Uma última peregrinação, antes de partir. Naquela semana, cientistas de todo o mundo estariam procurando o cometa. Ela estaria em Qusay, a terra de sua mãe, para procurar em nome do pai.
- Esta noite? - Ele a pegou de surpresa e indicou a comida. - Estamos comendo mais cedo que de costume. - Annalisa concordou, admirada que um homem de poucas palavras percebesse tanta coisa. Ele teria notado o modo como ela o seguia com os olhos? Ela olhou para o outro lado, triste.
- Se tudo der certo, sim. - Ela suspirou.
- E o que você vai fazer, depois que observar o cometa?
Annalisa tentou conter a ansiedade a respeito do que viria a seguir. Era o que ela queria, o que sempre planejara...
- Depois, partirei de Qusay. - Embora falasse em voz alta, para ela não parecia real. Depois de anos desejando conhecer o mundo, ele parecia estar ali. - Pretendo viajar por alguns meses, conhecer os cientistas com quem meu pai e eu nos correspondemos há tempo. Vou fazer turismo. - Ela sorriu ao se imaginar em Copenhague, Roma e Paris. - Depois, vou para a faculdade.
- Medicina ou astronomia?
- Nenhuma das duas. Dessa vez pretendo seguir meu próprio caminho. Quero ser professora.
Tahir andou de um lado para o outro. Estava inquieto demais para sossegar aquela noite: seus nervos estavam à flor da pele e sua cabeça latejava. Ele tentou atribuir sua impaciência à lenta recuperação, à falta de memória, mas sabia que o motivo estava em outro lugar: em Annalisa. Ele tentava se manter distante, mas a dificuldade é que estavam juntos num acampamento, em uma tenda. Além disso, bastava fechar os olhos para ver a curva delicada de seus lábios, de seus seios e de seus quadris, para sentir o perfume de sua pele, doce como o mel, e para ouvir o som suave e rouco de sua voz. Mas não era apenas o corpo de Annalisa que fazia o sangue de Tahir ferver. Ela possuía algo indefinível que o atraía. Talvez fossem sua calma e sua compostura; sua gentileza e sua mente ágil; o modo como ria diante da excentricidade do cabrito que perambulava pelo acampamento ou quando falava em viajar. Quando ela sorria, vinha de dentro, e Tahir se aquecia com o brilho que ela irradiava. O que ele mais desejava é que ela sorrisse para ele.
Ele caminhou até o limite mais distante do oásis, onde os arbustos eram mais densos, e quando se deu conta, era tarde para voltar. Ele ouviu o barulho da água na mesma hora em que viu a silhueta prateada e curvilínea se movendo dentro do poço. Annalisa deveria ter pensado que ele estava dormindo, pois se despira totalmente. Tahir olhou-a com olhos famintos, traçou o contorno escuro formado pelo ângulo de suas coxas, seguiu a curva de suas costas. Ela levantou os braços para enrolar os cabelos e os seus seios se ergueram de modo convidativo. O impacto da visão provocou uma série de espasmos no corpo de Tahir e ele teve uma ereção, seus músculos se contraíram, sua respiração ficou ofegante e ele crispou as mãos. Estava tão preocupado em controlar o impulso de ir até ela que demorou a perceber que já a vira na mesma situação: gloriosamente nua à luz do entardecer, perfeita como uma ninfa, delicada e sedutora, banhando-se na mesma fonte. Tahir colocou a mão na cabeça e o mundo começou a rodar. As imagens desconexas começaram a se encaixar. Ele cambaleava na areia, dirigindo-se para o oásis. Carregava algo no colo. Estava deitado ao sol, com a boca tão seca quanto o grande deserto de Qusay. O prazer de voar perigosamente baixo sobre as colinas de areia. Imagens esparsas, mas suficientes para lhe dar uma noção de identidade.
- Está vendo? - perguntou Annalisa, excitada. Logo o cometa desapareceria, mas, por enquanto, sua cauda estava nítida. - Meu pai tinha razão. - Ela estava orgulhosa.
- Estou. - Tahir parecia abatido ao se curvar sobre o telescópio. Estava daquele jeito desde que saíra da tenda. Annalisa não queria acordá-lo, sabendo que era importante que ele descansasse, mas ele, afinal, se juntara a ela ao lado do telescópio. Ela ficou feliz por ter alguém com quem compartilhar o momento, e, mais ainda, que esse alguém fosse Tahir. Ele levantou a cabeça e olhou para ela.
- Parabéns. Você deve estar orgulhosa. - Ele passou a mão na cabeça.
Annalisa se arrepiou e fechou o casaco, não por estar com frio, mas porque desejava imitá-lo e passar as mãos em seus cabelos. Ela olhou para o céu.
- É maravilhoso, não é? Agora será oficialmente registrado, como ele queria.
Lado a lado, os dois observaram o cometa sumir no horizonte, e permaneceram parados no vasto silêncio por algum tempo. Annalisa começou a desmontar o telescópio. Estava emocionada demais para saber o que sentia, mas, lembrando-se do pai, a sensação que predominava era a de perda. Desde que ele morrera, ela se preparara para aquela noite, para realizar seu último desejo. Estava feito, e de repente um enorme vazio se abria diante dela: seu pai morrera, sua vida passada se acabara e seus planos para o futuro lhe pareciam insignificantes. Ela ficou angustiada e começou a tremer.
- Deixe - disse Tahir junto ao ouvido de Annalisa. - Eu guardo tudo para você. - Ele desmontou o telescópio, colocou-o na caixa e os dois tomaram o caminho de volta.
- Um instante, e tudo se acaba - ela lamentou.
- Até a próxima vez que o Asiya aparecer.
