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Montei um cronograma mental com os passos que daria para recolher materiais. O primeiro e mais importante, era descobrir em quem realmente poderia confiar.
- Bom dia, Leila!
A segunda-feira demorou de chegar, mas quando o sol apontou no céu, com os fracos raios que transformavam à noite em dia, já estava pronta para efetuar o meu "trabalho".
- Bom dia senhora; digo, Cloe.
- Há quantos anos trabalha aqui?
- Perguntei casualmente.
- Três anos. - Ela sorriu.
- Tem algum outro parente seu que trabalha ou
trabalhou aqui? - Tentei sorrir.
- Minha mãe trabalhou e o meu pai ainda trabalha - ela respondeu normalmente.
- É algum funcionário que eu tive contato? -indaguei curiosa.
- Sim! Matteo - ela respondeu com entusiasmo.
- Olha! Jamais teria imaginado. Digamos
que ele é um pouco grande - brinquei. - Mas parece ser um bom homem - falei com sinceridade.
- Certamente é! Ele é um bom pai e um bom
marido.
- É sempre bom conhecermos pessoas assim. - Sorri.
- Belinda ainda não acordou, deixei um bilhete para ela dentro do banheiro, poderia avisá-la onde coloquei assim que ela levantar? - pedi com humildade.
- Claro - Leila respondeu contente.
Não demorou muito para que Matteo chegasse para cumprir sua missão de me levar até a mansão. Entrei no carro e expressei minha felicidade em saber que Leila era sua filha.
- Ela é uma excelente menina! Tem o gênio da mãe - Matteo disse contente.
Antes que ele estacionasse na lateral da ostentosa propriedade, o olhei através do espelho e tentei decifrá-lo. O que ele era? Uma boa ou má pessoa?
- Nunca em minha vida, cogitei trabalhar para
essas pessoas, mas no seu caso deve ser algo benéfico já que trouxe junto consigo todos os da sua casa. - O observei descer e abrir a
porta ignorando totalmente o meu comentário.
- Sempre quis trabalhar para a família mais
poderosa do país. - Ele fechou a sua porta e depois a minha. - No entanto, depois de trinta anos trabalhando para eles, percebo que a realidade é diferente dos sonhos e que alguns jamais deviam se realizar - ele sussurrou. - Tenha um bom dia, senhorita Cloe.
- Bom dia, Matteo.
Quando abri a enorme porta de madeira, percebi que ainda não havia ninguém a minha espera. O jardim estava silencioso e vazio.
Perambulei em volta das diferentes plantas que havia ali, incluindo algumas trepadeiras.
Escutei o canto dos pássaros que se agitavam em volta da pequena fonte. Aquele espaço era verdadeiramente incrível. Questionei-me se alguém ali parava alguns minutos para respirar a sua beleza ou se aquilo ela a demonstração clara de que quanto mais dinheiro a pessoa tem, menos tempo ela dispõe para usufruir daquilo que a riqueza lhe proporciona.
- Bom dia, senhorita Cloe.
- Bom dia! - Assustei-me com a presença sorrateira de Tomás. - Quanto tempo está aí? - Caminhei em direção ao corredor.
- Tempo suficiente para apreciar o encanto que seu rosto transmitiu ao circular pelo jardim - ele falou sem timidez.
- É um lugar verdadeiramente lindo -falei, desconcertada.
- Não precisa se apressar, os quadros não irão a lugar algum. - Ele apontou para um banco de madeira.
- Cadê o Luigi? - Ignorei o pedido para que eu sentasse e desci as escadas.
- Tratando de alguns assuntos para o meu pai. Não se preocupe só vim liberar sua entrada, não vou importuná-la. - Ele digitou rapidamente a senha e usou a biometria para destravar a porta
de aço.
- Sei disso. Existem coisas mais interessantes do que ficar me observando trabalhar. - Coloquei o tablet sobre uma escrivaninha.
