/0/5628/coverbig.jpg?v=0709970bfecd1f5fe412002907769292)
Belinda e Leila haviam regressado do passeio ao lago e, naquele momento, nada mais foi
pronunciado por mim ou por Vicente. Ficamos em silêncio, cada um administrando
a direção dos seus próprios conceitos internos. Remoí intimamente as coisas que deviam ter sido ditas e as guardei para um dia em que os expectadores não limitassem minha efusão.
A presença de Belinda, era um lembrete constante de que eu podia e devia ter o controle sobre as minhas citações e ninguém deveria ter o poder de me desestabilizar. Entretanto, sentindo-me aparvalhada, resultado de um diálogo interrompido sem que eu tivesse experimentado o êxito final, despedi-me de Carmem com alguns sentimentos ainda intactos. Abracei-a com carinho e gratidão. Verdadeiramente, simpatizei com o seu jeito hospitaleiro. Poucas pessoas enxergam a grandeza dessa qualidade que não precisa do "muito" para existir, pois não se trata das coisas que temos para oferecer e sim de como as oferecemos. Carmem foi generosa e afável e, desconsiderando minhas roupas manchadas de tinta, abraçou-me.
Seguimos de volta para a mansão. As conversas transcorreram normalmente como se não houvesse patrão e empregados compartilhando a mesma atmosfera descontraída, como se todos ali, exceto eu, fossem amigos de longa data.
Belinda estava extasiada. Era como se um mundo novo houvesse sido apresentado aos seus doces olhos. Na verdade, um mundo novo foi exteriorizado. Não haviam paredes por cima de paredes, ou espaços minúsculos para andar de bicicleta, nem ruas barulhentas e movimentadas. Tudo era puro, espaçoso, sossegado e lindo.
- Moraria ali para sempre. - Belinda suspirou.
Senti-me inútil por não ter combatido o impulso de abandonar às terras que pertenciam ao John. Devia ter lutado pela permanência em meu lar. Envergonhei-me pelos trapos de desculpas que teci dentro de mim e fingi ser seda rara. Poderia ter encontrado facilmente uma maneira de sobreviver e garantir nosso sustento sem egoistamente ter privado da minha filha a felicidade de habitar o paraíso.
Doía-me não ter retornado as terras altas, as areias brancas, a minha casinha contemporânea, com as janelas e portas de um vivo tom de marsala, equipada com os singelos designs dos séculos passados.
Belinda não conhecia o mar, nunca ousei levá-la as áreas litorâneas. Não queria sentir em outro lugar a paz que só os ventos do meu lar deviam me proporcionar.
Existem coisas que devem permanecer em nossa mente como sempre foram, intocadas, apesar das mudanças que nos causam dores cáusticas.
- Sinta-se à vontade para aparecer quando quiser. - Leila segurou aquelas mãos pequenas.
Sorri, grata pelo gesto gentil que interrompeu os meus pensamentos tristes, antes que eles impulsionassem a pronúncia dos lamentos ou das lágrimas indecorosas.
- Foi uma tarde maravilhosa! Obrigada pela companhia e hospitalidade que vocês demonstraram. - Senti o carro desacelerar e parar na lateral da casa principal.
- O prazer foi nosso, senhorita. - Matteo voltou ao papel que desempenhou no dia que o conheci.
Antes de descer do carro, agarrei Belinda e a abracei forte como se suplicasse silenciosamente o seu perdão. "Perdoe-me por privá-la de uma vida feliz" pensei enquanto depositava um beijo em sua testa.
-Você pode levá-las Matteo, vou acompanhar a senhorita Cloe. - Vicente desceu do carro e se despediu de todos.
- Não precisa. - Coloquei desconfortavelmente as mãos no bolso.
- Na verdade, preciso. - Ele inclinou o pescoço para o lado. - Pelo que eu sei ainda não cadastraram sua digital na porta - ele concluiu sarcástico.