- Claro. - Ela entrou na tenda e procurou a lamparina. Sentia-se tão triste quanto no dia que seu pai morrera, mas tentou controlar a dor. Tinha a vida diante de si, viagens, uma carreira, novos amigos e experi ências, mas naquele momento se sentia muito sozinha. A lamparina finalmente acendeu. Ela se virou e deu de cara com Tahir. Os seus olhos se encontraram.
- Ah, Annalisa, não chore. - Ele passou o dedo no rosto dela.
- Não estou... - Ela parou, admirada por ele lhe secar as lágrimas. Ela ainda não chorara. Não tivera tempo para lágrimas. Depois que seu pai morrera, ela conseguira um médico para substituí-lo e o apresentara à comunidade; em seguida, fora à procura do cometa para que ele fosse reconhecido. Agora, tudo se acabara, e ela não se sentia mais necessária. Sentia-se à deriva, e ficou horrorizada por demonstrar sua fragilidade. Tahir franziu a testa e acariciou-lhe o rosto, esperando. Annalisa tentou se afastar, mas cambaleou.
- Você deveria estar orgulhosa e feliz.
- Estou. - Ela conteve um suspiro.
- Você sente saudades dele. É difícil ficar sozinha, mas você é forte. Sobreviverá. - Tahir sussurrou de maneira quase inaudível, mas parecia compreender o que ela estava sentindo. De repente, ele a soltou e recuou. Annalisa estremeceu e se aproximou instinti vamente. Desde que adormecera em seus braços, sabia que ele era perigoso, mas ao ver o desejo em seus olhos, a vontade de mergulhar no perigo foi mais forte. Sem se dar tempo para raciocinar, ela acariciou-lhe o rosto e se arrepiou com a aspereza de sua barba. Sentiu-se invadir pelo calor e suas pernas ficaram bambas. Tahir respirou fundo e segurou-a pelas mãos.
- Você não está raciocinando direito.
- Por favor, Tahir. - Ela não sabia o que esta va pedindo, mas sabia que não suportaria que ele a deixasse.
- O que você quer, Annalisa? - A voz dele estava tensa, e Annalisa se lembrou da vulnerabilidade dele. Ela não sabia o que responder, mas sabia que queria algo de Tahir. A ligação entre os dois era tão profunda e real que não poderia ser ignorada. Ela tocou-lhe o peito e sentiu as batidas do seu coração. - Annalisa. - Ele falou com cautela, preocupado. - Não faça isso.
- Por favor... - Ela sussurrou, sentindo necessidade de tocá-lo só uma vez. Annalisa ficou na ponta dos pés, fechou os olhos e o beijou, surpreendendo-se com a maciez de sua boca, deliciando-se com a aspereza de sua barba. Sentiu-se poderosa e ousada, e sua solidão desapareceu, mas quando ela se afastou e abriu os olhos percebeu que ele ainda estava tenso. Ela ultrapassara os limites. Sentiu-se envergonhada, mordeu o lábio e conteve uma desculpa. Beijar um homem não era tão fácil quanto parecia. Ainda mais quando ele não havia pedido. Ela começou a se afastar, mas ele a segurou, muito sério, embora seus olhos brilhassem.
- É isto que você quer? - Ele falou junto aos lábios dela, e sem lhe dar tempo para responder, beijou-a. Annalisa estremeceu e se agarrou a ele para não cair. Tahir contornou-lhe o lábio com a língua, invadiu sua boca e explorou-a. Ela reagiu ao convite. Ele gemeu e abraçou-a como se quisesse absorvê-la, dominá-la e protegê-la. Annalisa jamais fora beijada e abraçada com tanta ânsia, e ficou deliciada ao sentir que ele estava excitado. Que tipo de mulher ela se tornara? Quando ele a soltou, ela estava trêmula e os dois ofegavam, mas ele parecia mais controlado que nunca, e não se mexia, a não ser pelo movimento da respiração.
- Tahir? - Annalisa afagou-lhe o pescoço. Ele fechou os olhos e gemeu. Ela se assustou. - Eu machuquei você? Está sentindo dor? - De repente, ele agarrou as mãos dela, levantou a cabeça e engoliu com dificuldade. Ela ficou em pânico. - Tahir! O que houve?
Ele deu o sorriso que a deixava descontrolada. Annalisa conteve o fôlego e quis beijá-lo outra vez.
- Não há nada de errado, pequenina. Você não respondeu. Era isso que você queria? - Ela acenou que sim. - Então, diga, Annalisa.
- Quero que você me beije - ela disse, enfeitiçada pelo que via em seus olhos.
- Isso é tudo? - Ele sussurrou no ouvido dela. Ela estremeceu. - O que mais você deseja?
- Eu... - Por que ele fazia perguntas? Ela não queria pensar nem falar, queria apenas sentir.
- É isso? - Ele passou a mão no pescoço de Annalisa e contornou seu decote, parando antes de tocar-lhe o seio. Ela conteve o fôlego, desejando que ele prosseguisse e quase gritando de frustração. Tomada por uma ânsia que ela não compreendia, Annalisa empurrou o corpo contra a mão de Tahir. Ele acariciou-lhe o mamilo e ela quase desmaiou de prazer.
- Por favor, Tahir - ela pediu, mas ele balançou a cabeça.
- Você precisa me dizer. Você quer que eu a toque assim? - Ele a acariciou e ela sentiu os joelhos dobrarem. Ele a segurou pelo braço. - Deveríamos parar agora.
- Não! - Ela soltou o braço, esqueceu a vergonha e se agarrou a Tahir. - Eu não quero parar. Eu quero... tudo, Tahir. - Ela tentou se concentrar nas palavras, não apenas nas sensações. - Preciso de você, por favor.