Capítulo 2 Entre mentiras

- Desculpe-me tia, sempre que estou aqui me

assombro com a imponente beleza desse lugar e definitivamente amo saber

aonde está situado cada coisa. Há anos mapeei esse lugar em meu cérebro. -

Ele sentou-se ao lado de uma das jovens e sorriu.

O fato dele em nenhum um momento ter buscado o meu apavorado rosto me ajudou a recobrar o bom senso e restaurar a minha feição.

- Não houve mudança alguma desde a última vez que esteve aqui - Fausto, que ainda não havia falado nada naquela rápida conversação, retrucou.

- E, talvez, nunca haverá. Ainda assim, a

acharei incrivelmente bela, afinal, os meus olhos são abençoados a cada instante que a observo - Vicente respondeu sem olhar diretamente para ninguém.

- Vamos comer e depois deixaremos a senhorita Cloe inteirada sobre qual será o seu trabalho aqui - disse Fausto, sem se preocupar em ser amistoso.

O silêncio rodeou o lugar e, por um longo momento, nenhuma palavra foi dita enquanto os presentes saboreavam a refeição principal,

o vinho e a sobremesa. Caminhamos formalmente para uma sala reservada com uma

entrada adjunta a sala de jantar. E todo o tempo me senti desconfortável entre aqueles estranhos e o pior, eles eram estranhos que permaneciam estranhos.

- Senhorita Cloe, precisamos contar com sua

discrição para toda e qualquer situação presenciada pela senhorita enquanto executa o seu trabalho. - Fausto sinalizou para que as duas jovens, que foram apresentadas a mim antes do jantar pelos nomes de Camile e Margô, se retirassem da sala. O que elas fizeram rapidamente.

- Senhorita Cloe, você restaurará alguns

quadros que estão numa sala protegida. Eduard, um querido e antigo amigo, começou esse trabalho, mas infelizmente não conseguiu conclui-lo com êxito. Precisamos que eles fiquem prontos o mais rápido possível, por isso, sinta-se à vontade para avaliar a coleção e nos informar sobre quanto tempo necessita para completar o serviço.

Algumas coisas ao meu respeito precisam ser

explicadas. Como já mencionado antes: sou uma restauradora de artes e, mesmo não tendo exercido tal profissão desde que me formei, sempre tive um olho clínico, afinal, o trabalho de um restaurador se resume em delicadas cirurgias numa pintura, desenho ou madeira. Acredito que a capacidade de observar os detalhes das coisas com precisão pertence a minha natureza. Isso está presente em mim desde quando comecei a desbravar os grandes jardins da minha primeira morada. Contudo, seria infeliz se não acrescentasse que tal característica da minha personalidade fora,

de fato, lapidada após longos quatro anos de estudos.

Eu era dedicada e curiosa. Uma combinação perfeita para quem realmente sente a necessidade de ser melhor naquilo que lhe é atribuído como ofício. Por isso, bastou poucos minutos para eu analisar aquelas pessoas e aquele ambiente. Embora ainda estivesse perdida a respeito do rapaz que me encurralou em minha casa antes de estar confinada, compreendi que todos ali estavam tensos e preocupados.

Helen, tentava parecer amistosa e tranquila, mas sempre que deduzia que não estava

sendo observada, olhava para as paredes brancas em busca de um horizonte que lhe fugia dos olhos, era como se estivesse perdida, a procura de um rumo. O verdadeiro "imperador" daquele recinto, que já não era tão jovem, com

seus cinquenta e nove anos, demonstrava fervor em suas palavras e acentuava cada gesto com uma notória rispidez. Ele era altivo e orgulhoso,

porém havia algo que o desestabilizava. Sempre que ele mencionava as pinturas ou o tempo que duraria para restaurá-las, aquilo o consumia, o impossibilitando de esconder o seu real desespero. O belo e jovem herdeiro, participou da conversa com inteligível interesse. Ele parecia se preocupar com o bem-estar dos seus pais e o que quer que tivesse tirando o sossego deles, parecia que o incomodava também. Ele foi transparente e evidenciou uma preocupação sincera. Vicente, contudo, permaneceu distante, calado, absorvendo cada som pronunciado, cada gesto executado, cada olhar desesperado com uma aparente tranquilidade. Ele parecia está presente, ali, apenas para cumprir meras formalidades. Enquanto todos tentavam esconder o terror com frases e expressões fingidas, ele, Vicente, permanecia sereno e era aquilo que realmente me assustava. Ele estava sendo sincero ou conseguia manipular suas reações, melhor que todos que se encontravam naquele ambiente

de falsa "paz"?