A vontade de retribuir aquele sorriso com um leve golpe corpóreo, atingiu minha mente com tanta intensidade que eficazmente visualizei a prazerosa cena.
Obviamente, necessitava ter as pernas e os pulmões em condições dignas de um maratonista, pois facilmente seria derrubada se, com aqueles braços fortes, Vicente retaliasse.
- Algum problema? - Ele olhou para trás ao me ver parada.
- Nenhum. - Escondi minha fúria atrás de um falso sorriso.
Assim que chegamos a "caixa-forte", percebi imediatamente que alguém havia estado ali após a minha saída. Temendo que aquela "invasão" estivesse ligada a suposta mensagem deixada por Eduard, e que até tal momento não havia sido decifrada por mim, expressei os meus medos a Vicente, antes que ele se retirasse.
- Alguém esteve aqui - falei baixinho e caminhei em direção ao banheiro onde deduzi não haver câmeras.
Vicente permaneceu no mesmo lugar, no centro da sala, olhando discretamente para minha
direção.
- Costumo ordenar as tintas por cores. As que mais serão usadas são sempre as primeiras. Estou usando frequentemente a marrom e ela não era a última da fila. - Apontei para os cinco frascos em cima da mesa.
- Não parece haver um padrão de organização aqui. - Ele segurou o tablet e fingiu olhar alguma coisa.
- Exato - sussurrei. - Quem se preocuparia em deixar algo no mesmo lugar, sendo que ele parece bagunçado? - Abri os braços para reforçar os meus argumentos.
- Tudo bem, os únicos que têm acesso são os membros da família e Luigi que é incapaz de tentar alguma burrice. - Vicente abaixou a cabeça e se esforçou para falar baixo.
- Ah! - Permaneci nervosa.
- A não ser que... - ele parou de falar. - Você vai mesmo deixá-lo assim. - Ele se aproximou com o tablet.
- Vou - respondi, compreendendo que sua verdadeira intenção era mudar temporariamente de assunto.
- Você está bem? - Ele indagou.
- Acho que algo que comi me causou um desconforto. - Exagerei o "fingido" mal-estar.
- Um pouco de ar lhe fará bem. - Ele colocou o tablet na mesa e estendeu o braço para que eu apoiasse a mão.
Saímos em direção ao pequeno jardim. Vicente me conduziu até um banco de mármore atrás de algumas plantas e pediu que eu sentasse.
- Por que a ideia de alguém com acesso ter ido lá a aterrorizou? - ele questionou intrigado e aparentemente preocupado.
- Acho que descobri algo importante. - Olhei em volta.
- Tudo bem, não há câmeras aqui. Estamos em um ponto cego. - Vicente sentou ao meu lado.
Não intencionei contar minhas suspeitas a ninguém. Enquanto as minhas opiniões sobre quem era confiável não estavam consolidadas, haviam suposições e certezas que eu decidi guardar para mim. Entretanto, a possibilidade de alguém ter alterado uma provável pista relacionada aquela estressante situação de suposto assassinato, deixou-me vulnerável.
- Hoje pela manhã, enquanto eu admirava a restauração que Eduard havia feito, notei que haviam alguns contornos irregulares. Eles fogem do padrão da pintura, mas são imperceptíveis aos olhos de meros admiradores.
- Obrigado por valorizar a minha inteligência. - Vicente franziu a testa.
-Não estou dizendo que você ou os outros sejam estúpidos, apenas afirmo que só um olhar clínico seria capaz de enxergar as imperfeições - retruquei.
- Aceito suas desculpas. - Vicente curvou a cabeça.
- Mesmo percebendo que havia algo de errado, não consegui decifrar. Sabia que ia precisar usar um aparelho de fluorescência que é utilizado para observar os detalhes na arte. Contudo, temi que se estivesse sendo observada, o meu profundo interesse por uma restauração despertasse a curiosidade de alguém. Por
isso, concentrei-me no meu trabalho, esperando que aos poucos fosse analisando aquelas anomalias sem chamar atenção. Meu medo é que isso já tenha acontecido - desabafei, realmente preocupada.
