- Amigas...- repito lentamente a palavra, saboreando cada sílaba durante o tempo que os meus dedos percorrem o balcão à procura de um meio de tornar essa conversa mais interessante.
Uma faca de prata é a escolhida e o pânico se instala no olhar da Amélia.
- Estás com medo da sua amiga, querida Amélia?
- Não! - ela engole em seco. - Eu sei que nunca farias isso, Francisca, somos aliadas!
- Ah sim, somos aliadas... Agora lembras disso, Amélia? - dou três passos lentos na sua direção.
- Tiveste mil oportunidades de me colocar nesta festa e mesmo assim, preferiste me deixar lá fora abonada à minha própria sorte!
- Eu não podia, o Jean, ele é muito desconfiado. E eu sei que ias conseguir, Francisca! És a mulher de um dos maiores chefes da máfia italiana.
Que péssima hora para ser engraçada e cair em risos é inevitável. Ela insiste no teatro ainda com as mãos coladas ao pescoço.
- Na verdade, pensaste que eu não ia conseguir, Amélia! Porque essa é a diferença entre nós duas, gostas de me subestimar enquanto eu, não o faria, mesmo que sejas uma dondoca que nunca sujaria as suas mãos como eu faço... - passo o dedo pela lâmina da faca para eu certificar o quanto ela está afiada.
- Estás sendo injusta, Fran! Eu te ajudei a fugir do Anthony, mantenho em segredo o seu paradeiro e graças a mim, ele nunca te encontrou.
- Será, Amélia?
Ela não responde e tomo o seu silêncio como um "não".
Os seus dedos colados ao seu pescoço se tornam mais trêmulos. Uma postura um tanto fora do comum, principalmente vindo dela. E olhando com mais atenção, algo brilha discretamente embaixo dos seus finos dedos.
- O que escondes aí?
- Não é nada...
- Tire as mãos do pescoço, Amélia.
- Francisca...
- É uma ordem!
Os seus dedos se soltam da sua pele e exibe-se um delicado colar de ouro preenchido por pequenos diamantes. É a joia que o meu pai me ofereceu no meu aniversário de 17 anos e que sumiu no dia do meu casamento. Eu pretendia usá-lo, mas em vez disso, sobrou o colar que o Anthony me deu de presente de noivado para usar e esse no pescoço da Amélia, eu nunca mais o encontrei.
- Então é isso, querida Amélia, queres o Anthony para si?
- Eu posso explicar...- ela suplica, mas em vão.
- Não sou ingênua. Eu sei que não o ames ou desejas, no fundo, só queres ser igual a mim, ter tudo o que eu tive...
- Não, Francisca! Estás totalmente enganada. - ela insiste, deve pensar que eu acredito em fadas.
- Eu vou te contar um segredo...- giro o metal entre meus dedos.
- Para seres igual a mim, terias que ter perdido a sua mãe ainda criança, descobrir que o teu pai matava homens sem piedade e lidar com o fato da tua irmã ter fugido, deixando nas tuas costas uma herança sangrenta, isso tudo, tendo só treze anos...
Dou mais dois passos e não há mais espaço entre nós para além da ponta da faca encostada contra a sua face.
- Então se conforme, Amélia! - elevo a voz, arrancando com força o colar do pescoço e ela solta um pequeno gemido de dor. As marcas não tardam a surgir e um enorme arranhão se forma sobre a sua pele de porcelana.
- Para de me torturar, Francisca...- ela murmura com a voz rouca, possivelmente segurando as lágrimas, o seu orgulho não a deixaria chorar.
- Eu já disse que adorei o seu vestido? É uma pena se ele rasgasse...
- Não, s'il vous plaît! Eu imploro, foi um presente especial, eu não tenho como encontrar outro igual em nenhum lugar!
Mal ela fechou a boca, percorri levemente o frio metal do seu rosto até o seu decote onde começava o seu belíssimo vestido. O tecido se rendeu facilmente a lâmina afiada e em frações de segundo um longo corte expôs totalmente o tronco seminu da Amélia.
- Para! - ela grita.
O que fez tudo ficar melhor. Porém, não tenho tanto tempo para gastar com essa vadia.
- Esta noite, Amélia, espero ter servido para entenderes de uma vez por todas, que tu, nem ninguém pode me parar. - dessa vez, arremesso a faca na direção dos armários, ficando ela presa na madeira.
Respiro fundo e retorno às minhas taças que devem ser levadas aos empregados de mesa da festa.
- Com licença, madame!