- A senhorita terá acesso à sala amanhã e começará o seu trabalho, segunda. Manterá uma carga de horário como em qualquer outro

serviço. E lhe será concedido uma pausa de duas horas para o almoço. - Fausto levou as mãos a testa como se toda aquela socialização tivesse causando náuseas. - A senhorita está liberada para retornar às suas acomodações.

Talvez, eu devesse simplesmente ter me retirado e seguido

o meu curso, mas não se forma caminho em pastos que não se pisa, não se volta para o que não nos pertence. Não havia para

onde retornar; não ali. Aquelas pessoas não construíram estradas que facilitassem a minha vida, eles nem sabiam que eu tinha uma vida. Por que deveria me preocupar com as delicadezas das minhas passadas, já que praticamente eles preencheram o meu trajeto com sobressalentes pedregulhos, obrigando-me a saltar para continuar em uma direção completamente oposta?

- Antes de deixá-los com suas conversas íntimas a respeito da estranha que vocês "bondosamente" decidiram contratar, gostaria de reforçar que não estou aqui por opção. Vocês não me concederam o direito de escolher o que era melhor para mim e minha filha. Vocês não se importaram em me perguntar se eu queria estar aqui. Simplesmente despejaram suas ordens sobre mim como se eu fosse um capacho. Apenas queria que soubessem: não estou aqui porque vocês querem ou porque me ordenaram. Não estou aqui porque sonhei, um dia, ser uma funcionária da lendária família Becovitchi. Estou aqui porque fiquei vulnerável no dia em que trouxe ao mundo um ser que necessita inteiramente de mim, melhor, um ser que de quem necessito. Uma menina que me ensinou que posso amar outra coisa muito mais do que julguei ser capaz. É por amor a Belinda que estou aqui e é apenas por ela que

vou ficar.

Retirei-me sem esperar que os protocolos

necessários fossem efetuados para a minha saída. Não aguardei que retrucassem minhas palavras, que me dispensassem orgulhosamente da sala ou que às portas fossem abertas por algum funcionário invisível.

Simplesmente abri a primeira coisa amadeirada que avistei e percorri o amplo corredor.

Segui sem rumo com o coração galopando desesperado em busca de uma

saída.

- Senhorita Cloe.

Ouvi alguém me chamar com intensidade. Olhei para trás torcendo para que pudesse encontrar alívio no rosto de quem emitiu o grito.

- Tomás?

- Sinto muito se não a tratamos com dignidade. - Ele caminhou em minha direção. - Desculpe se não levamos em conta os seus sentimentos. Ainda assim, precisamos da senhorita mais do que imagina. Apenas não se sinta pressionada a fazer o seu trabalho. Execute-o com o amor que sei que você tem pela arte.

Ele se aproximou o suficiente para que o sentisse o seu cheiro forte de perfume caro. O suficiente para que notasse que os azuis dos seus olhos contrastavam com os fios claros dos seus cabelos cortados tão baixos que se misturavam com a cor da sua pele. Ele era inegavelmente lindo. Mas a muito aprendi que caráter se desprende da beleza e não necessita

dela para existir. A beleza é tão perecível quanto o açúcar sob a água.

- Acredito que tenha entendido errado as minhas expressões - falei sem titubear. - Vou fazer o meu trabalho e o executarei com verdadeiro capricho. Suas obras serão restauradas, senhor. Apenas não terei prazer em

fazê-lo e não há pedido no mundo que altere os meus sentimentos. - Virei-me, desejando está seguindo na direção certa.

- Senhorita Cloe. - Tomás abaixou a cabeça e

sorriu. - A senhora está indo para a cozinha. Ao menos que ainda esteja com fome, sugiro que siga pela direção contrária. - Ele apontou.

- Obrigada - falei tentando esconder a raiva que senti ao ter minha altiva saída interrompida.

O senhor que havia me direcionado até a sala de

jantar apareceu na minha frente com minha bolsa e me guiou até à porta. Matteo esperava por mim encostado no carro. Respirei aliviada com o céu estrelado acima da minha cabeça e quando olhei o rosto carrancudo de Matteo, senti um intenso alívio interno, algo que jamais imaginei experienciar ao lado de um ser tão amedrontador.

- Estou aqui para levá-la - Matteo falou com

carinho.

Ele não fez uso do meu nome, mas percebi que não utilizou o "senhora".

Escolhi acreditar que ele sentiu a minha angústia e se compadeceu. Afinal, se o nosso coração for proporcional ao nosso tamanho, Matteo escondia um enorme.

- Obrigada, Matteo. - Abri a porta

antes que dele realizar tal ato desnecessário.

- Senhora, o Leste fica evidente quando o sol

nasce, mas ele não deixa de existir só porque o sol se põe. Poucas coordenações são necessárias para o encontrarmos.