- Na verdade, apreciaria fazer isso. Sou um verdadeiro amante das artes, senhorita Cloe, mas infelizmente tenho uma importante reunião empresarial. Afinal, sou mais do que um playboy rebelde que a mídia insiste em apresentar. - Ele piscou. - Essa é a
senha que libera a sua saída. A senhorita tem tudo o que precisa aqui embaixo. Banheiro, lanches e conforto. Contudo, se precisar sair antes do seu horário de almoço, precisará ligar para o Luigi reabrir à porta, pois a senha que libera a saída não é a mesma utilizada para entrar e a cada dia a senhorita recebe uma nova senha. Compreende? - Ele pôs uma série
de oito dígitos, impresso num pequeno cartão, ao lado do tablet.
- As minhas ferramentas de trabalho estão naquele armário? - Apontei para uma grande estante de madeira a minha frente.
- Tudo que a senhorita precisar. - Ele acenou com a cabeça.
- Sendo assim, trocarei de roupa e começarei
imediatamente. - Acenei de volta.
- Tem inúmeros jalecos dentro do armário que podem ser usados para não manchar sua roupa. - Tomás ergueu uma sobrancelha.
- E, qual seria a graça disso? - Abri os braços.
Tomás sorriu e se retirou.
Segui para banheiro. Vesti uma blusa branca (que já não era mais branca), de mangas longas e uma calça jeans desbotada. Prendi os cachos em um desajeitado coque e caminhei para uma área iluminada onde estavam todos os quadros alinhados. Admirei-os por um longo período. Fui, por alguns instantes, uma espectadora em um museu vazio. Deleitei-me com a mensagem que aquelas pinturas externavam. Gonzales, retratou com intensidade o amor em seus delicados detalhes. Diferente dos rostos exagerados e das extravagâncias daquele século, ele fixou o seu dom nas coisas singelas. A minha preferida era a representação de uma âncora pequena e enferrujada, segurando uma grande e antiga embarcação. Era possível sentir o momento e foi exatamente isso que fiz antes de
tocar naquelas molduras. Admirei o belo trabalho que Eduard havia feito nas duas primeiras e ansiei que eu atingisse a mesma
competência, não porque desejava ter o reconhecimento dos Becovitchi, longe disso, mas por amor a arte e a tudo que ela representava na minha vida.
Meu pai foi um artesão e o meu marido um amante da história, estar ali era a oportunidade que eu tinha de relembrar os meus dois amores
e rememorar como fui feliz em tê-los ao meu lado.
- Não sou um perito no mundo das artes, mas
desconheço essa técnica de restauração.
Sem esperar qualquer som, que não fosse o dos meus próprios pensamentos, em um ambiente vazio e tranquilo, sobressaltei e retirei a mão da cintura, olhando subitamente para trás.
- Definitivamente você precisa parar de me assustar - apontei o dedo para ele enfurecida.
- Perdoe-me, não é essa a minha intenção. -Vicente escondeu um sorriso entre os lábios.
- Suas desculpas de nada servirão quando eu
infartar com essas suas terríveis aparições. - Direcionei os meus olhos outra vez para os quadros.
- Sou assim tão desagradável para resumir os raros contatos que tivemos em "terríveis aparições". - Ele parou ao meu lado.
- Não se trata de você, mas do seu "modus operandi" - falei sem desviar minha atenção da pintura restaurada.
- Sua explicação é ainda mais assustadora. - Ele caminhou ao redor da grande mesa no centro.
Durante aqueles poucos minutos em que fixei a
minha atenção na primeira pintura (uma ladeira empoeirada, com a roda, que havia se desvencilhado de uma charrete, rolando rumo ao desconhecido), notei alguns contornos irregulares na parte superior da tela. Era como se tivessem sido executados propositalmente. Por um momento, aquilo me intrigou.
- Perguntarei algo que possivelmente sei a resposta. - Inclinei o corpo na direção de Vicente. - Este quarto é monitorado por câmeras?