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Música lenta, homens a conversarem entre si e mulheres a cochicharem com sorrisos amarelos, nada surpreendente ou animador. Sempre demasiadamente engessados pelas regras de convivência, que facilmente se confundiria os homens com robôs fardados em fatos pretos e que se movem só para pegar uma bebida. Por outro lado, as mulheres são as heroínas da noite, salvam o cenário dando-lhe alguma cor e calor por disputarem entre si em silêncio quem é a mais bem vestida da festa, uma vaga agora livre após eu ter rasgado o melhor vestido do salão. Porém, nenhuma roupa se compara ao que a Amélia usava, mesmo que eu fizesse dos restos do vestido um trapo.
O acabamento dele era todo perfeito, o tecido se movia ao mínimo balanço das ancas e apesar da cor escolhida sugerir a discrição necessária a esse ambiente, ele era capaz de ser o mais esplêndido, transformando a mulher que o usasse numa pedra de esmeralda ambulante.
Quem desenhou esse vestido conhecia a decoração da enorme sala de visitas do Jean. As paredes em cremes, os sofás de um leve castanho, enormes estantes de branco contendo livros com capas marrons, vermelhas e pretas; A iluminação incandescente que coloca todo o mínimo gesto a prova, por mais que eu procuro me manter discreta num canto para não ser notada.
Quem desenhou o vestido da Amélia, não fez uma roupa apenas, conjugou todos esses elementos entre si numa perfeita harmonia. Sem dúvidas elaborado por uma mente extremamente perfeccionista. E se o Jean for quem eu penso ser, a matemática é exata, assim que 2+2 são quatro, o senhor Arnault mais o senhor Laurent do passado resultaram numa forte amizade entre o Jean e o Adam Arnault, o herdeiro jurado de morte pelo papà.
Durante todos esses anos, eu não tentei saber muito sobre ele para além do óbvio: um homem famoso que herdou um dos sobrenomes e uma marca de negócios mais famosa de Paris. Um playboy, eu deduzi, que não valia a pena eu sujar as minhas mãos e arriscar uma história que ficou guardada no cofre da mente dos que sobreviveram para contar. Mas, se fosse ele o mentor do vestido da Amélia, eu compreendo agora o receio que o senhor Arnault teve em entregar a sua galinha de ovos de ouro. O cara tem talento e isso provavelmente fez decolar o negócio da família. Que pena ele ter tido visão tão tarde, a sua alma já estava vendida e não há nada que poderia ser feito.
Ele seria o amante da Amélia? O homem que ela tenta desesperadamente impressionar enquanto fode com o Anthony na esperança de ter poder? O senhor Arnault e Laurent teriam contado alguma coisa antes de morrer?
Tantas perguntas que precisam de respostas, mas a que importa neste momento é somente uma: são ou não os filhos dos homens que morreram em nome da honra da minha família?
Porque, caso forem, a Amélia está a um passo do segredo e possui em mãos a cabeça mais procurada pelo vaidoso e assassino ego do Anthony...
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Esperei a hora do brinde, em que todos se reuniram na sala, com a exceção da Amélia que deveria estar amuada num canto chorando o seu vestido ou planejando a sua vingança, como se ainda alguém pudesse tirar algo de mim. Mas dela sim, se pode tirar muita coisa. Assim como eu, ela não ama o Anthony, caso sejam amantes. Novamente, ele está sendo feito de pódio, onde se sobe para se ter algo que ele possa oferecer. Nada mais!
O Anthony seria um acompanhante rude para encontros em que se bebe champanhe com taças que flutuam entre os dedos enquanto se conversa sobre artes e os demais assuntos que estiverem em alta. Temas que nunca lhe interessaram, por mais que o meu pai tentasse incutir nele o espírito da alta classe. Mas a persistência dele foi vencida pelos anos de campo da juventude do Anthony, que nunca saíram. Se ele não fosse bom nos negócios ou eu não me encontrasse tão vulnerável com a morte inesperada do meu pai, eu jamais me casaria com ele.
Eu fui saindo de fininho à medida que as taças trincaram e a distração se fez presente entre todos os convidados, então me aventuro no primeiro corredor livre que eu encontro. Não conheço a planta da casa, o que dificulta as minhas escolhas e eu não sei quanto tempo me resta para procurar pelo escritório, o santuário de um advogado. Há não ser que Jean seja suficientemente organizado ao ponto de deixar claro aos seus convidados que é uma área restrita para os ansiosos por uma escapadela mais quente do que a festa.
- Não acredito! - os meus olhos deparam com um aviso colado na terceira porta à direita.
Monsieur Jean está sendo imprevisível ou é meu dia de sorte?
Antes de aproximar, olho para todos os lados, não há ninguém, porém, um calafrio percorre minha espinha, ao pensar o quanto a minha vida poderá mudar ao girar esta maçaneta...