Entrei na casa sem entender absolutamente nadada mensagem pronunciada por Matteo. Talvez a intenção dele fosse me consolar, pois suas palavras continham a doce sonoridade da compaixão. Entretanto, fiquei confusa, mas não quis lhe dizer.

Além disso, aquela era a menor das minhas ambiguidades e antes que pudesse conceder lugar as minhas irresoluções internas, direcionei a atenção para a jovem que ficou com Belinda e que estava me esperando em pé, próximo à porta do quarto que eu dormiria.

- Ela queria esperar a senhora, mas infelizmente não conseguiu.

- Obrigada - tentei lembrar o nome dela, mas percebi que nem sabia.

- Leila. - Ela abaixou a cabeça e sorriu.

- Muito obrigada, Leila. - Observei minha menina dormindo tranquilamente numa cama

confortável e sorri.

- Não precisa agradecer, foi o primeiro trabalho

que realizei aqui que realmente gostei. A senhora tem uma filha amável e inteligente - Leila falou baixinho.

- Mesmo assim, obrigada. Você poderia

permanecer um pouco mais enquanto me desfaço dessas roupas e tomo um banho

rápido? - Pedi com gentileza antes que Leila partisse.

- Com prazer, senhora.

Alguns segundos depois estava sozinha, em frente ao espelho do banheiro, pensando em tudo o que havia ocorrido nas horas passadas. O que estava acontecendo? Por que a restauração das obras desestabilizava Fausto? Quem era o homem que invadiu minha casa e que disse ser filho de Eduard?

Tais interrogações me fizeram lembrar dos rabiscos no sabonete. Segurei a pequena

flor e encarei. Vi as letras e os números. Mentalmente repeti: letras e números. Logo pensei em coordenadas e conclui que aquilo era, de fato, algum tipo de coordenada.

"Eu tenho essas terras mapeadas" foi o que

Vicente havia dito no jantar. Será que ele estava querendo me fornecer alguma espécie de instrução? Mas do que adiantaria, se não entendo o que vejo? Fixei os olhos na letra L. "Encontrarmos o Leste facilmente", disse

Matteo.

Ou eu estava enlouquecendo ou tudo aquilo me

levaria ao mesmo lugar. Refletindo nisso, apressei-me em vestir uma calça folgada e uma blusa confortável. Fui até o quarto e vi que

Belinda ainda dormia tranquilamente e Leila permanecia ao seu lado com uma revista de palavras-cruzadas em mãos. Lembrei da frase que desapareceu mais cedo do papel que foi me entregue por Vicente: Não julgar.

Estaria ele a se referir a sua presença naquela sala? Provavelmente, pois a primeira coisa que fiz ao vê-lo ali foi julgá-lo. Entretanto, se tudo

aquilo estava mesmo sendo distribuído como peças de um enigma, eu precisava descobrir. Infelizmente, minha natureza curiosa me impelia a ter o controle necessário das coisas que circulavam a minha volta.

Talvez, até me arrependesse depois, mas, até então, não havia lamentos, só

curiosidades.

- Leila?

- Pois não, senhora.

- Você poderia ficar mais um tempinho? Preciso pensar, vou fazer uma caminhada rápida.

- Dizem que depois das grandes árvores, à vista é incrível - Leila sorriu intensamente.

- O que a torna tão especial? - Questionei verdadeiramente interessada.

- Há um pequeno lago e poucas

pessoas o visitam. - Ela ergueu o ombro.

Minha curiosidade ficou ainda mais aguçada. Por que alguém ia sugerir que eu visitasse um lago aquela hora da noite?

- O caminho até lá é difícil?

- É só seguir a cerca viva, fica no fundo

desta propriedade. Alguns pinheiros se destacarão, basta caminhar um pouco mais e logo a senhora estará de frente ao lago.

- Obrigada, Leila. - Coloquei o meu celular no bolso, torcendo que tivesse carga o suficiente para a lanterna permanecer acesa o tempo que precisasse.

Caminhei assustada, com a sensação de que os

meus passos estavam sendo vigiados, embora não tivesse visto nenhum homem armado (semelhante aos que observei posicionados nos lugares centrais da propriedade garantido a segurança da casa e dos seus habitantes).

Recostei os dedos no muro coberto por plantas ramificadas e passei a mão suavemente nelas, esperando que as instruções que segui me levassem, de fato, onde eu queira ou devia estar.

Senti-me apreensiva durante o trajeto como se estivesse executando algo perigoso, por isso, tragicamente não pude apreciar a beleza implícita no céu, como realmente deveria. Eu estava ansiosa para entender aquele dilema.