- Certamente! Um dos mais vigiados desta propriedade. - Ele franziu a testa. - Não estava pensando em sair furtivamente com as pinturas, estava? - Ele brincou.
- Ah! Sim, claro. Inclusive planejei me esquivar das outras milhares de câmeras escondidas por aí, andar até a casa de hóspede sem ser notada, carregar Belinda, derrubar os dois guardas armados no portão e saltá-lo. Obviamente, sem largar os quadros - respondi sarcasticamente, enquanto enumerava a falível trama nos dedos.
- Esse plano seu tem apenas um erro. - Ele sorriu
- Qual seria? - Consenti que ele adentrasse na minha bolha de sarcasmo.
- Não ter cogitado me levar junto - ele falou suavemente.
Ignorei aquelas palavras e não tentei dar a elas um sentido maior do que realmente aparentavam, uma simples e leve brincadeira .
- Ainda não sei se o seu caráter é confiável, nem tive tempo suficiente para avaliá-lo. - Fiz um lento movimento com a cabeça.
- Depois disso, só me resta perguntar: como
será feita essa sua avaliação? - Seu tom transpareceu um pouco de ressentimento.
- Lhe informar as minhas artimanhas seria o mesmo que entregar o gabarito de uma prova a um aluno que acabou de escrever apenas o nome no questionário. - Sorri ao abri uma pequena mala que continha diversos pincéis e tintas.
- Justo. Agora, diga-me: por que perguntou sobre as câmeras? - Ele apontou para alguns cantos.
- Curiosidade. - Fitei a segunda pintura e percebi
ligeiramente que os mesmos contornos apareciam. Calei-me.
- Há algo que deseja compartilhar comigo?
- Por que pergunta isso? -Olhei indiscretamente para ele.
- Você está encarando a pintura como se nunca
tivesse a visto antes. - Ele apertou os lindos olhos escuros.
- Estou apenas admirando um trabalho feito com qualidade. Eduard, era mesmo bom no que fazia - neguei os verdadeiros fatos sobre minha renovada atenção pelas obras.
- Sei! - Vicente evidenciou sua incredulidade em um único vocábulo.
- Bom, necessito começar, se precisa me dizer algo sugiro que faça logo. - Alisei a tela na qual principiaria os meus restauros.
- Quero convidá-la para almoçar comigo, hoje. - Ele foi direto ao assunto.
- Não posso, quero almoçar com Belinda. Não suporto ter um pouco de tempo no dia e desperdiçar a oportunidade de estar com ela.
- Compreendo. - Ele girou um pincel nas
mãos. - Porém, não a excluí da minha programação. Pretendo ter a companhia das duas. - Ele sorriu.
- Exatamente onde vamos almoçar? -perguntei extremamente curiosa.
- Há um lugar aqui perto. Os proprietários são
meus amigos e a comida é esplêndida.
- Vamos sair da prisão? - indaguei com ironia.
- Sim, serei o seu libertador - ele respondeu convicto. - Meio-dia e quinze passarei na casa de hóspede para buscá-las.
- Não escutei: você concorda, Cloe? - Apertei os olhos.
- Você estar de acordo, senhorita Cloe? - Ele resistiu ao impulso de revirar os olhos.
- Tudo em prol da minha liberdade. - Acenei
que sim.
Vicente se retirou, permitindo que eu observasse atentamente aqueles traços curiosos. Estava certa. Havia algo fora do
padrão naquela restauração. Entretanto, conhecendo a capacidade profissional de
Eduard, duvidei que ele houvesse cometidos erros, mesmo que imperceptíveis. Decidi iniciar o meu trabalho, antes que as câmeras, melhor quem estava por trás delas, suspeitasse da minha evidente curiosidade com as pinturas já
restauradas. Encabecei as minhas atividades analisando os contornos da pintura original no tablet. A dificuldade de encontrar uma imagem nítida da obra em sua forma original e intocada, retardava o trabalho, mas não o impedia de ser realizado com esmero.
