Mas, por agora, só resta aguardar o meu "sinal" para entrar em campo. E ele apareceu num belíssimo vestido de seda de cor esmeralda e sapatos do mais puro couro. Amélia consegue surpreender cada vez mais nos seus looks, possivelmente, presentes do homem que ela diz ter um affair. E se ela conseguisse fazê-lo ficar perdidamente apaixonada por ela, esse homem conseguiria tranquilamente comprar a Paris inteira para a Amélia. Então, por que ela ainda prefere caminhos ocultos para ter mais dinheiro?
Eu sei que a vida pessoal dela é um detalhe trivial perto da missão que me espera, mas a minha intuição continua piscando por algum motivo que a minha mente pretende desvendar...
- Pardon pela demora! - ela disse ao se sentar confortavelmente no banco ao meu lado. E nem foi tanto assim comparada com o tempo que ela gastou tentando arrumar um jeito de não amassar o seu caríssimo tecido.
- Tudo bem, onde estamos? - ignorei as formalidades e passei para a ação, não esperando que ela respondesse o que o meu GPS conseguiria dizer.
- Residência de um dos advogados mais prestigiados de Paris, Jean Laurent.
- Laurent? - eu fui pega de surpresa.
- Sim, residência da família Laurent que foi herdada pelo Jean Laurent. Foram sempre uma família de advogados dedicados a negócios, porém, com o assassinato dos seus pais, Jean seguiu a área criminalística. Não teve muita sorte, a sua noiva também foi morta provavelmente por vingança de algum criminoso que ele ajudou a colocar na cadeia. Desde então, ele vive sozinho e conta com a companhia de alguns amigos e essas informações se tornaram assuntos proibidos até serem esquecidos...- ela explicou.
- Compreendo...- murmurei.
"Laurent"
Esse sobrenome ecoou pela minha mente como uma memória sussurrada por uma lembrança de um passado distante. Não é possível que a vida fosse feita de tantas coincidências e que esses fossem os Laurent que o meu papá...
- Francisca? - a Amélia chama.
- Sim? - voltei a colocar os pés no chão.
- Não podemos ser vistas juntas, então eu não preciso dizer que terás que dar o seu jeito para entrar. Eu não posso me comprometer, não nesse momento. Até logo, querida! - ela me despachou, saindo do carro apressadamente e nem sequer olhou para trás.
Noutra ocasião, eu lhe mandaria ir a merda. Me trazer até aqui e não mover uma única pedra, era o mesmo de eu estar sozinha nessa batalha. Entretanto, deixou de ser só sobre o nosso trato ou de apreciar os meus possíveis clientes, mas também de descobrir se esse Laurent foi o mesmo que eu vi ser entregue para a morte anos atrás...
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Sicília, dez anos atrás
Charuto cubano e o melhor vinho da adega eram avisos claros que meu pai receberia visitas importantes e não os habituais que eu e a Lorena apelidamos de imóveis da casa, uma das nossas inúmeras brincadeiras que com o passar do tempo foram sendo esquecidas. Ter perdido a nossa mãe tão prematuramente nos uniu, mas pela mesma razão, a distância ganhava cada vez mais espaço. Ela era cinco anos mais velha, embora as minhas pernas compridas me dessem alguma vantagem e facilmente eu aparentava ser somente três anos mais nova. Duas amigas, comentavam os desconhecidos sóbrios. E para os bêbados, quase gêmeas. A verdade é que em nada parecíamos. Eu herdei a aparência da minha mãe que era colombiana, enquanto a sua genética preferiu uma tonalidade de pêssego, olhos e cabelos castanhos escuros do meu pai italiano. A única coisa em comum eram as nossas manchas de nascença desenhadas nas nossas costas, que cultivávamos o sonho de sermos as únicas no mundo a tê-las.
- Papá vai receber algum convidado especial! - confidenciei com entusiasmo.
