Sim já tentei acabar com essa tristeza outras duas vezes, sem sucesso. Fui impedida antes de conseguir, há muito tempo estou cansada de viver sozinha, cansada de implorar atenção. Não tenho ninguém por mim, para que viver?
Quem sentiria minha falta se eu pulasse daqui? Seria rápido, alguns segundos de queda livre e a dor da solidão sumiria. Certamente eu seria mais feliz em um lugar onde a solidão não existe.
Meus pais me proporcionam uma vida de luxo pra não me honrar com sua ilustre presença, meus conhecidos e colegas só se aproximam, por minha condição financeira, minha única amiga viajou semana passada para uma nova vida em outro país. O que sobra?
Me recuso a crer que é só por causa de Yago que me encontro andando aqui mirando a escuridão a fitando numa perigosa paquera. Não! Foi apenas o estopim de um vida solitária e carente de amor. Só quero acabar com essa angústia, essa dor que me rasga o peito.
Ouço barulho de passos, de alguém que corre. Olho ao longe uma figura vindo ao meu encontro apressado, e a essa altura se chegar mais perto é o incentivo que falta pra eu pular daqui.
- Ei maluca, saí daí gatinha.
Suspiro reconhecendo Liandro, um pequeno sorriso fraco surge em meus lábios secos, não sei se pra tentar tranquilizá-lo ou se pela ínfima esperança de que fosse o irmão dele a vir atrás de mim. Maldita ilusão Cassandra! O cara acabou de te desprezar da pior maneira, e você ainda pensa nele?
- O que você tá fazendo aí?
A voz se torna mais alta pela proximidade, não sei o que responder e digo o que vem em mente, mesmo sendo mentira.
- Bebi demais, tô tomando um ar.
- Mentirosa, vem, dá a mão, vou te levar até sua casa, é perigoso andar aí em cima.
Não é perigoso, é a porta para a felicidade eterna, onde não há choro, nem dor. Esquecerei da minha vida vazia, da sensação de não pertencer a nada nem a ninguém. Não aguento mais acordar e desejar ser, desejar ter algo meu que me faça inteira.
Reluto por alguns instantes, pensando que minha coragem em pular está agora enfraquecendo, como uma medrosa que é, mas a dor ainda permanece amortecendo meus sentidos.
- Por favor, Cassie. Pegue minha mão.
O vento acaricia meu rosto, me convidando a ir com ele. Eu quero ouvir e aceitar o convite, mas não quero que ninguém se culpe por isso. Olho mais uma vez para o irmão de minha amiga, sua mão próxima tentando me alcançar. Dou um pequeno passo para trás.
- Cassie, não! Por favor, não!
- Você não precisa me salvar, eu já tô morta, Liandro. Sou invisível.
- Não diz isso, Cassie. Eu vejo você.
- Você vê? - sinto o rosto molhado, ainda tenho lágrimas. Que consolo!
- Claro que sim, você é doce, inteligente. Tem um futuro brilhante pela frente.
Bufo e começo a rir como uma histérica.
- Futuro?
- É, você é uma profissional. Eu adorei as fotografias que fez da lagoa Sardenha. Eu vi as fotos, Estela me mostrou. Seu talento é incrível.
Olho seu esforço em me tirar desse muro e sinto piedade. Liandro não merece esse trauma de ver alguém morrer, mas eu também não mereço viver assim. Dói muito ser invisível. A minha vida inteira esperei que meus pais me buscassem para viver com eles nas viagens e lugares lindos aos quais eles ostentam. Mas eles não querem um estorvo para sua diversão. Invés disso eles pagam meu conforto, e qualquer coisa que eu queira para ficar longe deles e não atrapalhar suas eternas férias. Já tive a idéia de me entregar para as autoridades tantas vezes como menor abandonada, mas isso só faria com que eles me odiassem. E além do mais eles tem grana para distribuir, compram juízes, autoridades e o que mais for preciso. Seria esmurrar o vento. Não quero mais viver desse jeito, sem ter alguém para me escutar ou consolar que vai ficar tudo bem. Sem uma palavra de afeto ou a certeza que sou amada, sou quista por dois pais que me botaram no mundo.
Olho para Liandro com a mão estendida, trêmula e seu rosto de horror.
- Eu sinto muito, Liandro. Não é pelo que houve lá embaixo. Tô tão cansada de viver sozinha. É melhor você sair daqui. Eu espero você sair. Por favor vá!
Ele se aproxima mais e num lapso de segundos abraça minhas pernas, não tenho outra alternativa a não ser enlaçar suas costas ou o levaria comigo para baixo. O homem me põe no chão e a crise de choro me carrega para o limbo da inconsciência. Liandro me pega no colo num abraço de urso no chão e chora comigo. Soluço em seu peito por alguns minutos, horas, no sei dizer. Ficamos um tempo considerável sentados enquanto me acalmo.