As pinturas foram vistas pela última vez na propriedade do próprio Anthony. Décadas e mais décadas se passaram sem que as pessoas soubessem qual tinha sido o paradeiro das valiosíssimas artes. Alguns historiadores teorizaram que as telas haviam naufragado no início do século dezanove junto com um navio de carga. Diante dos quadros, tive certeza que essas suspeitas eram completamente falsas. Nenhuma pintura seguiria praticamente intacta se estivesse submersa em águas salgadas durante tanto tempo. Seja lá onde elas estiveram, os Becovitchi conseguiram acesso e, se iriam expor em um museu, cri que foi de forma legal.
Naquele recinto, isolado, havia ao meu dispor um espectrômetro de micro-fluorescência de raios-X, portátil. Basicamente ele serve para expor os segredos que se escondem atrás das tintas permitindo melhor perspicuidade das cores e dos pequenos rompantes na tela, os
quais necessariamente seriam retocados. Enquanto estava fazendo a análise, imediatamente entendi que poderia utilizar aquela ferramenta para enxergar melhor as imperfeições provocadas pelo professor e decifrar o que elas significavam. Contudo, esperei minha euforia se aquietar para que tudo fosse efetuado da maneira mais natural possível. Por isso, permaneci avaliando os detalhes do quadro que eu iria iniciar o restauro. Espalhei algumas tigelas vazias sobre a mesa e separei algumas cores específicas, em especial a branca e a amarronzada. Enquanto misturava as cores, refleti em quão complexo era aquele trabalho. Essencialmente, um restaurador precisa ter experiência em muitas áreas como entalhador, escultor, pintor e mais. Precisamente ele necessita conhecer a criatura e o seu criador. Orgulhava-me de dispor tanto da prática quanto da teoria e isso resultava no prazer que sentia ao executar tal tipo de trabalho.
Os ponteiros do relógio giraram sem que me apercebesse da sua velocidade e quando finalmente observei às horas, no canto superior
do tablet, percebi que já havia passado do meio-dia e que provavelmente Vicente estava a minha espera.
Guardei ligeiramente os materiais utilizados e segui em direção a claustrofóbica porta de ferro, mas logo voltei aborrecida até a mesa, no centro da sala, à procura da senha que foi deixada ali
por Tomás. Estando com o mine cartão em mãos, digitei a senha e a pesada porta destravou instantaneamente. Subi as escadas e atravessei o gracioso jardim interno como se ele fosse inexistente. Minutos depois, estava ao ar livre, torcendo para que Matteo não tivesse cansado e abandonado seu posto.
- Droga - esbravejei quando não vi nenhum carro a minha espera.
- Seus pais não lhe ensinaram que algumas
expressões não devem ser dita em voz alta.
Virei-me e lá estava Vicente, recostado contra
parede, esboçando um sorriso cativante. Ele estava vestindo algo casual e leve. Uma camisa de linho azul, dobrada até a altura do cotovelo, e uma calça jeans. Seus olhos escuros transmitiam serenidade e a sua cor preta se
intensificou com o brilho do sol. Ele era uma harmoniosa pintura emoldurada em um quadro vivo.
- Meu pai certa vez me disse que existem momentos em que algumas imprecações são nossa salvação. - Busquei onde o carro estava estacionado.
- Do que exatamente você precisa ser salva agora? - Ele se aproximou.
- Por enquanto, não vejo nenhum perigo iminente. - Coloquei a mão desnecessariamente na cintura.
- Como o seu pai se sente sabendo que criou uma terrível criatura? - Ele indagou risonho.
- Ele não pôde apreciar o resultado.
Senti o nó se formando em minha garganta e percebi, um tanto tarde, que aquela conversa me arremessou em águas densas.
- Sinto muito. - Vicente desviou os olhos para
algum lugar distante.