Eu não aguentava ver os mesmos rostos e quem sabe viria um rapaz que pudéssemos conhecer e ser o nosso amigo. Para mim, a adolescência batia na porta e com ela, uma imensa vontade de explorar para além da nossa imensa propriedade. Por outro lado, eu a temia, porque, ela ao chegar para a Lorena, algo mágico do nosso mundo se perdeu. Quase sempre não lhe restava tempo para aventurarmos pelos corredores e passagens secretas. Vivia com o nosso pai no escritório ou com os homens de confiança dele, para trabalhos que ela preferia guardar segredo. A sua expressão se tornou dura e era necessária muita maquiagem para dar um pouco de vida ao que morria aos poucos dentro dela.
- Eu sei...- foi o único comentário da minha irmã, logo a criada entrou com um vestido novo.
- Teremos uma festa? - quis eu saber com toda a minha inocência.
Mas as duas me ignoraram e a criada rapidamente concentrou em arrumar os fios rebeldes dela.
- Se ele for bonito que nem o pai, não será um sacrifício o conhecer. - comentou a Anitta, a criada, querendo fazer frente a má vontade da Lorena.
Ele?
- Esse homem esteve aqui, anos atrás, com a mulher, mas nunca trouxe o filho. - a Anitta insiste no diálogo.
De quem estariam conversando? Sem mais detalhes era impossível para eu adivinhar. Óbvio que eu não pertencia a essa conversa e que eu deveria me retirar. Assim fiz, mas, a curiosidade falou mais alto e as minhas orelhas colaram a porta pronto para escutar o que tanto elas segredavam.
- Isso não faz sentido, Anita. - finalmente protestou a Lorena.
- O seu pai prometeu a sua mãe fazer bons casamentos para vocês. E a família Arnault é uma aliada do seu pai, casando a menina com o herdeiro deles, não serão somente parceiros, mas uma família. Eu não preciso dizer o quanto isso é importante...
Casar?
Os meus olhos arregalaram sendo preciso a ajuda da minha mão para fechar a minha boca.
- Ele é velho?- quis a Lorena saber.
- Não, é da sua idade ou talvez dois anos mais velho. - respondeu a criada.
- Deve ter sonhos como eu...- depois do protesto, veio o lamento da minha irmã.
- É tolice, menina. A vocês restam objetivos e negócios! - corrigiu a Anitta com a sua firmeza de sempre.
Fez um silêncio e corri com o receio de ser pega a ouvir a conversa. Entretanto, eu fui vencida pela ideia de poder me esconder atrás de um dos longos cortinados do escritório para descobrir mais. Porém, mal eu sabia que seria a minha vez de ser expulsa do meu próprio paraíso...
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O meu corpo ficou enrolando entre os longos e pesados cortinados que se mantinham firmes contra o sol e a maresia, mantendo as mobílias de madeira poupadas de um possível desgaste. Se elas pudessem falar, contariam as piores histórias e os melhores segredos que acompanharam a minha família por gerações. Eram as melhores testemunhas e companhias do meu pai, ofereciam sempre o silêncio e jamais julgamentos, por mais barbaro que fosse as ações dele.
Os convidados foram os primeiros a chegar. Um homem loiro de olhos azuis acompanhado de um moreno. Se tivessem a mesma idade, eu não saberia dizer. O primeiro tinha o ar sereno e o charme do papà, já o outro, era tão sério como uma porta. O loiro era o chefe da família Arnault e amigo de longa data da minha. A meu ver, ele não era um mafioso convicto, apenas um homem que se perdeu nos jogos e viu-se mergulhado num mar de dívidas. O meu pai ajudou a pagá-las e a salvar a empresa da família dele, e com isso, o senhor Arnault lhe devia favores, que era o mesmo dele ter vendido a sua alma ao diaabo. O moreno era só o seu acompanhante, um homem das leis. Uma péssima escolha para se trazer num lar onde se é amante do crime.