- Duvido muito - Vicente falou calmamente. - Como você mesma disse, seria necessária perícia para identificar a alteração e lhe garanto que se alguém nesta família a tivesse, você não precisaria estar aqui. - Ele deu um leve tapa na minha mão.
- O que faço agora? - perguntei angustiada.
- O que tencionava desde o início. Restaure e discretamente avalie as outras restaurações. Não se preocupe, vou cuidar para que ninguém desconfie de nada.
Ele se levantou na espera que eu fizesse o mesmo e eu fiz. Voltei para o "quarto do pânico" e tentei não me apavorar. Vicente se foi e eu permaneci ali restaurando, apenas isso. Dediquei-me a pintura do quadro que havia escolhido para principiar o reparo. Brinquei com as cores e a tela. Esqueci que estava sendo observada ou que estava trabalhando por obrigação. Deslembrei os problemas antigos e os novos e, durante quatro horas, tornei-me uma simples admiradora possuindo o objeto da admiração nas mãos.
Passava das cinco quando organizei as coisas na "câmera fria" e retornei para a minha "hospedagem". Matteo esperou que Leila se ajeitasse e retornasse com ele.
Sentei-me ao lado de Belinda, após um banho rápido e assistimos "Procurando o Nemo" pela milésima vez. Naquele instante não pude evitar sentir pena de Marlim como senti pena de mim. O medo de perder o ser que ficou aos meus cuidados era tão intenso e brutal que parei de contar quantas vezes acordei no meio da noite
para me certificar que Belinda estava ao meu lado. Como foi difícil ter que deixá-la no primeiro dia de aula ou aos cuidados de uma babá para poder trabalhar. Quão cruel é o sentimento de impotência. Eu sabia que daria minha vida por Belinda, nadaria num oceano cheio de tubarões, sendo uma mera presa,
para me certificar do bem-estar da minha filha. Entretanto, poderia resgatá-la de tudo? Seria capaz de salvá-la dos sofrimentos proeminentes em uma vida injusta?
Meu medo não era fruto de uma instabilidade emocional mal tratada, ele era real. Eu havia perdido alguém e entendia que pouco importa o quanto você deseja que o outro fique bem, não sofra, viva, isso não é o suficiente. Desejos
são sonhos acessíveis, mas, ainda assim, alguns se tornam impossíveis de serem
alcançados com um simples querer. Eu queria John ao meu lado, queria que ele
tivesse segurado Belinda nos braços, queria escutá-lo cantar para ela, queria, como queria! Contudo, não estava mais em minhas mãos o poder de realizar absolutamente nada do meu "querer", na verdade, nunca esteve. São essas peças intangíveis que impedem a vida de criar um alicerce incapaz de ser abalado. Alguns ventos fortes balançaram as minhas paredes e um temporal causou uma grande ruína interna. Por mais que eu lute para não acovardar, sempre serei traída pelas minhas próprias emoções.
- Mãe. - Belinda colocou a cabeça na minha perna.
- Oi. - Passei a mão pelos seus cabelos vermelhos.
- Por que a senhora pediu para eu fazer aquilo com os nossos bilhetes? Também não entendi a última frase. Estava escrita em outro idioma? - Ela apertou os pequenos olhos azuis, o que me fez lembrar das expressões curiosas que John
expressava.
- Não amor. Eu escrevi um código.
- O que dizia?
- Amo você! - Beijei-lhe o rosto.
- Por que não escreveu só: amo você? Teria sido mais fácil de entender. - Ela franziu a testa de um jeito que me fez rir.
- Vamos dormir? - Retirei Belinda do meu colo. Peguei um papel e um lápis na escrivaninha e segui para o quarto.
- Não está um pouco cedo? - Ela me seguiu.