Não precisei explicar quão dura e substancial eram minhas palavras, talvez o soar triste da minha voz ou o brilho afugentado dos meus olhos tenham explicado o peso da minha alma.
- Eu também - foi tudo que eu consegui dizer.
- Pedi para Matteo ir buscar Belinda quando notei o seu atraso, Leila virá junto. - Ele se esforçou para sorrir.
- Você pode abrir a porta de chumbo outra vez. Preciso trocar de roupa. - Olhei para a minha colorida calça jeans e a minha antiga blusa branca.
- Precisa? - Ele ergueu uma sobrancelha.
- Não posso ir almoçar assim. - Apontei
para o meu cabelo desgrenhado, preso em um coque mal feito.
- Por que não? - Ele indagou. - Para mim, você está perfeita.
Aquela declaração inesperada me deixou um tanto sem graça, por isso desviei o meu rosto para o lado e balancei lentamente a cabeça.
- Além disso - Vicente continuou -, vamos a
um lugar que não haverá tantos expectadores e os poucos que estarão lá se sentirão bem mais felizes em vê-la assim. - Ele apontou para o carro que vinha em nossa direção.
Emiti alguns resmungos, mas não os aprofundei. No fim, senti-me feliz em saber que
para onde íamos não havia regras de etiquetas ou pessoas perfeitas ansiando pelo impecável.
Vicente abriu a porta do carro para mim, sem exigir que Matteo descesse para cumprir o seu papel e Leila ajeitou o cinto de Belinda. As duas sorriram, amplamente, quando me viram.
- A senhora é tão linda, mamãe - minha inocente filha disse. - Ela não é linda? - Belinda exigiu que Leila também me elogiasse, o que ela fez prontamente.
Belinda sempre gostou da minha aparência, mas creio que é o tipo natural de afeição que uma filha tem por sua mãe, afinal, para mim, quando criança o meu pai era o homem
mais perfeito da terra. No entanto, mesmo minha amável filha insistindo em dizer que eu tinha uma bela aparência, eu era bem realista com o que via no espelho. Nunca tive traços marcantes no rosto ou algo que se destacasse como esplêndido. Todavia, quando parava para observar alguns detalhes, sentia uma alegria indescritível. Herdei os traços do meu pai, cabelos castanhos e volumosos, olhos apertados e um nariz arredondado. O meu jeito
de sorrir era, de longe, o que mais parecia com o
dele. Não se tratava dos dentes alinhados, era o sorriso em si, doce e verdadeiro, como se lampejos de alegria fossem suficientes para irradiá-lo. Ah! Como sentia saudade de vê-lo sorrir.
- Tudo bem, mamãe? - Despertei do meu passado com o meu lindo presente tocando em meu braço.
- Tudo, meu amor. - Sorri.
- Estava suspirando outra vez, não estava Leila? - Belinda buscou quem confirmasse a sua observação.
- Sim, estava - Leila, respondeu sem graça.
- Ela sempre fica assim quando lembra do papai ou do vovô. Eu não os conheci pessoalmente, mas minha mãe sempre os apresenta em suas histórias e quando encaro os seus olhos sinto que posso vê-los - meu brilhante "projeto de adulto" falou e fez com que um silêncio respeitoso se entendesse por longos minutos.
- Chegamos - Vicente falou aparentemente
aliviado por poder pronunciar algo.
Surpreendi-me com a casa que despontou em minha frente. Ela era uma espécie de chácara, cheia de frutas e bichos espalhados. Uma varanda a rodeava e lindos bancos, rústicos, estavam recostado em diversos lugares.
Assim que descemos, Matteo e Leila seguiram a frente como se estivessem familiarizado
com aquele lugar, como se estivéssemos em...
- Sua casa - escutei Belinda gritar radiante
para Leila.
Uma senhora abriu a porta e sorriu ao assim que nos avistou. Matteo a beijou carinhosamente e as apresentações foram desnecessárias. Estávamos na casa dele. Aquela era a sua esposa.
