Se aos 17 anos, a superpoderosa Cleópatra já tinha um reino em seu poder, no meu décimo sétimo aniversário eu também fui marcada por uma lição: a felicidade plena não existe.
Catorze anos antes...
- Cleo! Aonde você vai? - Linda me gritou, esbaforida.
- Hoje eu tenho prova na faculdade.
- Tem certeza que você não quer ir a essa entrevista comigo? O relógio tá correndo contra nós. - Linda se referia ao tempo que nos restava no orfanato. Ambas faríamos dezoito dali a pouco mais de um ano e precisávamos de qualquer emprego para ter onde ficar.
- Você vai e veja se é coisa boa. Dependendo, eu vou depois. Não posso perder essa prova. - eu disse, sem parar de andar na direção do ponto de ônibus. A viagem era demorada de Petrópolis ao centro do Rio e um ônibus perdido era uma aula perdida. Ouvi Linda resmungando nas minhas costas, provavelmente reclamando por eu nunca acompanhá-la nas entrevistas de emprego.
Somente aquele mês, era a quinta entrevista. E sempre a mesma coisa: padaria, lanchonete, caixa de mercado, garçonete. Eu coloquei na cabeça desde os 12 anos que correria até o fim atrás do meu sonho de ser delegada e não seria agora que eu mudaria de ideia. Falassem o que quisessem, ao menos foi essa a ideologia que me ajudou a ingressar na universidade de Direito e me tornar a única estudante universitária de todo orfanato. Ao contrário do que isso deveria significar, ser a única interna universitária não foi fácil. Descrédito e inveja eram os sentimentos de lei tanto das outras internas quanto das irmãs. Pois é, o orfanato onde passei toda minha infância e adolescência além de tudo era católico. Desses bem católicos mesmo, onde esculturas grotescas e mulheres vestindo hábitos são peças-padrão do cenário. Não preciso nem dizer que não fui influenciada pela religião. Uma oração diária ou duas para deixar as freiras satisfeitas, nada mais.
Mas voltando à Linda e a entrevista de emprego, daquela realidade eu queria estar o mais distante possível. Se era pra ser invejada por estar cursando Direito em outra cidade, que eu fizesse um trabalho bem feito.
E foi o que fiz. Naquela prova e nas várias outras que se seguiram, eu fiz questão de ser a melhor. Meu afinco era tanto que enquanto os outros alunos postergavam as matérias para que tivessem mais tempo livre, eu seguia na direção inversa, acrescentando cada vez mais disciplinas para que me formasse o quanto antes. A minha rotina se resumia a tomar café, ir para aula, passar a tarde na biblioteca, pegar condução de volta à Petrópolis no início da noite, dormir no orfanato e repetir todo o processo no dia seguinte. Toda dedicação era pensando apenas em mim mesma. Cresci acostumada a não esperar incentivo ou adulações. Por mais carinhosa que uma freira pudesse ser, nunca consegui associá-las à uma imagem materna.
E por falar em mãe, minhas lembranças sobre ela sempre foram vazias e impalpáveis quanto um fantasma. Afinal, eu mal completara cinco anos quando ela faleceu. Só me recordo que em poucos dias após o fato, vim parar neste orfanato, ironicamente intitulado de Lar da Esperança, de onde não sairia mais até completar a maioridade.
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A primeira vez que o vi foi numa praça em São Cristóvão, zona central do Rio de Janeiro. Um casal de amigos tinha me convencido a mudar o percurso diário que eu cumpria religiosamente. Em vez de passar a tarde inteira estudando na biblioteca da faculdade, carreguei o exemplar do Código Penal – pesado como um tijolo – para a praça e fiz companhia a Claudia e Caio, duas chaminés ambulantes. Preciso registrar que a frequência com que eles fumavam maconha me fazia duvidar de suas capacidades de serem profissionais decentes ou qualquer outra coisa no futuro.
Até aquele momento eu vinha mantendo com eles nada mais do que um "coleguismo" superficial, mas aceitar um convite de desvio de trajeto uma vez na vida não pareceu tão errado.
