Capítulo 4 Excluído

Liam.

Mais ou menos uma hora depois a ilha está completamente submersa e tudo que consigo ver é um infinito azul em todas as direções. Sentado contra a grade de madeira na borda da proa, espero o sol secar minhas roupas encharcadas enquanto procuro não pensar nas centenas de vidas pertidas, já que praticamente ninguém na ilha sabia nadar e mesmo se soubesse, a água agitada do mar iria ganhar a batalha de qualquer jeito.

Havia crianças, idosos, adolescentes, assim como eu... A minha mente insiste em mostrar as cenas de todos eles morrendo enquanto eu apenas observava de dentro do barco sem poder fazer nada.

Como nós vamos sobreviver?? Os suprimentos só vão dar para uns quatro dias, isto é, se aquele brutamontes me der alguma coisa. Ele provavelmente não se importaria em me deixar morrer de fome.

Olho para a cabine no centro do barco, onde os quatro garotos passaram a última hora trancados lá dentro, gargalhando e conversando como se não tivessem condenados à morte em poucos dias.

Pouco tempo depois, Alex abre a porta da cabine e caminha até mim com uma garrafa d'água na mão. O sol banha o seu cabelo loiro assanhado e evidencia as marcas de sujeira nas suas bochechas brancas e nos braços.

- está com sede??- ele pergunta, estendo a garrafa para mim. Faço que sim levemente com a cabeça e pego a garrafa da sua mão, mesmo que seja mentira. Eu não estou com sede, mas vai que o brutamontes decida não me dar mais água?? Para pessoas pequenas como eu, a inteligência pode ser a melhor arma.

Tiro o capuz do rosto (ele já viu meus olhos mesmo, não há mais nada o que esconder) então tomo um pequeno gole de água, antes de tampar a garrafa e enfiar disfarçadamente na minha mochila.

- obrigado.- agradeço, observando ele sentar desajeitadamente ao meu lado com as costas contra a grade de madeira também. Alex parece está perdido nos seus próprios pensamentos enquanto encara o vazio, o quê me permite observa-lo mais de perto. Debaixo da sujeira das suas bochechas há pequenas sardas, o cabelo cor de ouro cai bem nele, só precisa ser lavado para tirar a camada se sujeira.

- e agora?? Como vamos sobreviver??- ele pergunta, movendo seus olhos castanhos na minha direção. Alex pelo menos tem a decência de pensar no futuro, algo que os seus amigos parecem não ter, e se têm, não fazem o menor esforço para demostrar.

- eu sinceramente não sei. É um pouco estranho pensar que nós cinco somos os últimos serem humanos vivos do mundo.- digo calmamente, antes de olhar para o horizonte e encarar os destroços que boiam no mar.

- acho que não somos os únicos. Ky disse que havia outros barcos lá no cais. A elite da cidade deve estar por aí, comendo aquela comida refinada enquanto riem e fingem que nada aconteceu.- o garoto responde, o que me faz levantar uma das sobrancelhas.

- não. Nós somos os últimos. Quando voltei para a cidade soube que os barcos haviam pegado fogo e explodido um a um devido à gasolina que derramou de algum deles e iniciou um incêndio- murmuro, tentando imaginar a cena dos barcos explodindo...

- m-mas o ky disse que...- Ele começa, mais desiste de completar a frase e simplesmente encara os próprios sapatos sujos e desgastados.

- aquele idiot... Digo, o seu amigo, o kyle. Foi ele que começou o incêndio não foi??- chuto, enquanto ligo os pontos em minha mente. Mais é claro! Só pode ter sido ele.

- Ele não teve culpa. Ky disse que precisava criar uma distração para poder roubar o barco... Ele não sabia que os barcos iam explodir. Kyle pode parecer arrogante, mau e tudo de ruim que vem à mente, mas tudo que ele fez foi para garantir a nossa sobrevivência.- Alex tenta interceder pelo amigo, lançando-me um olhar triste. Faço que sim levemente com a cabeça, mesmo que discorde plenamente com isso. Para mim aquele brutamontes não parece ser nada além de assustador e um tremendo idiota.

Depois de alguns minutos de silêncio extremamente constrangedores em que o único som presente é o das ondas batendo no barco e a conversa baixa e abafada que ocorre dentro da cabine, Alex olha para mim novamente, focando diretamente nos meus olhos.

- os seus olhos são diferentes.- esse sussurra como se eu, o dono deles nunca houvesse percebido isso.