Caminhamos até a suíte e depois de escovarmos os dentes pedi que Belinda sentasse na banheira vazia junto comigo.
- Vou lhe ensinar o código. Trata-se de uma brincadeira que aprendi quando criança. - Comecei a escrever no papel. - Enquanto estivermos aqui vamos nos comunicar assim e ninguém pode saber o que eu ou você escreve uma para outra - expliquei pacientemente.
- Certo. - Ela me encarou empolgada.
Iniciei os rabiscos na folha em branco (várias letras contendo traços em cima e cada
uma carregando um significado simples, por exemplo: "e" maiúsculo era "a",
o "a" maiúsculo com um traço era "b" e assim sucessivamente).
Passamos à noite sentadas, escrevendo frases aleatórias até Belinda conseguir entender. Foi prazeroso e fácil, pois ela nunca teve preguiça em aprender. Aos cinco anos já conseguia ler e escrever frases inteiras, deixando-me
completamente orgulhosa (como qualquer outra mãe ficaria observando os passos
que os filhos dão em busca do conhecimento).
- Temos agora um código e ele pertence apenas a nós. - Pisquei e guardei os papéis dentro do golfinho de pelúcia.
Logo em seguida rabiscamos algumas folhas com joguinhos até, por fim, sentirmos a necessidade de irmos para a cama.
- Vai contar uma história para mim hoje? - Ela bocejou.
- Sim - respondi entusiasmada. - Já ficamos alguns dias sem elas e isso não está certo. - Enfiei-me embaixo da coberta e abracei-a.
- Papai estará nela?
- Você quer que ele esteja? - O meu coração se comprimiu.
- Muito. - Ela sorriu, e aquilo bastou para que uma história triste ganhasse cor.
- Era sábado e estava frio. Eu demorei para dormir, porque o seu pai ainda não havia me ligado aquela noite. Já estávamos namorando há sete meses e ele sempre me dava boa noite antes de dormir. Ele dizia: durma bem querida e segure firme o meu coração enquanto dorme para que ele não pare de bater.
- Como a senhora seguraria o coração dele se ele não estava por perto? - Belinda fez a primeira de muitas interrogações que surgiram na história.
- Ele queria que eu colocasse a mão no meu próprio peito, pois para ele continuar vivendo, ele precisava de mim, do meu coração. - Inconscientemente levei a mão ao peito.
- Por isso, às vezes, basta te ter para sentir que tenho os dois - outro bocejo maior e mais demorado foi expelido por Belinda.
- Não basta - disse a mim mesma enquanto uma lágrima tímida escorregou em minha
face.
- Mamãe? - Belinda virou para mim.
- Sim. - Passei rapidamente a mão no rosto, torcendo para que a luz fraca do abajur não revelasse minha fraqueza.
- Se a senhora segurou o coração, por que o papai não estar aqui?
Nunca fui cegamente ingênua, sabia que
chegaria o tempo em que as perguntas se tornariam profundas e as respostas
vagas. No entanto, até aquele dia, desconhecia a dor que tais perguntas causavam.
- Porque, às vezes, por mais que a gente segure forte o nosso coração, o da outra pessoa precisa continuar funcionando, batendo, para que a força não acabe e sem querer a gente afrouxe as mãos - respondi com uma tristeza profunda.
Belinda não estava mais com os olhos abertos e eu agradeci em silêncio por não precisar explicar aquilo que só as lágrimas conseguem exprimir.
No dia seguinte, uma terça-feira, olhei o meu rosto no espelho, antes de encarar mais um estranho dia de "trabalho". Os inchaços envolta dos olhos evidenciaram que à minha noite havia sido difícil. Ainda assim, lá estava eu, oito horas em ponto, esperando minha "carona".