O clima estava agradável e mal percebíamos a tarde passar, considerando que era uma época em que ainda podíamos ficar despreocupados numa praça no Rio de Janeiro, seja estudando ou fumando ou fazendo qualquer outra coisa. Claudia tinha acabado de entrar novamente em uma discussão sobre as brechas da constituição federal. Ela adorava discussões, principalmente a partir do terceiro ou quarto cigarro da erva. Apesar de uma palavra ou outra mal pronunciada seus argumentos às vezes até que faziam sentido.
- Os advogados existem para tornar as brechas na Legislação úteis - filosofou Claudia.
- Dê um exemplo de brecha então - desafiava Caio, alongando a palavra "breecha", deixando em evidência seu estado alterado.
Claudia bateu a ponta do último beck na mesa de cimento, antes de arrumar um modo de ganhar a discussão elegantemente.
- Ainda estou estudando. Quando me formar saberei todas. Todas as brechas - disse.
Mal ela terminou a frase, nós três fomos sobressaltados por um barulho estrondoso de carro velho. Desviei meus olhos do livro na direção do som e deparei com o rapaz no seu estado de nervos mais elevado.
- Que cacete! Lata velha inútil! Vai se foder! - ele chutava a porta do veículo de um modo realmente assustador.
Claudia e Caio já tinham voltado ao estado de transe. Ou seja, o estado normal deles, completamente alheios e indiferentes a qualquer situação. Mas eu não conseguia parar de olhar aquela cena. Um cara tão jovem e tão estressado. E de boca tão suja. Por mais que eu não fosse das mais beatas, não estava acostumada a um linguajar tão tosco e vulgar. Nem mesmo o casal ao meu lado tinha esse hábito. Aquilo me fascinou de imediato. Fechei o livro e debrucei sobre a mesa da praça para absorver melhor a cena. Agora ele levantava o capô enquanto bufava freneticamente.
- Era só o que faltava! Puta que pariu. - ele passava as mãos nos cabelos, completamente transtornado.
Não precisei de muito para saber que ele nada entendia de carro, talvez o grande motivo de estar tão nervoso por nada. O velho gol branco de duas portas permanecia indiferente às suas reclamações, com maior cara de inocente. Depois do estrondo, a "lata velha" parecia não querer ligar e ele tinha parado bem no meio da rua, por sorte, nada movimentada.
O rapaz olhou para os lados, colocou a mão nos bolsos, bufou. Não sabia o que fazer. Até que em mais uma busca desesperada em qualquer direção, ele encontrou o meu olhar. É claro que eu desviei na hora. Estava ali, estática, testemunhando a cena há o que, três minutos? Seu olhar sobre mim não durou mais que dois segundos, mas foi o suficiente para me queimar. O que eu esperava? Que na presente situação ele acenasse com a cabeça ou desse tchauzinho? É possível que ele tenha me xingado mentalmente já que verbalmente não deu para notar. Eu precisava me retratar do constrangimento de alguma forma.
- Aonde vai? - Caio perguntou, demonstrando um interesse que não convenceu muito.
Não respondi, apenas continuei caminhando lentamente na direção do nervosinho. Quando cheguei próximo o bastante, ele se apoiava no capô aberto, dando a entender que procurava por alguma coisa, alguma peça que talvez estivesse mal encaixada. Seu semblante confuso constatou o que eu já previa: ele não entende nada mesmo de carros.
- E aí, quer uma ajuda? - perguntei, com as mãos alocadas nos bolsos traseiros da calça jeans.
Ele nem sequer olhou pra mim, mas deixou de brinde um sorriso de lado. Puro escárnio.
- Achou alguma coisa de errado no motor? - insisti, disposta a fazê-lo engolir aquele maldito sorrisinho.
Para a sorte dele, a rua na qual o carro tinha brecado e todas as outras que rodeavam a praça estavam praticamente desertas. Um pouco mais para o centro do bairro e toda a situação teria se tornado uma dor de cabeça real, com direito a buzinas e engarrafamento. E também para a sorte dele, eu estava ali, modéstia à parte. Uma pena que ele demorou um pouco para entender.
- Nada demais, essa porcaria só não quer pegar - ele soltou, enquanto fechava o capô e revirava os olhos.
- Depois daquele estouro, se não bateu o motor, pode ter sido só o cano de descarga que furou - eu disse, cruzando os braços.