- eeeer... sim. Eu sei disso.- respondo, antes de dá uma risada alta e um pouco sarcástica

- desculpa, eu devo está parecendo um completo idiota... É que eu nunca algo assim antes.- ele tenta justificar, com as bochechas ficando levemente vernelhas.

- tudo bem.- digo, dando-lhe um sorriso gentil. Alex se encolhe um pouco e volta à encarar os sapatos, mas depois de alguns segundos volta à olhar para mim.

- você enxerga bem??- a pergunta me faz querer ri, mas reprimo a risada e respondo.

- sim. Eu enxergo muito bem.

- aaah. E você sabe por que seus olhos são assim??

- bom... Eu nasci com uma anomalia genética chamada heterocromia, que faz com que um dos meus olhos tenha mais melanina do que o outro. Entendeu??- explico, observando uma expressão de total confusão passar pelo seu rosto.

- tudo que eu entendi foi "eu nasci com...".- ele responde, arrancando uma gargalhada alta de mim.

- você é um asno!!- acuso, enquanto ele murmura um "pois é, eu sei disso" e também começa à rir. Noto que ele está encarando meus olhos, focando no azul, e depois no verde, apenas para repetir o processo novamente logo em seguida.

- eu vou explicar de novo. Nasci com um olho diferente do outro porquê um deles tem mais melanina, que é a substância que dá cor aos olhos cabelo e pele. Entendeu??- tento novamente e dessa vez ele confirma com a cabeça, embora a sua expressão diga o contrário.

- você sabe ler??- pergunto, relaxando o corpo contra a grade de madeira e olhando para o céu azul salpicado de nuvens brancas. Minhas roupas já estão quase completamente secas devido ao sol forte.

- sim, Eu consigo escrever e lê coisas básicas. Mas meus amigos não conseguem.

- ah.- sinto-me um pouco culpado por ter perguntado isso.

- nós morávamos num prédio abandonado à muitos anos. Eu tinha nove anos quando meu pai morreu e não pude ficar com a casa porque ele tinha muitas dívidas, então ela foi vendida e eu tive que sair e ficar vagando sozinho pela cidade. Foi quando o ky me encontrou quase morrendo de fome, ele já estava com Jay e Elliot nessa época, mas mesmo assim me aceitou com eles, mesmo que isso significasse ter que cuidar de mais uma criança boba e ter que conseguir mais comida e água para manter todos vivos. Nós quatro vivenos juntos desde então e não tínhamos tempo ou dinheiro para ir a escola, então tive que me contentar com o que meu pai me ensinou antes de morrer.- Alex conta calmamente, me surpreendendo com sua história.

Eu tinha treze anos quando minha mãe morreu, nunca conheci meu pai ou qualquer outro parente que podesse cuidar de mim, então peguei todo o dinheiro que tínhamos e as coisas úteis antes que vendessem a casa e simplesmente comecei a vagar pela cidade até agora.

- sinto muito pelo seu pai.- digo, e quando ele abre a boca para dizer algo, um barulho estranho o faz parar. Nós dois levantamos em um pulo e caminhamos até a borda do barco para ver o que causou o barulho.

São os destroços batendo contra o casco do barco. Há praticamente de tudo boiando na água fria, roupas rasgadas, sacolas plásticas vazias, pedaços de madeira...

- talvez podemos encontrar algo de útil boiando por aí.- o garoto loiro ao meu lado sugere sem desviar os olhos das coisas que boiam calmamente na água. Os outros três garotos saem da cabine e vem na nossa direção para ver o que causou o barulho.

Agora nós cinco estamos lado à lado com as mãos na grade da borda, todos observando as coisas flutuando na água calma.

- aquilo ali são... Maçãs?? Eu não sei o que é- Elliot pergunta, apontando para o saco plástico boiando à pouco mais de um metro do casco do barco.

- são pêras.- corrigo, observando as várias frutas verdes dentro do saco plástico transparente.

- pêras?? Nunca ouvi falar.- ele diz, desviando o olhar e focando seus olhos verdes no meu rosto.

- achei que não existiam mais pêras. Como a maioria das árvores frutíferas estavam extintas...- começa Jay, mas é interrompido pelo idiota de olhos azuis.

- extintas ou não, elas vão nos ajudar à sobreviver por mais algum tempo.- a voz arrogante do brutamonte chamado Kyle corta o ar. - Jay, vai buscar um remo lá dentro da cabine.

- okay.- jay responde, antes de andar para dentro da cabine e voltar segundos depois segurando um remo velho de madeira. Por que em um barco desse tamanho há remos??? Bom, isso é algo que nunca vou descobrir, e não importa agora.

