Olho mais uma vez meu relógio e começo a ficar preocupado. Sabrina ficou de me ligar assim que saísse do hotel para retornar pra casa. Não devia ter deixado minha irmã ir nessa viagem. Meu coração está apertado demais e isso não é boa coisa. Desde que nossos pais morreram, ela tem sido meu mundo, meu foco, a única coisa que importa pra mim. Essa é sua primeira viagem pra longe, sem mim e sei que posso estar surtando, mas não consigo evitar. Mesmo ela já tendo seus vinte e dois anos, sempre será a garotinha com doze anos perdida sem nossos pais. Ela se tornou minha responsabilidade quando eu só tinha dezoito anos. Meu celular toca e solto o ar aliviado quando vejo seu nome piscar na tela.
- Demorou pra me ligar!
Atendo já sendo o chato que ela odeia. Sua bufada irritada me faz sorrir.
- Passou cinco minutos do horário que estipulou para te ligar, Felipe. Para de ser chato! Caramba, eu já tenho vinte e dois anos.
- Pode ter a idade que for, sempre me preocuparei com você. Sabe disso!
- Sei! Mas tente não ser tão chato e controlador.
- Já estão saindo?
- Colocando as malas no ônibus.
- Porque a faculdade não fez essa merda de viagem por avião? Seis horas de ônibus é tortura.
- Nem tanto!
Seu tom de voz não me agrada.
- O que está aprontando, Sabrina?
- Nada!
- Sabrina!
- Bom! Já avisei que estamos saindo. Agora espere as mensagens pelo caminho e quando estiver perto, te ligo. Vai me buscar?
- Claro!
- Certo! Te amo mais que bacon!
- Te amo mais que queijo!
Ela ri e desliga o telefone. Mesmo falando com a minha irmã, ainda sinto um aperto estranho no peito.
**********
São quase quatro da manhã e já recebi cinco mensagens da Sabrina. Aguardo ansioso a ligação informando que estão chegando. Olho mais uma vez meu relógio e já era pra ela ter ligado. Bufo irritado e tenho certeza que ela dormiu e esqueceu de me ligar. Pego minhas chaves, minha carteira e decido ficar na porta da faculdade esperando.
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Faz mais de duas horas que estou esperando na frente da faculdade. Existem outras pessoas esperando também e essa demora começa a me preocupar. Decido ligar para Sabrina e saber o que está acontecendo. Quando puxo meu celular do bolso, dois carros da polícia param em frente à faculdade e um carro preto, todo filmado também. Automaticamente meu corpo segue para perto dos carros e meu coração está doendo no peito de tanto que bate acelerado. Isso não pode ser um bom sinal. Um homem desce do carro preto e os policiais fazem o mesmo.
- Todos estão aguardando o ônibus da turma de engenharia?
- Sim!
Percebo que estou rodeado de pessoas que respondem, mas não consigo falar nada. A mesma sensação de anos atrás me sufoca. Passa um filme na minha cabeça da morte dos meus pais. Sabrina agarrada em mim, enquanto a polícia informa sobre o acidente de carro dos meus pais. O homem respira fundo e então solta o que eu temia.
- Teve um acidente na estrada com o ônibus. Não sabemos ao certo o que aconteceu e nem como estão os estudantes. O resgate está no local e estão enviando as vitimas para os hospitais da região.
Todo o resto que é dito, não escuto mais. Tudo parece um borrão, um vazio, um nada.
- O senhor é parente de algum aluno?
Um policial me pergunta e apenas balanço a cabeça que sim, ainda perdido, tentando assimilar o inferno em que estou.
- Nome da pessoa!
- Sabrina... Sabrina Andrade!
Minha voz sai falhada e ele fala rápido o nome da minha irmã. A resposta não demora a ser dada com o hospital onde Sabrina foi levada.
- O senhor consegue locomover-se até esse hospital?
- Sim!
Respondo calculando quantos quilômetros ficam daqui. São mais de seis quilômetros e meus olhos vão para o meu carro. Um arrepio percorre meu corpo e sei que não consigo fazer isso. Então começo a correr. Correr como eu nunca corri em toda a minha vida.
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Entro no hospital sem ar, sem pernas e sem saber ao certo o que esperar. O hospital está cheio de jornalistas na porta e na parte de dentro tem muita gente. Provavelmente familiares dos estudantes.
- O senhor procura alguém?
Olho a mulher ao meu lado que conversa comigo. Ela usa um crachá do hospital. Lilian é seu nome e ela trabalha na recepção.
- Minha irmã! Sabrina Andrade.
- Pode me acompanhar, por favor?
