Capítulo 3 Entre mortes e segredos

Parada ao lado de um estranho, eu esperava que qualquer outra coisa fosse dita, entretanto, nada poderia me atingir tão duramente quanto aquelas últimas palavras.

Havia me preparado para as frases confusas, explicações incoerentes e pedidos fingidos de desculpas, mas nunca por uma declaração tão cruel.

- Você não me conhece, você não conheceu o meu marido, portanto, não ouse tocar outra vez no nome dele.

As águas caíram dos meus olhos no mesmo ritmo que minhas pernas se moveram no meio daquelas grandes árvores. Sentindo que não conseguiria manter a força para continuar caminhando, apoiei os braços num ríspido tronco e chorei. Chorei como se nunca houvesse chorado pelo John, como se eu estivesse sendo informada da sua morte naquele instante.

- Sinto muito - Vicente falou com pesar.

Lutei para me recuperar do choque e da dor. Tentei me reerguer e desejei ter com que golpeá-lo tão duramente quanto ele havia me golpeado.

- O que você quer de mim? - respirei fundo antes de perguntar.

- Sua confiança. - Ele abaixou a cabeça.

- Minha o que? - perguntei com ferocidade. - Você mentiu para mim e você quer que eu confie em você? - gritei como louca.

- Desculpe-me, mas foi necessário - Ele deu alguns passos na minha direção.

- Necessário? Assim como foi necessário citar o nome do meu marido, que provavelmente foi lido por você em um jornal qualquer, em um arquivo, ou algo parecido. - Engoli o choro.

- Eu o conheci, Cloe.

- Por favor, não pronuncie o meu nome como se soubesse quem eu sou. - Segurei ainda mais forte aquele pedaço de madeira viva.

- Ele morreu em um acidente de carro, foi isso que os funcionários do meu tio lhe disseram, mas eles mentiram. O acidente foi o acobertamento. Ele foi assassinado. - Senti a respiração de Vicente próxima a mim.

- Eles mentiram, você mentiu. Não percebeu? Todos vocês estão no mesmo barco. Por que deveria confiar em você, então?

- Porque o John confiava.

Toda aquela dor "nuclear" sobre a qual, em um dado momento da minha vida, acreditei obter o controle, deferiu em mim golpes latentes e pungentes.

A dor e a raiva quando se encontram incapacitam o homem de agir racionalmente. Num acesso de mágoa e fúria soquei diversas vezes o resistente tronco, que apenas tornou o meu sangramento interno ainda mais evidente.

Braços fortes me envolveram e aos poucos senti o meu corpo perdendo a força e despencando lentamente ao chão. Vicente, manteve-me em seus braços e afundou junto comigo nas folhas secas.

- Ele não chegou a ver o rosto de Belinda - falei aos prantos.

- Eu sei - Vicente concordou tristemente.

- Como o conheceu?

- Isso não importa agora. - Ele enxugou as lágrimas do meu rosto. - Apenas preciso que você confie em mim, Cloe.

- Não posso. - Balancei a cabeça. - Você mentiu para mim e, mesmo que tivesse me dito a verdade, não sei nada ao seu respeito.

- Tudo bem. Lhe darei um tempo para registrar essas novas informações. Por enquanto, está vendo isso. - Ele retirou um objeto do bolso do blazer. - É um pager. Ele não pode ser monitorado nem rastreado. Também tenho um e o meu número está gravado no seu. Preciso que envie uma mensagem quando estiver pronta para falar comigo. Agora você pode pensar que não vai precisar, mas vai. Nos encontraremos aqui. Não há câmeras e ninguém além de mim costuma caminhar por esses lados. Agora peço que vá para casa e descanse. Algumas coisas podem ser explicadas depois.

- Como sabe que o mataram? - perguntei como se tudo o que ele havia acabado de falar não tivesse sido absorvido por mim.

- Simplesmente sei.

Foi tudo o que ele disse e eu não tive forças para contestar. Em silêncio fiz o percurso de volta ao lado de Vicente. Quando chegamos ao jardim, longe das grandes árvores, ele se afastou e eu notei que Matteo vinha ao meu encontro, ele fez um discreto sinal com a cabeça para Vicente e eu fui levada para casa.

- Se ele confia em você, por que ele se escondeu quando você esteve em minha casa? - perguntei intrigada.

- O patrão sabia que se a senhora o ligasse a família Becovitchi de imediato, dificilmente o ouviria depois - Matteo respondeu contristado.

- Não creio que os seus esforços para me contar uma mentira tenham valido a pena - falei sentindo profundas dores internas.

- Espero que sim, pois ele é o único que realmente se preocupa com a senhora e a jovem Belinda.

Aquela frase continha as palavras necessárias para garantir que a minha noite fosse terrível. Não consegui dormir. Os pensamentos borbulharam intensamente e alguns deles me causaram dor aguda. O passado se personificou dolorosamente em presente e o futuro em uma incerteza amedrontadora.

Relembrei vividamente o dia no qual recebi a notícia que o meu amado marido não retornaria para nosso lar, para os meus braços.

Era verão e eu estava no nono mês da gestação, John era um amável professor de história (foi assim que nos conhecemos. Ele estava estagiando e eu iniciando o Curso de artes plásticas; Eduard nos apresentara). Ele havia viajado para capital a convite da família Becovitchi, para analisar e palestrar sobre algumas obras expostas no Museu pertencente a família. Tudo fora pago por eles, hotel, passagem aérea e refeições. A sua estadia estava prevista para durar quinze dias. A princípio, John se recusara. Ele estava temeroso de perder o nascimento da nossa tão esperada filha, mas eu insisti que ele fosse. "Dará tempo, amor" foi o que eu lhe dissera, afinal, ele sempre sonhara em palestrar em dos maiores Museu do nosso estado. Infelizmente uma semana depois, alguns homens apareceram em minha porta informando que o meu marido havia sofrido um grave acidente de carro.