Jay se ajoelha na borda do barco e se curva para fora do barco, enquanto Elliot segura suas pernas para ele não cair na água. Ele está tentando empurrar o saco para mais perto do casco do barco, assim poderá pegar com a mão e traze-lo para dentro.

- consegui!- ele diz com o saco plástico na mão e um sorriso vitoriosos no rosto, ainda com praticamente todo o corpo para fora do barco. Meus olhos vagueiam pela água à centímetros da sua mão, avistando aquela silhueta enorme e quase imperceptível na água.

- AI MEU DEUS!!- grito espantado, antes de correr até ele e segura-lo pela camisa velha, usando toda minha força para colocar Jay dentro do barco novamente. Mesmo sem saber o que está acontecendo, Elliot puxa as pernas do amigo e me ajuda à coloca-lo dentro do barco o mais rápido possível.

- o que foi??- Jay exclama sem entender nada, alternando o olhar entre mim e Elliot. Solto um suspiro de alívio ao vê-lo sentado dentro do barco, com o corpo todo para dentro e o saco de pêras nas mãos.

- o-olha.- gaguejo, apontando para o lugar onde segundos atrás estava flutuando o saco de pêras. Agora há uma grande e assustadora barbatana cinzenta, exatamente no mesmo lugar onde ele colocou a mão.

- O QUE É AQUILO?!- Kyle pergunta, com traços de medo passando pelo seu rosto ao apontar para onde a enorme coisa nada em círculos ao lado do barco.

- tubarão.- respondo, sentindo um calafrio subir pela minha espinha.

(****)

- tubarão??- kyle pergunta levantando uma das sobrancelhas. Será possível que esse idiota não sabe o que é um tubarão?! Controlo a irritação e forço-me a responder a pergunta.

- são peixes. Carnívoros.- explico, tentando não revirar os olhos.

- ah. que ótimo. Estamos ferrados.- ele diz com um pouco de sarcasmo (e medo) presente na voz, antes de dá um passo para trás, como se esperasse que o tubarão pulasse para dentro e o devorasse nesse mesmo instante.

- não tem como eles nos pegarem ou afundarem o barco. Estamos seguros se não entrarmos na água.

- ah.- Alex indaga, enquanto uma onda de alívio relaxa a expressão assustada no seu e no rosto de todos os outros garotos.

- olhem.- Jay começa, apontando para a água, onde pela primeira vez noto as dezenas de barbatanas cinzentas de todos os tamanhos. Dezenas não, centenas!!! Elas se movem tranquilamente ao redor do barco e em meio aos destroços.

- meu Deus. Não me digam que aquilo é um braço.- com os dedos trêmulos, aponto para o braço cheio de cortes que boia na água fria, antes de ser abocanhado por um dos tubarões.

É. Estamos fodidos. Definitivamente, totalmente e completamente fodidos.

(****)

Quando a noite cai, nós comemos algumas frutas em silêncio (buscamos comer a comida que pode estragar primeiro, deixando os enlatados para depois). A única luz que temos é a pequena lâmpada do lado de fora da cabine, que emite uma fraca luz amarela que deixa os tubarões ainda mais assustadores.

A água gélida deixa a clima insuportável, e o vento congelante não ajuda muito. Estou fingindo não sentir nada, embora esteja lutando para não ranger os dentes...

- hora de dormir pessoal.- kyle diz, levantando de onde está sentando e caminhando para dentro da cabine, onde provavelmente deve ser quentinho. Jay, Elliot e Alex também levantam de onde estão sentados e marcham na direção da cabine, que embora não seja muito grande, acomodaria todos facilmente.

Faço o mesmo. levanto meio desengonçado e caminho até lá, sentindo os dedos das minhas mãos dormentes de tanto frio, mas antes que eu possa passar pela porta, kyle barra a minha entrada e com corpo alto e musculoso, tampando toda a porta

- para onde você pensa que vai pirralho??- a voz arrogante me antinge em cheio. Encolho o corpo devido ao vento congelante e encaro seus olhos frios como se dissesse "não é óbvio??".

- você vai dormir aí fora.- diz, antes de dá um passo trás e fechar a porta na minha cara. Abraço meu corpo com força enquanto tento conter as lágrimas, que provavelmente congelariam no meu rosto.

Solto um longo suspiro e dou meia volta, antes de caminhar até a grade de madeira e sentar contra ela. Coloco o capuz na cabeça e abraço os joelhos com força, enfiando a cabeça entre eles.

Deixo o sono me levar enquanto ignoro o frio e os sons assustadores que os tubarões fazem quando batem nos destroços.

            
            

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