Ele me olhou literalmente dos pés à cabeça. Mas não aquele olhar de admiração, paquera, desejo. Não que eu soubesse discernir tão bem os olhares. E não que eu já tivesse sentido admiração, paquera ou mesmo desejo por alguém. Mas aquele olhar foi fácil de traduzir. Era de desprezo. Desprezo por eu surgir sem ser chamada – mesmo que fosse para oferecer ajuda – desprezo por eu ser uma figura feminina que muito certamente entendia mais de carros do que ele.
- É mesmo? Descobriu tudo sozinha? Parabéns - ele disse, ratificando a minha opinião sobre ele ser um completo idiota.
- Na verdade, eu praticamente cresci dentro de uma oficina. Costumo identificar barulhos de longe. E o estrondo foi do cano.
Ele me olhou novamente, desta vez, bem lá no fundo dos meus olhos, ao ponto de enrugar um pouco a testa. Antes que o desprezo passasse a nojo, decidi recuar para a minha leitura e deixá-lo sozinho com sua lata velha e sua arrogância. A tarde já caía e eu tinha pouco menos de uma hora para pegar o ônibus de volta para o orfanato. Claudia e Caio sussurravam quando eu me sentei de volta à mesa de cimento.
- O que você disse pro bonitão? - Claudia implicou.
- Bonitão? Onde? Só enxergo um jegue com sua carroça empacada - cuspi, reabrindo o Código Penal na página onde tinha parado.
- Levou um fora, entendi. Essa sua roupa também não ajuda muito, amada - Claudia disse, enquanto enrolava mais um beck.
Dei uma olhada em mim. Não vi nada de tão mau nas minhas roupas, exceto que elas não estavam nada atraentes, claro. Uma calça jeans um pouco larga, uma camisa branca surrada e um tênis mais surrado ainda compunham meu traje diário. Com o dinheiro da ajuda na oficina não dava pra fazer muito. Os longos cabelos pretos e lisos sempre amarrados num rabo de cavalo no topo da cabeça me davam um ar de colegial. E só. Sem maquiagem, brincos, pulseiras. Apenas um anel de prata muito velho deixado de herança pela minha falecida mãe.
Como resposta a Claudia, dei meu silêncio. Ela e Caio voltaram aos seus momentos de viagem seguidos de filosofias incabíveis enquanto eu tentava me concentrar na leitura, mediante a curiosidade com a forma com que o sabichão arrogante iria solucionar o problema do carro. Cinco, dez, quinze minutos se passaram e nada. Apenas sons de portas, capô e mala traseira abrindo e fechando. Resignado, cansado e suado da cabeça aos pés, o nervosinho parecia ter mudado de ideia e caminhou na minha direção. Resisti até o último momento de erguer os olhos do livro para ele, até que ele o tomou das minhas mãos. Ofegante e com aspecto bastante abatido, ele perguntou:
- Então, o cano de descarga furou. E quanto ao carro não dar a partida?
- Imagino que em São Cristóvão exista um serviço chamado reboque. Me devolve o livro - eu falei, impaciente.
- Não posso pedir pra rebocar, o carro nem é meu.
Acho que arregalei os olhos o bastante para ele se explicar tão rápido.
- É do meu pai. Preciso pelo menos conseguir estacionar em um lugar decente - comentou, alheio ao olhar de admiração de Claudia e de tédio de Caio.
- Me devolve o livro.
- Ué, você não "praticamente cresceu dentro de uma oficina?" - ele falou, fazendo as aspas com as mãos, bancando o sarcástico.
Se tem uma coisa que eu posso dizer que não me arrependi, foi de ter ido ao encontro dele oferecer minha ajuda. Não, não sou masoquista, nem mesmo curto caras arrogantes. Aliás, nessa época eu não curtia tipo nenhum de cara. Eu só queria estudar e arrumar um jeito de sair do melhor modo possível do orfanato. Pensar em homens atrapalharia esse meu projeto quanto mais me relacionar com eles. Mas sabe aquela velha história de que algo te leva a fazer alguma coisa, ainda que você não queira ou não saiba que quer? É clichê, mas é a única explicação para eu ter caminhado aqueles malditos oito passos em direção a ele naquela tarde, depois da cena de revolta com o carro.
- Já ouviu falar em ligação direta? - falei, tomando o livro da mão dele.