Dentro de mim, cri que as minhas perguntas encontrariam o objeto das suas buscas e as respostas saciariam a minha curiosidade. Entretanto, não há como encontrar respostas satisfatórias para indagações imprecisas. Nem sabia pelo que buscava, como, então, poderia achar?

No meio das minhas inquietantes ponderações, deparei-me com os frondosos pinheiros. Havia, em minha frente, um largo caminho que adentrei corajosamente.

Não sei se considero isso uma virtude ou um defeito, mas nunca temi o mundo externo

e suas densidades. Tenho medo veemente do que se passa dentro de mim e dentro do outro. São as obscuridades que cercam a mente e sondam os corações que me apavoram.

Os delírios e os pavores nascem de dentro e, se não controlados, impelem a ignorância na ação do homem. Queria ter a serenidade de lidar com o meu intelecto assim como lido com as coisas

visíveis.

- Cloe!

Foi a primeira vez que ouvi meu nome sendo

pronunciado naquele ambiente prisional sem um pronome desnecessário de tratamento. E aquele som, tão simples e desejado, me fez recobrar os sentidos.

Olhei em volta e vi que me encontrava a poucos metros de um pequeno lago. O reflexo da lua sobre a água possibilitou que a beleza daquele lugar fosse transmitida com integridade para os meus olhos.

Havia diferentes flores em tamanhos e espécies. Alguns refletores, posicionados em lugares estratégicos, permitiam que os encantos

fossem absorvidos de diferentes maneiras.

- Lindo, não é verdade? - Vicente se aproximou de mim.

Permaneci parada, admirando aquele ambiente

colossal e de forma proposital fixei ainda mais minha atenção na paisagem, evitando conceder-lhe o desejo de ver os meus olhos desesperados por respostas.

- Mérito ao paisagista - respondi calmamente.

- Qual? Todo espaço que há em nossa volta não passa de uma obra da "mãe" natureza. - Ele sentou-se em uma pedra espaçosa.

- E a distribuição das ornamentadas flores? -

Sentei-me ao seu lado.

- Elas sempre estiveram aqui, nesta propriedade. Antes mesmo de meu avô decidir construir. Antes de terem um

legado. Ela pertencia ao meu bisavô. Que era fascinado por esse lugar e foi também um excelente desenhista. Essa paisagem era retratada em quase toda carta que ele escrevia. Tenho algumas que pertenceram a minha a mãe e que ainda as

guardo com genuíno carinho. Meu bisavô era um bom homem.

- Desculpe o insulto, então - expressei-me sem delongas.

Às vezes é cansativo tentar entender o ser humano, ainda assim, basta estar ao lado de alguém para eu tentar decifrar o seu caráter, conhecer as suas virtudes e avaliar os seus defeitos. Aquele homem, aparentando pouco mais de trinta anos, calculava as palavras ao

pronunciá-las. Sua sagacidade se tornou perceptível nos raros diálogos que o presenciei desenvolver. Ele sabia que eu tinha dúvidas substanciais e ainda assim optou por falar da beleza do lugar.

Certamente era belo, mas não podia sentir a paz que ele transmitia se as minhas confusões internas eram bem maiores.

- Vamos lá Cloe, pergunte. - Ele observou as águas escuras do lago.

- Quem é você?

Não hesitei em questionar o que era essencial para definir o rumo da nossa conversa e determinar se valeria a pena escutá-lo ou entendê-lo.

- Vicente Becovitchi, mas suponho que tenha

deduzido isso assim que me viu no jantar - ele respondeu calmamente.

- Está errado - contra-ataquei. - Eu não entendi o porquê estava naquele jantar, mas escolhi acreditar que você era mesmo Vicente Mason, como se apresentou a mim.

Tentei manter a raiva, que ascendia em meu peito, controlada. O peso de uma mentira

arremessada em você por outro alguém é doloroso e cruel. As pessoas não

precisam ser gentis, mas definitivamente deviam ser verdadeiras. Odeio as

mentiras dos outros e odeio ainda mais minha ingenuidade ao transformar essas mentiras em sagradas verdades.

- Se lhe dissesse o meu sobrenome, teria vindo até aqui? - Ele manteve o tom de voz e o mesmo ritmo na conversa, como se a raiva

em minhas palavras não tivessem o afetado.

- Não, eu não teria - falei baixinho. - Contudo, a mentira que me trouxe até aqui é a mesma que me fará partir sem desejar que mais nada seja dito. - Levantei-me calma e confiante.

- Sente-se - ele ordenou.

Indignada com a ordem, olhei-o, tencionando esbravejar a minha angústia, a minha dor e o

meu ódio por estar ali, por ser obrigada a estar ali. Porém, antes que eu abrisse os lábios, ele balançou a cabeça e encarando intensamente os meus olhos disse:

- John foi assassinado.

            
            

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