Carmem, abraçou-me como se há anos fôssemos amigas. Logo estávamos todos no espaçoso quintal, embaixo de uma árvore frutífera, sentados em volta de uma grande mesa de madeira.
Desfrutamos de boa companhia, comida saborosa e muita tranquilidade. Conversamos sobre a simplicidade da vida. Falamos sobre
passado, presente e futuro ocultando detalhes e construindo pontes apenas quando deduzíamos ser seguro para nós que o outro ultrapassasse.
- Eu queria ser astronauta.
Todos rimos quando Matteo fez um gesto grandioso com a mão.
- Sério, queria ir a lua. - Ele passou a mão nos cabelos de Belinda.
- Por quê? - Belinda indagou, curiosa.
- Para olhar a terra inteira de vez. - Ele desenhou um círculo no ar.
- Mas o senhor estaria tão distante daqueles que ama, isso não faz sentido nenhum para mim. - Ela franziu a testa.
- Verdade, mas saberia exatamente onde cada um estava - Matteo retrucou.
- Isso não basta. As pessoas precisam saber que são importantes para nós e só através
das nossas ações podemos provar isso para elas. Pelo menos é isso que minha mãe sempre diz. - Ela olhou com entusiasmo para
sobremesa que foi posta na mesa.
- Sua mãe é muito esperta, sabia?
- Carmem entregou a Belinda um generoso pedaço de pudim.
- Eu sei. Não a deixaria nunca para ir a lua.
Preciso estar perto dela, abraçá-la à noite e dizer que a amo. Não quero que ela pense que não é importante para mim - ela disse enquanto saboreava o doce.
- Creio que ela jamais pensaria isso. - Carmem sorriu.
- Mamãe, a senhora já sentiu vontade de
ir a lua? - Ela virou em minha direção como se houvesse lembrado repentinamente da minha presença.
- Apenas para escrever o quanto a amo, só assim todos aqui na terra entenderiam o tamanho do meu amor - falei com o coração.
- Não precisa que o mundo saiba, basta nós
duas - Belinda falou tão naturalmente, como se aquilo fosse pronunciado com constância pelas pessoas.
Ela continuou a comerbsem sequer olhar para mim. Por outro lado eu a observava com orgulho e extrema admiração. Minha filha foi o melhor presente que John me concedeu. Lamentável ele não poder estar presente para sentir o mesmo orgulho.
- Certamente o seu pai se sentiria maravilhado ao ver a menina incrível que você se tornou - Vicente falou e rapidamente olhou para mim como tivesse se arrependido de ter expressado os seus pensamentos em voz alta.
- Mamãe fala o mesmo - Belinda, sorriu.
Como a alegria e a tristeza podem habitar simultaneamente o mesmo espaço? Como sob um mesmo olhar há colisão de sentimentos tão opostos? Belinda não sentia o peso dessa infelicidade porque para ela John era apenas
um personagem fantástico de uma história. Cada ano, conto um novo capítulo, segundo o que julgo ser válido ou fundamental. Preocupo-me que as informações concedidas estejam de
acordo com a sua idade. Chegará um momento em que impreterivelmente ela entenderá quão doída é a morte, em especial de alguém que
amamos. Por enquanto, Belinda apenas entendia que o pai foi um ser humano maravilhoso.
- Vamos alimentar os cisnes? - Leila convidou Belinda.
- Posso mamãe?
- Claro, amor. - Sorri.
Leila segurou a mão de Belinda e juntas caminharam rumo a um pequeno lago.
- Sua filha é uma menina muito inteligente- Carmem falou.
- E doce - Matteo complementou. - Leila está
amando passar o dia com ela. Em três anos, ela disse que foi o melhor serviço que a incumbiram de efetuar.
- A gratidão será eternamente minha. Sei que
ela é uma pessoa boa e fico tranquila em deixar minha filha aos seus cuidados.