Durante aquela semana as coisas se repetiram praticamente da mesma maneira, exceto na
quinta-feira e na sexta-feira. Dediquei-me, nesses dias, ao estudo detalhado dos rabiscos nas obras restauradas. Deduzi que não suspeitariam da minha busca, já que nos dias anteriores havia dado pouca ou quase nenhuma
atenção as restaurações de Eduard. Eu tinha finalizado os meus primeiros reparos. Minhas ações subsequentes poderiam indicar que estava unicamente comparando o resultado dos trabalhos. Bom! A intenção era que as coisas fossem interpretadas exatamente assim.
Concentrada na primeira tela, deslindei traços que aparentemente formavam letras. Houve uma vultosa dificuldade para descobrir exatamente quais eram as iniciais debuxadas,
porém, com paciência e discrição, obtive êxito. Desvendei de imediato aquelas letras que formaram a estranha palavra: NIK. Entretanto, nenhum significado fulcral surgiu em minha memória.
Na sexta-feira pela manhã, tentei entender as outras ondulações que se escondiam
atrás da impecável "reforma" da segunda tela, todavia, o fato de ter encontrado
um simples traço vertical, fez-me entender, com extrema relutância, que Eduard havia cometido um pequeno deslize. No fim do dia, senti-me frustrada, pois havia depositado naquelas infiltrações a esperança de consertar os canos
quebrados. Julguei que me depararia com as respostas para as inúmeras indagações associadas as resoluções dos mistérios. Tolice, pensei eu, por que Eduard deixaria uma pista para mim se ele não podia prever que eu as
encontraria? Deixaria? Mais perguntas sem respostas.
À noite, enquanto observei Belinda "embrulhadinha" na imensa cama, tentei reler
um livro antigo, não obstante, nada mais fiz que encarar por um bom tempo o título de um livro em formato digital. Já havia o lido junto com o meu pai; o último livro que lemos juntos. Há anos, venho coligindo coragem para relê-lo, entretanto, temo as reflexões que ele arrancará da minha alma. Sucumbindo ao medo, continuei observando a capa e lastimei a ausência das folhas gastas e amareladas e desejei sentir o agradável cheiro de livro antigo.
Facilmente, retornei aos meus dezesseis anos. Deitada na pequena sala da casa alugada, escutava meu pai ler com um extremo desvelo. Às vezes, ele pedia que eu seguisse com a leitura, mas quase sempre o convencia de que com a voz dele dava vida ao texto.
Ele lia por horas e eu o escutava com o mesmo encanto nos olhos de quando era uma menininha, com os cachos atrás das orelhas, sentada em seu colo, sentindo um frio na barriga a espera do ponto final.
O que eu não entendia, aos seis ou aos dezesseis, era que enquanto uma estória terceirizada estava sendo contada, a nossa própria história ia sendo escrita. Ganhava, sem
nosso real consentimento, princípio, meio e fim. E por mais que tentássemos moldá-la, o fim era inclemente e lúgubre.
Durante minha tentativa fracassada de releitura, escutei um barulho irritante, similar a um despertador antigo. Os meus olhos percorreram os quatro cantos do quarto tentando identificar a origem daquele som incomodativo. Belinda despertou assustada, olhando para o Boo (o golfinho de pelúcia) escondido em seus braços.
Caminhei rapidamente até a cama e antes que ela compreendesse que havia acordado, retirei o Pager de dentro das espumas da querida e antiga pelúcia.
- Tudo bem amor, volte a dormir, estou aqui. - Acarinhei por alguns segundos o seu rosto e ela votou a dormir.
Embora soubesse que só uma pessoa poderia me mandar mensagem daquela forma, fui pega
de surpresa. Passava das onze da noite e supus que não havia acontecido nada tão importante que não pudesse esperar até o dia seguinte.
"Preciso lhe ver imediatamente".
Não continha, naquela mensagem um pedido, claramente aquilo era uma ordem que eu estava determinada a ignorar.
"Por favor".
