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- Eu também - respondo. - Tia Carmem acha que me deixou parecendo adolescente.
- É porque ela não sabe a mulher que você é - ele diz perto demais do meu pescoço, fazendo minha nuca arrepiar. Claro que ele percebe e planta um beijo ali. - Eu adoro ser o único a saber.
- Tá viajando na maionese e sabe disso - retruco, quando suas mãos se fecham em minha cintura e me puxam para seu colo. - Túlio.
- Milena. - E assim, sem precisar de muita insistência, enfiou a mão dentro da minha camisa, abrindo vários botões no processo. Maldita roupa sem qualidade! Ou bendita. Não sei.
E é assim que as coisas são entre nós. Não somos parentes. Somos um tipo de amizade colorida do passado em que rola umas recaídas de vez em quando. Ou sempre que podemos. Apenas porque eu posso. Por que eu quero. Nem que seja para me vingar e fazer raiva em Isaac. Por que sim.
Hoje, além do movimento do restaurante, temos o serviço de buffet. Antes, meu pai cuidaria daqui e eu seguiria com o buffet, mas agora tenho que lidar com isso sozinho. Minha sorte: ter meu primo Marco como souzchef. Meu problema? Exatamente o mesmo. Marco chegou da Itália há uns cinco anos e desde então, tem tentado de tudo para conseguir sair do restaurante. Nem preciso dizer que não deu certo. O filho da mãe é fera na cozinha, mas é meio ruim das ideias.
Confiro mais uma vez todas as reservas e aviso à Monique que deve manter o marido concentrado. Ela me assegura mais uma vez que o tem sob controle e me manda sair logo dali. E é exatamente o que farei, porque não posso me atrasar. Milton Shimitz é um cliente regular do restaurante e nos contratou para um jantar em homenagem ao sobrinho que acaba de chegar de Londres ou coisa assim.
Convoco minha equipe e, com tudo preparado, seguimos para o condomínio de luxo em que o evento acontecerá.
Com os molhos prontos e as massas cozinhando, me permito relaxar finalmente. Estou mais do que cansado e os últimos dias têm sido muito intensos. A começar com a tal amante do meu pai que quer ser bancada até o fim de seus dias porque era uma promessa de seu "amore".
A raiva que sinto é indescritível e me recrimino por todas as vezes em que fui safado da mesma forma. Maldito, papá! Não que nosso negócio não seja próspero, mas mamma vai descobrir e não faço ideia do que será depois disso.
O fim dos tempos, talvez?
Ainda pensando nos rolos do safado do Sr. Alfredo, ouço uma voz sussurrar em algum lugar ali perto. Meus olhos vagam pela cozinha e pelos meus funcionários já terminando as sobremesas e o prato principal: rondelles de damasco e queijo brie. Tudo está sob controle e todos trabalham em silêncio. Então de onde será que vem...
Um passo para trás e eu a vejo. Com seus cabelos cor-de-rosa e um vestido preto na altura das coxas murmurando no celular. Percebo que ela não parece muito feliz, mas continua falando rapidamente, antes de desligar e enfiar o aparelho sortudo em seu decote. Mais alguns passos e noto
um cara alto de cabelos escuros se aproximar dela com uma intimidade irritante.
É o mesmo cara de hoje cedo, noto. O tal sobrinho CEO da empresa de Seu Milton que retornou do exterior após conseguir um contrato milionário. Será que ele e Mi-Milena - sim, eu não esqueci seu nome. Nem o rubor de suas bochechas ou seu cheiro de flores. É, por algum motivo, essa garota imprimiu uma marca e tanto em mim - tem alguma coisa? Será que ela é namorada dele?
Presto atenção aos seus movimentos impacientes quando o cara se aproxima ainda mais. Quando estou quase me permitindo perguntar a ela se precisa de ajuda, ele puxa uma das mechas coloridas de rosa e brinca:
- Mimi gatinha - diz num tom de voz para lá de carinhoso e íntimo -, Tio Milton logo vai notar nossa ausência. Só diga que sim.
- Sem a menor chance! - declara decidida. O alívio em meu peito é assustador. Eu nem conheço essa moça. O cara insistente estreita os olhos e a encurrala contra a parede, mas a expressão no rosto de Mimi gatinha é tudo, menos assustada. - Minha dupla é a Cami e está falado. Agora vamos logo com isso porque eu trabalho amanhã cedo - diz, entrando pela porta da cozinha sem olhar para frente. - E você também.
Diz no meu peito.
Essa é a nossa segunda colisão e eu espero continuar contando.
Como da primeira vez, seguro-a pelos braços delicados e a ajudo a se equilibrar. Ela ergue os olhos escuros e seu piercing no septo reluz sob a luz intensa da cozinha. Como é que eu não havia reparado nele aquela noite? - Você.