- Eu não tenho palavras para expressar o quão grato estou de teres vindo, Laurent. - disse o senhor Arnault.
Laurent, tentei imitar a pronúncia. No nosso mundo de negócios, os homens tratam entre si, usando só o sobrenome e é importante dizê-lo com firmeza.
- Ainda não acho uma boa ideia. Esse tipo de pessoas são imprevisíveis. Onde que estavas com a cabeça? - ralhou o senhor Laurent.
- Eu era jovem demais para medir as consequências dos meus actos. Pareceu ser a última saída. Eu não esperava um dia construir uma família, ter filhos! E muito menos ser assombrado pelo medo de perder a todos.
- Eu sei! Mas sabes como funciona a palavra e a honra para esse homem?
O senhor Arnault não teve coragem de dizer uma única palavra e o senhor Laurent compreendeu que os dois estavam na toca do leão.
- Mondieu... - foi o que o senhor Laurent conseguiu pronunciar.
- O Adam, meu filho, nunca iria aceitar. Ele é melhor que eu quando se trata de carácter. Ele não se perde facilmente, tem determinação e jeito para os negócios. Provavelmente a empresa irá crescer nas suas mãos. Eu o enviei para estudar com o Jean exatamente para ele não estar aqui.
- És um mafioso, meu amigo. - conclui o senhor Laurent.
Pobre Laurent, ele iria ver o que era um de verdade.
- Se facilitar um mafioso me torna um, sim, eu sou e eu não quero isso para o Adam! Eu não quero essa aliança!
- O que não queres?
O meu pai chegou e os dois homens foram pegos de surpresa. Foram convidados a se sentarem e a Anitta apareceu para servi-los. Depois ela se retirou com a mesma leveza que ela entrou.
- Scusa, não lhe dei as devidas condolências pelo falecimento da senhora Arnault. A família é algo importante, certamente a nossa maior riqueza. Podemos tirar tudo de um homem, mas talvez seja a família que doa mais.
O papá nunca superou a morte da minha mãe, mesmo depois de tantos anos. Era um homem indestrutível, porém, o seu calcanhar de aquiles éramos nós, a sua família. A minha mãe foi a primeira a colher os frutos amargos do poder e, por isso, o pai construiu à nossa volta uma fortaleza, na maior parte das vezes sufocante.
- As flores e os vinhos foram bem recebidos, meu amigo. Eu agradeço.
Todos assentiram e tomaram um gole das suas bebidas.
- Onde está o seu filho, Arnault? Ele não veio? - quis saber o meu pai.
Os dois homens se entreolharam e o senhor Arnault tremeu os lábios tentando encontrar as palavras certas. E meu pai, por sua vez, se acomodou melhor na sua poltrona de couro, com a plena certeza de que, independentemente do que ele iria dizer, tudo deveria sair conforme a sua vontade.
- É sobre isso que eu gostaria de conversar...- ele deu mais um gole da sua bebida e o senhor Laurent bateu contra as suas costas, num gesto de coragem.
- O meu filho, ele não servirá para isso. Ele mal consegue ver sangue. Casar e ser um futuro líder da máfia ao lado da sua primeira filha, está fora de questão.
- Nada que ele não possa aprender. Ele tem seu o sangue e não és nenhum Santo, Arnault.
A tranquilidade do meu pai, para mim, era assustadora.
- Eu sei, mas, eu prometi à minha mulher que eu seria um homem melhor. Eu posso pagar em dinheiro todas as dívidas, inclusive essa...
O meu pai sorriu e finalizou a sua bebida num gole só. Então eu soube ser o momento dele confessar algo importante.
- O dinheiro não pode pagar a palavra de um homem de honra. Eu também prometi a minha mulher casar as minhas filhas com homens de boas famílias e construir alianças fortes que garantiriam a segurança delas. Por que a sua promessa seria mais importante do que a minha, meu amigo?