- Quer falar?
Mordo o lábio e balanço a cabeça em negativa, Liandro compreende e continuamos em silêncio, até eu pedir para ir para casa.
Ele me leva por uma escada que dá acesso para o clube, porém desviamos do movimento e saímos pela porta lateral, até seu carro. Ele tenta me distrair da tristeza e vontade de chorar, e nos vinte minutos dirigindo até minha casa, penso na sortuda que ganhará o coração dele.
- Não vai me condenar por querer deixar a vida para trás? - pergunto em certo momento do trajeto.
- Não. Porque sei que você não fez isso pela primeira vez e nem que seja por causa de um coração partido somente.
- Como sabe?
- Eu te disse, Cassie. Eu te enxergo.
- Sei que nesse momento tudo o que eu falar pode parecer apenas uma tentativa de te puxar do abismo em que seu emocional está, mas preciso que saiba que se você tentar novamente e tiver sucesso, vai deixar pessoas que te amam aqui sofrendo por perder você. E não venha me dizer que é errado fazer você se sentir culpada por tentar se suicidar. Quero que reflita um pouco se não há outras alternativas além dessa.
- Não. - minha voz é tão fraca.
- Não? O que você já tentou? Terapia, ajuda médica contra a depressão?
- Nem sempre é fácil me manter emocionalmente bem. Às vezes não tenho ânimo nem de sair da cama para ir às consultas.
- O que você gosta de fazer?
- Fotografar, ler, não sei nunca parei pra perguntar o que eu gosto realmente de passar meu tempo agora que a escola terminou.
- Acho que você precisa estabelecer metas, planos. Não digo algo grandioso sabe, como cursar uma faculdade ou conseguir um estágio e permanecer, não. Você precisa de projetos semanais, projetos diários para alcançar.
- Não entendi seu ponto, Liandro.
- Acordar amanhã e planejar terminar o dia tendo feito algo que nunca fez. Por exemplo, visitar uma exposição de um artista no museu. Experimentar um receita nova. Ou fazer um passeio de bicicleta até um local que nunca foi. Ou até mesmo sentar na praça e alimentar os pombos ouvindo sua playlist preferida no celular. Cada dia experenciar algo que ainda não fez. Pensar sempre no próximo dia.
Me pego meditando nisso e olhando os traços de Liandro, um rapaz tão bonito, seus cabelos muito escuros e bem cortados deixam uns fios bagunçados na testa. Seu nariz fino de traços retos o deixam tão másculo. É um homem muito interessante, gostaria de ter me atraído por ele, gostaria muito. Seu olhar jaboticaba me inspeciona rápido enquanto guia o veículo.
- O que foi Cassie?
- Queria ter me apaixonado por você. Se eu pudesse escolher, escolheria você.
Ele suspira longamente e aperta os lábios desenhados encarando a estrada asfaltada.
- Também queria, mas não é justo com nenhum de nós forçar algo agora.
- Concordo.
Esse prelúdio de silêncio constrangedor é ruim, mas compreendo que ele não sabe o que dizer nesse momento. Deve ter medo de que eu tente outra vez.
- Promete que vai buscar ajuda profissional para lidar com seus sentimentos ruins?
Seu rosto consternado dirigindo me faz sentir culpada. Eu tenho ajuda, vou a psicólogos há tantos anos, para lidar com a solidão que já até perdi a conta.
- Prometo, Liandro.
- E que vai me procurar sempre que precisar?
- Por que está fazendo isso por mim? Por que se importa?
- Porque eu gosto de você, Cassandra Riez. Gosto muito, mas infelizmente o coração da gente não escolhe a quem retribuir.
Isso foi uma declaração? Liandro tá dizendo que gosta de mim? Meu Deus! Como não percebi? Porém como ele mesmo disse, o coração não escolhe, se o meu pudesse escolher, seria dele. Mas infelizmente eu só o faria sofrer. E ele não merece sofrer.
Ao chegar em frente a minha casa me despeço no automático. Ainda estou no torpor da quase queda daquela cobertura. Preciso tomar meus calmantes e dormir por umas doze horas, quem sabe eu acorde melhor para planejar meu futuro, tentar um decente pelo menos.
É mais que hora de desaparecer dessa cidade, preciso me curar desse mal chamado Yago e seguir a vida, me apaixonar por ele foi uma carência, uma tentativa de suprir minha falta de amor, mas ele não é a cura para esse mal. Uma coisa por vez e vou conseguir emergir desse abismo. Preciso lutar e tentar, pois todas as vezes que tentei fugir da vida, o universo conseguiu impedir de alguma forma. Acho que ele está tentando me dizer que a morte não é a solução.