Tento não parecer nervoso por roubar informações sigilosas do hospital, que pode causar minha demissão e provavelmente um processo criminoso. Abro a porta e Tadeu entra rápido, indo direto pra frente do meu ventilador.
- Eu te odeio muito por me fazer sair do ar condicionado da empresa. Uma hora eu desisto de te ajudar e te obrigo a sair daqui.
Fecho a porta e já vou pra cozinha buscar um enorme copo de água gelada pra ele.
- Fez tudo?
- Sim, está em cima da mesa!
Respondo e pego a jarra com água da geladeira e um copo grande no armário.
- Trouxe mais quatro pastas.
- Deixa na mesa.
- Por que você tem impresso uma lei sobre doação de órgãos?
Que merda! Esqueci de guardar a lei que imprimi pra ler. Volto rápido pra sala, dou a água para o curioso e arranco de sua mão a lei.
- Estava na minha gaveta, usei quando precisei autorizar a doação dos órgãos da Sabrina.
Abro a gaveta da minha mesa e jogo os papeis dentro, fechando em seguida.
- Que susto! Por um minuto imaginei que estava pensando em suicídio e uma forma de deixar tudo certo para ser doador.
- Se alguma coisa acontecer comigo, já tem tudo orientado nos meus documentos que sou doador. E quanto ao suicídio...
Dou de ombro, porque muitas vezes me peguei pensando em formas rápidas e sem dor de acabar com tudo.
- Já pensou em tirar a própria vida?
- O que acha? Pensa um pouco, olha a minha vida e me diz se vale a pena ainda ficar aqui.
- Felipe, você nunca conversou assim comigo e estou ficando preocupado.
- Você nunca me perguntou nada sobre esse assunto.
Vou para o sofá e sento nele, jogando minhas costas no encosto e deitando minha cabeça que parece que vai explodir. Fecho meus olhos e respiro fundo, ouvindo os passos do Tadeu se aproximando.
- Você precisa de ajuda!
Ignoro-o e volto a puxar o ar com força pra dentro de mim, soltando em seguida.
- Posso trazer ajuda até você.
Abro um olho e o vejo de pé a minha frente, me olhando com medo e pena.
- Vai trazer minha família de volta?
- Sabe que não posso.
- Então você não tem como me trazer ajuda.
- Ajuda profissional, pra você aceitar o luto.
- Aceitar o luto?
Pergunto irônico e começo a rir.
- Já perdeu alguém próximo, Tadeu?
Sento direito, mantendo os olhos nele.
- Perdi minha avó faz uns três anos.
- Espera, vou reformular a pergunta.
- Você já perdeu alguém de forma inesperada, alguém que não seguiu o curso natural da vida?
- Não!
- Você conhece a saudade que o luto trás, mas nunca sentiu a perda, a sensação de vazio, de impotência, a raiva pela forma como aconteceu e o medo da solidão.
- Por isso mesmo que você precisa de ajuda, pra poder entender tudo isso.
Senta do meu lado e ainda mantém o olhar com pena em mim.
- Não podemos trazer seus pais e muito menos a Sabrina de volta, mas você pode encontrar novas pessoas que te façam se sentir vivo, feliz, que ajude a preencher o vazio.
- Não tem como preencher o vazio de uma pessoa, com outra pessoa.
Encaro minhas mãos e parece absurdo o que andei pensando esses dias, mas quem sabe o Tadeu me entenda e acredite na mesma coisa.
- Você acha que...
Perco a coragem de perguntar, por que pode ser algo muito idiota. Será que estou ficando louco?
- Continua!
Tadeu pede e passo a mão pelos meus cabelos, tentando colocar as coisas em ordem na minha cabeça.
- O que está acontecendo, Felipe?
Levanto do sofá e caminho pela sala sem rumo algum, só tentando não surtar.
- Solta!
Paro de andar e foco nele.
- Você acha possível que a pessoa que recebeu o órgão de quem faleceu, carregue junto alguma lembrança da vida dela?
- Não entendi!
- O órgão que a pessoa recebeu, se ele leva junto lembranças da vida de quem se foi?
- Felipe, que assunto louco é esse?
- Eu sei! Não faz sentido algum, mas...
Bufo cansado me sentindo um idiota.
- O coração que bate em um novo peito agora poderia se lembrar ou carregar o afeto de quem antes era seu dono? A pele que antes foi tocada por mim, reconheceria meu toque estando em outra pessoa?
- Espera!
Tadeu levanta e faz cara de quem descobriu o enigma do mundo.
- Por isso a lei sobre doadores de órgãos.
Vai rápido até a mesa e vasculha as pastas. Pega a do hospital e tira tudo de dentro dela.
- Foi nesse hospital que sua irmã morreu?
- Foi!
Respondo baixo e ele continua mexendo em tudo.
- Foi aqui que retiraram os órgãos e decidiram quem seriam as pessoas que receberiam?
- Sim!
- Caralho, Felipe!
Diz nervoso, bravo, revoltado, não sei dizer ao certo como ele está agora.
- Me diz que você não copiou os arquivos do hospital que falava da sua irmã e dos órgãos doados.
Não respondo e Tadeu solta uma sequência bem grande de palavrões.
- Isso vai dar uma enorme merda.
- Eu só copiei, não fiz mais nada.
Ele passa a mão no rosto e quase arranca os cabelos.
- Você não vai usar esses dados, vai me prometer que vai apagar o que tem.
- Não posso!
- Felipe, que merda você vai fazer com essas informações?
- Ainda não sei! Talvez procurar saber se deu certo a doação, se a pessoa está bem.
- Só isso?
- Eu não sei!
Tadeu vem em minha direção, focando os olhos no fundo dos meus.
- Depois das perguntas insanas que me fez agora pouco, acho que sabe muito bem o que quero fazer.
Meu coração acelera, minhas mãos tremem e sinto os olhos se enchendo de lágrimas.
- Sabia!
Diz com a voz baixa e seus ombros que antes estavam erguidos imponentes, se abaixam em sinal de paz. Seus olhos não parecem mais irritados sobre mim e voltam a ter pena.
- O que você quer fazer é loucura e sabe disso.
- Talvez seja uma loucura, mas eu preciso saber.
- O que você quer saber?
Uma lágrima solitária escorre pelo meu rosto e limpo rápido.
- Me diz o que você quer com isso tudo?
- Quero saber se ainda existe um pedacinho dela aqui comigo. Não um pedaço de órgãos, mas um pedaço da minha irmã, uma lembrança, qualquer coisa.
- Órgãos não carregam lembranças, Felipe!
- Me deixa pensar que sim! Me deixa acreditar que talvez eu encontre novamente um motivo pra viver. Se Deus realmente existe, vai entender meu desespero, atender o desejo do meu coração e vou encontrar um pedaço da Sabrina em uma dessas pessoas que ela ajudou.
Muitas lágrimas descem pelo meu rosto e já não consigo mais limpar todas.
- Ele me deve isso!