Começa a caminhar em uma direção e a sigo. Chegamos a uma enorme sala com algumas pessoas que choram em seus cantos.
- Aqui estão os familiares das vitimas que trouxeram para este hospital. Aguarde que um médico logo virá dar noticias.
- Obrigado!
Procuro um canto para mim e olho as pessoas a minha volta. Todos possuem alguém para chorar a sua dor e me vejo sozinho. Minha única pessoa no mundo está em algum lugar daqui sofrendo e não posso fazer nada. Meus olhos ardem e as lágrimas finalmente inundam meu rosto.
- Familiares de Leandro Silva!
Um médico chama e um casal se aproxima deles. Não posso ouvir o que conversam, mas pelo suspiro aliviado dos pais, imagino que esteja bem. O médico os leva pra fora da sala e então o silêncio continua. Mais três famílias são chamadas e levadas da sala. Todos felizes com a notícia positiva de seus parentes, que começo a acreditar que Sabrina esteja bem.
- Família de Luis Marcondes!
Um casal ao meu lado se aproxima do medico. Conheço o grito de dor da perda e o choro desesperado por não acreditar. A dor da mãe me sufoca e encaro minhas mãos que tremem.
- Você tem que ficar bem!
Sussurro como se Sabrina pudesse me ouvir.
- Família de Sabrina Andrade!
O ar some dos meus pulmões e encaro o médico na porta. Caminho em sua direção com os passos vacilando.
- Sou irmão dela!
O médico tem um olhar vazio para mim.
- Pode me acompanhar?
Balanço a cabeça que sim e seguimos pra fora da sala. Entramos em um corredor e então paramos em frente a uma porta.
- Sua irmã chegou ao hospital com um traumatismo craniano. O lado onde ela estava foi o que colidiu com o caminhão. Exatamente onde era sua poltrona.
Minhas mãos estão frias e sinto que minhas pernas podem falhar a qualquer momento. Abre a porta e me indica para entrar. O som dos aparelhos é a primeira coisa que surge assim que entro e então meus olhos encontram o pequeno corpo da minha irmã sobre a cama de hospital. Ando devagar em sua direção vendo sua cabeça enfaixada, um tubo em sua boca e fios por todo o seu corpo. Paro ao lado da cama e seu corpo parece ainda mais pálido do que já é. Minhas lágrimas já se tornaram minha companhia nessas ultimas horas.
- Ela está em coma!
Solto um soluço de dor e seguro a mão da minha irmã. Seus dedos frios se movem para se unir aos meus, como ela sempre faz ao me dar sua mão.
- Estamos aguardando os resultados de alguns exames para verificarmos as atividades cerebrais.
- Quais as chances dela...
Tento perguntar, mas o medo me sufoca.
- Pequenas!
Deito sobre seu corpo e choro em seu peito.
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UMA SEMANA DEPOIS
O médico entra no quarto e em suas mãos tem muitos papeis. Sei muito bem pra que servem.
- Sr. Andrade!
Volto meus olhos para o corpo inerte da minha irmã.
- Acho que a assistente social já conversou com o senhor.
- Sim!
Sabrina não possui qualquer atividade cerebral e querem que eu autorize a desligarem os aparelhos e a doação de órgãos.
- Imagino que já tenha uma resposta!
Seguro a mão da Sabrina bem forte, esperando um sinal, qualquer coisa que mude minha resposta. Mas nada acontece. Ela parece dormir profundamente. Descobrimos que a causa do acidente foi um infarto que o motorista do ônibus sofreu enquanto dirigia. Apenas duas pessoas morreram no acidente. O motorista e o tal Luis, que estava sentado na poltrona ao lado da Sabrina. Os amigos da minha irmã relataram que os dois estavam juntos na viagem e tinham planos de me contar sobre o namoro na volta. O laudo do acidente indica que ele tentou proteger minha irmã na batida, por isso ainda está aqui, presa nesses aparelhos. Sabrina teria morrido na hora se não fosse por ele.
- Podem desligar os aparelhos!
Digo tentando ser firme, mas por dentro estou desmoronando. Meu mundo parece que será desligado junto com a Sabrina.
- O senhor vai autorizar a doação dos órgãos?
- Sim!
Ele me entrega os papeis e assino tudo.
- Podemos começar com os procedimentos?
- Sim!
Não demora muito para a equipe medica entrar no quarto. Todos me observam e não consigo parar de chorar. Beijo a mão da minha irmã pela ultima vez e subo para sua testa.
- Tudo bem! Agora você pode descansar!
Beijo sua testa e apoio a minha na dela, ouvindo o som do apito irritante, me dizendo que acabou.
- Te amo mais do que queijo!