- Oi, Milena - minha voz sai ainda mais rouca, enquanto me concentro em seus lábios cheios. Obrigo-me a solta-la tão logo o cara que a acompanhava entra na cozinha.
- Fred. - Ela se lembra do meu nome, percebo exultante.
Não faz mal eu saber o dela, não é? Questão de educação, convenço a mim mesmo.
- Túlio - diz o cara parado ao nosso lado com cara de poucos amigos. Mais um pouquinho e ele mija nos pés dela. - Agora que as apresentações foram feitas, será que podemos ir logo terminar esse jogo? Eu estou morto de fome.
- Claro - Milena responde com os olhos fixos em mim. Os lábios vermelhos se abrindo levemente ao reparar em meu dólmã. - Até mais, Fred.
- Nos esbarramos por aí, Mi-Milena - brinco.
Ontem a noite achei que ela poderia ser uma conquista de apenas uma noite, mas hoje, depois dessa coincidência, não me atrevo a brincar com o destino.
Se por um acaso esse executivo da cara de cu não for namorado dela, eu juro solenemente
conquistar essa garota linda de cabelos cor-de-rosa. E prometo que dessa vez vai ser pra valer.
Respiro fundo seu perfume floral e adocicado e volto aos meus afazeres. Ainda temos um jantar para servir e algumas informações para descobrir.
- Posso saber o que foi isso? - pergunto à Tulio assim que deixamos a cozinha.
Quando percebe que seu olhar falso de desentendido não me convenceria de forma alguma, ele puxa o ar, e finalmente decide falar alguma coisa.
- De onde você conhece o Troisgros baby? - questiona rapidamente.
- Eu esbarrei com ele no outro dia. - Túlio estreita os olhos - Literalmente. Num daqueles lugares que a Jackie ama.
- Tá explicada a parte baby, então - minha amiga tem uma certa fama de não se envolver com caras mais velhos. - Está interessada nele?
- De onde surgiu isso? - pergunto, porque realmente não entendi onde ele quer chegar com essa conversa.
- Só para saber. - Seus olhos escurecem um pouco, enquanto ele encara meu rosto e meus lábios por um momento. - Me preocupo com você, Mi.
- Eu tô bem - tranquilizo-o. - Vamos logo com esse jogo? Cami vai matar a gente por essa demora.
- Ela que se dane - ele resmunga em suas roupas finas. Uma contradição ambulante, é isso que Túlio é.
- Milena, você fez a gente perder de propósito! - Cami acusa pela milésima vez. Sim, minha prima de vinte e três anos ainda apela quando perde no jogo de tabuleiro em família. Tio Milton gargalha ao ver o rosto vermelho da filha e tenta se desculpar por ter me pedido para passar a carta por baixo da mesa.
Eu só queria que o jogo acabasse rápido, não me julguem.
Depois do episódio na cozinha, passei a ficar extremamente atenta a toda e qualquer movimentação por lá. Se antes eu tinha achado aquele cara parecido com uma estátua grega, nem comento sobre ele usando aquela camisa típica de Chef. Eu poderia arrancar aquele avental branco dele com os dentes.
Num outro momento, claro.
Por hoje, estou bastante satisfeita. A porta da sala se escancara e várias pessoas uniformizadas e bastante organizadas entram com diversos pratos e vão dispondo-os à mesa. Tio Milton encerra o choro falso de Cami e nos convida para a mesa onde o jantar está sendo servido. O cheiro da comida faz meu estômago roncar e é claro que Túlio tinha que estar ao meu lado, apenas para rir da minha cara e denunciar a situação a todos ali presentes. Inclusive ao Chef que acaba de aparecer e mantém seus olhos verdes curiosos fixos em mim.
- Esse é Fred - ele apresenta a todos nós. - Ele é o chef responsável por aquele restaurante italiano maravilhoso. Obrigado, filho. E sinto muito pelo seu pai. Ele era um homem muito bom e um chef ainda melhor.
- Eu agradeço, Seu Milton - Fred diz, com o rosto um pouco vermelho. - Espero que gostem da comida. Mangiare! - exclama.
Seus olhos ainda me observam atentamente, e ao Túlio, que se sentou entre mim e tio Milton e parece um tanto absorto demais em seu prato de comida.
- Só um momento! - Tio Milton é bastante famoso por seus discursos imensos e por gostar de fazê-los sempre que tem oportunidade. Olho para meu rondelli no prato e suspiro triste. Saudade de tudo o que não vivemos juntos. Solto o garfo a contragosto e olho para o meu tio, aguardando pelas palavras de sabedoria que me manterão distantes do novo amor da minha vida, cujo aroma está convocando meu estômago a sair de mim e bater na cara de quem se atrever a tentar afastá-lo do rondelli suculento.