Duas palavras que transformaram a minha relutância em curiosidade. Que informação exigia que um patrão pedisse por favor a uma funcionária. Sim, Vicente era o meu patrão. Ele fazia parte de um antro que ditava as regras sob as quais fui submetida. Ele podia até não ser o "rei" naquele jogo, mas certamente não era o "peão".
"Belinda está dormindo, não posso deixá-la sozinha".
Enviei uma resposta.
"Abra a porta da frente"
Outra ordem surgiu em forma de mensagem e eu controlei o meu impulso de mandá-lo para o
inferno. De mandar todos ali para o inferno. Eu não pedi para estar ali. Eu não queria estar ali, escutando decretos e tendo que executá-los como se houvesse júbilo da minha parte. Ainda assim, levantei-me da poltrona e segui para sala,
obedecendo prontamente o comando superior, sem me preocupar com a roupa velha
que estava usando ou com a expressão insatisfeita que eclodiu em meu rosto.
- Pensei que você não poderia encontrar comigo aqui - falei com desdém.
- As câmeras estão desligadas. - Ele entrou sem pedir permissão ou licença. - Uma
pessoa confiável passou na sala de monitoramento, hoje. - Vicente deduziu que apenas essa explicação era suficiente.
- Certo - respondi mal-humorada.
- Estava certo, Eduard foi envenenado. -Vicente sentou-se no sofá aparentando um real desconforto.
- Como soube? - Sentei-me na outra extremidade.
- Pedi para uma amiga minha, que é legista, fazer uma análise com base nas minhas suposições. Como Eduard não tinha nenhum parente vivo, não houve dificuldades para realizar os procedimentos sem levantar suspeita. Todos acham que ele foi enterrado no mesmo dia que morreu. - Ele parou como se aquilo explicasse tudo.
O único problema é que não explicava.
- O que sua amiga descobriu? - indaguei com interesse genuíno, afinal, tratava-se da morte de alguém que ajudou a construir parte da minha história.
- Ricina; ele fez a ingestão de ricina. Provavelmente dois ou três dias antes de ter um colapso fatal. - Vicente se esforçou para continuar sereno, mas os traços do seu rosto se contorciam denotando raiva.
- O que vai fazer diante dessa comprovação? - perguntei angustiada.
Se Vicente acertou quanto ao assassinato de Eduard, era bem provável que todas as outras suspeitas se transformassem em verdades consistentes. A morte do John poderia ser configurada assassinato.
- Vou descobrir quem cometeu o crime, mas como já havia dito vou precisar da sua ajuda.
Eis que os olhos que vi na noite que o conheci estavam ali outra vez, eles eram intensos e desprovidos de arrogância. Eles suplicavam e não impunham.
- Creio que você deveria levar todos esses fatos a polícia. Melhor do que você ou eu, eles poderão fornecer ajuda adequada - argumentei com sensatez.
- Você não entende, o meu tio controla tudo nesta cidade e em tantas outras, a polícia é apenas mais uma legião de soldados obedientes. - Vicente sentou mais perto.
- Não consigo enxergar como posso servir de ajuda. É você quem tem acesso a todos nesta casa. Você tem o sobrenome deles. Você é um deles - disse com rancor.
- Isso não é uma verdade completa. Meu castigo é ter o mesmo sobrenome e minha redenção é não ter deixado isso interferir em quem eu sou. - Ele abaixou a cabeça. - E isso me impede de ter as provas que eu preciso.
- Não entendi. - O encarei confusa.
- Meu tio não compartilharia comigo o menor dos seus planos, ele não confia em
mim - ele explicou sem fazer arrodeio.
- Se é mesmo assim, o que está fazendo aqui?
- Essa propriedade pertence tanto ao meu tio quanto a minha mãe. Infelizmente, ela morreu anos atrás, então sou o herdeiro legal de parte da propriedade. Estou aqui a pedido dos advogados. Estão tentando encontrar uma maneira de resolver essa situação sem tanta formalidade - ele voltou a falar com impassibilidade.