- Não é que seja, Calderone. É que não faz sentido envolver os nossos filhos num acordo que fizemos tão jovens...
- Ele está certo, papá!
É a vez da Lorena entrar e se existia alguma calma no meu pai, ela começou a evaporar.
- Eu não quero me casar com o filho dele. Eu quero ingressar para o exército!
Duas informações muito difíceis de digerir para um homem que não aceita um não como resposta. E para piorar, o Luigi, um secreto homem de confiança do meu pai vinha atrás. Embora ele o fosse, ainda sim, havia uma testemunha da sua desonra, um mal que deveria ser cortado pela raiz.
Com um simples olhar do meu pai, ele sacou a arma e apontou para a Lorena. E pela primeira vez, eu entendia como funcionava o nosso mundo real e que todas as minhas lembranças não passavam de um conto de fadas que eu e ela criamos para escondermos do monstro da verdade.
- S'il vous plaît! Vamos terminar isso como cavalheiros. - O senhor Laurent tentou diminuir a tensão entre todos. Mas, o nosso sentido de cavalheiro certamente era diferente do seu.
- Esse homem faz-te não ser digna do seu filho e concordas?
- Esse homem está sendo somente justo, papá. Por que é tão difícil para si, fazer o mesmo? - as lágrimas já escorriam pelo rosto da minha irmã e eu estava completamente assustada tanto quanto ela.
- Porque a minha palavra é só uma e não irei quebrá-la quando a dei pela única pessoa que me amou na vida. - gritou o meu pai.
- Ela se foi, o senhor tem a nós. Não machuque as últimas pessoas que te adoram, papá.
Os meus olhos encheram de lágrimas, mas não os do nosso pai. A honra tenderia a pesar mais do que o amor e eu precisei fazer alguma coisa.
- Papá, eu me caso com ele! - me joguei no meio da sala para o espanto de todos. Entretanto, não demorou muito para que todos ignorassem a presença de uma adolescente de doze anos que eu era.
- Não queres casar, tudo bem. Prove que és uma Calderone, mate esses homens que fizeram pouco da sua família. Então dar-te-ei a tua liberdade, sairás da minha casa e nunca mais voltarás.
Ele colocou uma arma sobre a mesa e confesso que se o medo tivesse um cheiro, ele venceria o da madeira do escritório. Em vez disso, o medo congelou o senhor Arnault e Laurent, os transformando em dois alvos a abater.
- E se eu não atirar? - perguntou a Lorena ainda trémula.
E não foi preciso palavras, só o som de um clique da arma nas mãos do Luigi apontado para a cabeça dela foram suficientes.
- Atire, Lorena Tatiane Calderone! - ordenou o meu pai. Porque a segunda opção seria dolorosa para ele.
A Lorena avançou e pegou a arma. Ela piscou algumas vezes, porém, não tinha nada a ser feito. A sua pontaria era perfeita e não foi necessário mais do que dois tiros, cada bala destinada a um dos homens. Eu vi os seus corpos caírem e não havia nada no mundo que pudesse desfazer essa cena na minha mente.
- Muito bem!- elogiou o meu pai sem emoção alguma. - Luigi, certifica se o Senhor Laurent não veio acompanhado da sua esposa. Se for o caso, termine o serviço. Não é boa opção deixar pistas.
Ele concordou e deixou o escritório como um raio. A Lorena foi a próxima e meu pai não tentou impedi-la. Ele dera a sua palavra. E ninguém precisou dizer em voz alta que tudo o que aconteceu nessa sala seria para sempre um segredo.
- Francisca! - o meu pai chamou-me e tremi.
- Hoje em diante, eu só posso contar contigo. Eu não espero que estejas pronta, eu espero que saibas contornar sempre os obstáculos, como agora.
Eu não sabia bem o significado dessas palavras, mas eu os aceitei para mim com a devoção de uma cria abandonada no meio da selva.
- Sim, papá...