Expressei-me honestamente, mas com um pesar que não tinha relação com Leila. Belinda estava sendo cuidada por ela, simplesmente porque eu não tinha poder suficiente para seguir a minha própria direção.
- Eu vou levar essas coisas para cozinha. Matteo será que você pode me ajudar? - Carmem segurou uma pesada panela de barro.
- Pode deixar, eu a ajudo. - Levantei-me rapidamente.
- Oh! Não precisa querida, sente e descanse um pouco. Logo você terá que voltar para o trabalho. - Ela balançou a cabeça.
- Assim como Matteo - raciocinei sorrindo.
- Passo o dia inteiro sentado no banco de um carro, essa é a única hora que posso esticar as pernas de verdade e não permitirei que você a estrague. - Matteo sorriu e retirou os pratos das minhas mãos.
Minutos depois, as coisas da mesa haviam sido
retiradas. Apenas eu e Vicente permanecemos sentados, em lados opostos. Foquei na direção do lago, mas pude sentir que ele fixava os olhos em mim e, por mais que desejasse permanecer serena e inexpressiva, não consegui esconder o meu desconforto. Por mais que quisesse confiar nele, minha justiça interna severamente me impedia. Ele mentiu para mim e isso patenteava uma falha grave em seu caráter. Não existem boas mentiras para quem
escuta, essas existem apenas na mente de quem as pronuncia.
- Quando você vai acreditar que sou o mocinho? - Vicente olhou diretamente nos meus olhos.
Não me assustei com a pergunta, na realidade a maneira como ele me olhava indicava que os meus pensamentos estavam passando por alguma espécie de tomografia.
- O que você sabe sobre mim? - Inclinei a
cabeça na direção das folhas acima de nós.
- Não entendi - ele respondeu inseguro.
- Por favor, não me insulte. - O rancor pesou em minha voz.
- Cloe Fiore, trinta anos. Formou-se muito jovem em Artes cênicas, casou-se e alguns anos ficou viúva - ele respondeu com pragmatismo.
- Excelente! Você tem boas informações. Entretanto, elas não são suficientes para definir quem eu sou.
- Você não é uma pessoa ruim, Cloe - ele falou tranquilamente.
- Não sou?
- Não! Pessoas ruins não criam filhos bons
e, por mais que você queria me fazer duvidar do seu caráter, Belinda não permite isso. - Ele cruzou os braços.
- Acho que você não me entendeu. O objetivo desse nosso diálogo não é fazê-lo duvidar do meu caráter. Até porque, pouco me importa sua opinião a meu respeito. - O encarei nos olhos. - Apenas desejo solidificar os meus pensamentos. Você se chama Vicente Becovitchi e o seu sobrenome já bastaria para mantê-lo longe de mim. Todavia, se esse não fosse o caso, isso ainda seria
um conhecimento estéril para determinar que tipo de pessoa você realmente é. Sinto decepcioná-lo, mas se quisesse o papel do mocinho, jamais deveria ter mentido para mim - despejei minha raiva.
- Sugiro que estude melhor os seus argumentos antes de proferi-los. Você primeiro afirma que meu sobrenome bastaria para afastá-la e em seguida diz que um nome não é suficiente para julgar a essência de um ser humano. Pelo que estou sendo julgado, então? Por ter escondido algo que faria você quebrar o seu código de honra? Poupei-lhe
de fazer exatamente aquilo que você condena: tecer um julgamento sem me conhecer.
Vicente manteve o mesmo tom de voz, como se aquilo não fosse uma altercação, e toda aquela paciência me irritava. Entretanto, a indignação maior descendia do raciocínio que ele usou para refutar a minha acusação.
Como ele pôde ter invertido os papéis? Por que em segundos virei a cretina?
- Não quis deixá-la irritada. - Vicente modulou a voz para um tom ameno. - Cloe, ouça, não quero prejudicá-la. Não precisa me admirar, mas não conclua que sou o seu inimigo, porque não
sou.
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