- Agora fiquei curiosa, como eu, uma completa desconhecida, serei útil? De que forma você quer que eu o ajude? - Retirei a almofada das costas e coloquei as pernas em cima do sofá.
- Diferente do meu tio, Tomás não tem tanta dificuldade em compartilhar informações, exceto comigo. Ele me odeia - Vicente revelou com muita naturalidade. - Entretanto, você pode se aproximar dele o suficiente para conseguir algo que nos ajude. - Ele olhou para as minhas pernas, parcialmente expostas.
- Nos ajude? - Involuntariamente, estiquei o short de algodão.
- Não faça isso. - Ele apertou os olhos. - Não finja que desvendar a morte do Eduard não lhe interessa.
- Eu lamento a morte dele, mas tudo que quero é acabar com a droga desse serviço e dá o fora desse hospício - menti.
Euestava interessada, sim, em saber quem matou Eduard e aonde tudo aquilo iria me
levar, mas não achei necessário confidenciar-lhe isso.
- Você não precisa ser honesta comigo, mas não minta para si mesma. - Vicente
sorriu como se fosse o dono do bom senso.
- Droga - gritei. - Você acha mesmo que me conhece? Você não me conhece. Não
quero trabalhar para você, já trabalho para o seu tio. - Apontei para algum lugar qualquer na direção da mansão.
- Cloe - ele sussurrou suavemente.
- Pare. - Balancei a cabeça.
- Você pode não querer me ajudar, mas eu preciso da sua ajuda. Preciso de você como nunca pensei que fosse precisar de alguém. - Ele segurou minha mão. - Por favor.
- Por quê? Por que se importa tanto com a morte do Eduard?
- Esse pode ser o elo para as respostas que venho buscando sobre algumas coisas, há muito tempo - Vicente não me olhou.
- Coisas que você não vai compartilhar comigo. - Inclinei a cabeça.
- Não. - Aquela simples palavra soou extremamente pesada.
- Qual é o plano?
Quase sorri quando Vicente voltou a me olhar, surpreso. Não importava o porquê ele queria tanto desvendar aquele assassinato, eu também desejava o mesmo e de nada adiantaria lutar contra o óbvio.
- Tomás é o plano - ele falou desconfiado.
- Você já disse isso, mas o que eu preciso fazer?
- Conquistá-lo.
- O que? - Levantei exasperada. - Você é louco por sugerir que eu faça algo assim - contive-me para não bradar.
- Cloe, conheço bem o meu primo e ele não resiste a nenhuma mulher bonita. - Ele se levantou.
- Saia. - Apontei para porta
- Cloe, não estou pedindo que durma com ele, jamais lhe pediria isso. - Ele se aproximou.
- Não mesmo? - retruquei com desprezo.
- Estou sugerindo que se aproxime dele e conquiste a sua confiança. - Ele estendeu o braço para me tocar e desistiu.
- Quando penso que uma parceria pode surgir entre nós, você age como um tremendo cretino. Não ligo se você decidiu que não lhe convém que eu durma com o Tomás. Não vou usar nenhum artifício para induzir alguém a confiar em mim e depois apunhalá-lo pelas costas. - Respirei, antes que não pudesse controlar a raiva que me agatanhava.
- Você não pode enfiar a faca em quem está com uma Glock 17 apontada para a sua cabeça. Ele não se importa com os sentimentos de ninguém, não se preocupe em ferir os dele, ele é desprovido disso. - Ele se afastou.
- Isso é irrelevante para mim. As mentiras que contamos carregam seus próprios venenos. Seria impossível ser traiçoeira com ele sem que eu sofresse o efeito colateral. Agora se não for pedir muito preciso descansar, Vicente Mason - frisei, propositalmente, o sobrenome inventado no dia em que o conheci.
- Cloe - ele iniciou uma réplica.
- Fora - gritei e ele saiu.