Implorei para que me levassem até o local ou que me deixassem vê-lo por uma última vez, mas tudo que me entregaram foram as cinzas do John em um pequeno vaso de prata.

Por diversas vezes, tentei contatar Fausto ou alguém da sua família para que me ajudassem a entender o que houve; nunca me receberam.

Não sei o que algumas pessoas pensam a respeitam de uma vida perdida. A família e empresa de Fausto escolheram fingir que o John não havia criado laço, mas ele criou. Começamos a construir uma história, mas ela foi interrompida sem um final digno. A casa que morávamos, ao lado de uma pequena colina, em frente ao mar, pertencia a mim e ao John, todavia, não pude permanecer ali onde havia tantas paredes erguidas em cima de um alicerce conjunto. Abandonei o meu lar.

Ao longo dos anos nutri uma raiva explicável pela família Becovitchi. Não queria ouvir sobre os seus grandes feitos amplamente expostos na mídia nem trabalhar em qualquer lugar que eles tivessem tocado. Obviamente isso dificultou que eu encontrasse um bom emprego já que, praticamente, eles haviam tocado em tudo. A capital tornou-se minha melhor e pior alternativa. Consegui comprar uma casinha com um dinheiro que havia na conta do John e reservei um pouco para um fundo de emergência. Desde então, procurei manter uma vida simples ao lado de Belinda. Ela sempre esteve ciente que o pai foi um grande homem e que ele a amou antes mesmo dela vir ao mundo. Contei sobre os infinitos beijos na minha barriga e as diversas histórias sussurradas ao meu umbigo. Ela não teve a chance de conhecê-lo, mas o ama como se ele nunca tivesse partido, porque o mantive vivo nas histórias felizes e nos dedicados desenhos, vídeos e fotos. Quando John partiu o laço se desfez, mas havia uma ponta amarrada ao John e outra a mim que parecia esticar para lados opostos formando um sufocante nó, era isso que os Becovitchi deviam ter entendido: não se "enterra" uma pessoa sem que o peso da "terra" sufoque aqueles que ficam.

Sempre senti que as coisas vagas que me contaram sobre a morte do meu marido não faziam sentido, mas não podia carregar essas ambiguidades para sempre. Existiam pesos demais para transportar. Então, deixei que as dúvidas partissem e fiquei apenas com a saudade.

- Mamãe - Belinda me chamou, sonolenta.

- Oi, minha vida. - Enxuguei as lágrimas.

- Não consegui lhe esperar ontem. Dormi sem lhe dá boa noite - ela falou chateada.

- Tudo bem, meu amor. Eu estava precisando mesmo do seu bom dia.

Belinda me abraçou demoradamente e eu a segurei como se aquela fosse a única eletricidade capaz de recarregar minha esgotada bateria. Foi ela quem me sustentou todos esses anos.

Precisei sorrir quando ela nasceu para que, ao aterrissar nesse mundo catastrófico, minha filha se sentisse amada. Cuidei para que os sentimentos de dor não fossem transferidos involuntariamente para ela. Eu a amei em dobro.

- Te amo tanto - falei com dor e amor.

- Te amo muito mais. - Ela me apertou.

Minha dor se dissipou por alguns instantes, e ali naquela cama imensa eu tinha tudo o que precisava para continuar vivendo. O meu mundo e a minha vida.

- Bom dia senhorita Cloe, como passou a noite? - Luigi, o arrogante, perguntou.

- Bem. - Tentei evitar o contato visual.

- Pois me parece que a senhora nem dormiu. - Ele apontou para minhas olheiras.

- Saudade de casa - omiti.

- Essa é a senhora Glória, ela ensinará a sua filha em casa e Leila a auxiliará nos cuidados a criança. A senhora será levada imediatamente para ver as obras de artes. Como hoje é sexta, o seu trabalho começará oficialmente segunda às oito. - Luigi fez anotações descontroladas no tablet. - Vamos.

Despedi-me de Belinda com um beijo na testa e olhei para Leila clamando com os olhos para que ela cuidasse de minha filha, ela acenou e aquele simples gesto me acalmou.

Seguimos para á casa principal. Matteo exerceu o seu profissionalismo, abriu a porta do carro para que eu e Luigi entrássemos e dirigiu formalmente sem dizer uma única palavra. Notei que algumas vezes ele olhou, pelo retrovisor interno, buscando explicações silenciosas para o inchaço descomunal dos meus olhos. Sorri meigamente, torcendo para que ele entendesse que eu estava bem e que a dor feral havia cessado.

Depois de rápidos minutos, descemos na área externa e adentramos em uma grande porta de vidro lateral que parecia resguardar um lindo jardim de inverno. Embora desejasse, não tive tempo de apreciar a beleza daquele lugar cruelmente escondido.

Caminhamos rapidamente rumo a uma escada que dava acesso ao andar de baixo. Havia ali uma porta grande de ferro com biometria e senha. Fiquei me perguntando o que havia lá embaixo de tão especial que merecesse tanta proteção? Não demorei a descobrir, pois logo que entrei obtive a minha resposta. Estava ali, bem na minha frente, a coleção inteira de Anthony Gonzales, praticamente intacta, com todas os quadros devidamente nos lugares. As pinturas foram concebidas no final do século XVIII e, como tantas outras, sobreviveu até os nossos dias.

- Magnífico - pronunciei extasiada.

- Certamente!

Escutei alguém dizer e me virei instantaneamente para ver quem, além de mim e Luigi, estava naquele recinto.

- Senhorita Cloe, é um prazer vê-la novamente. - Tomás esboçou um amplo sorriso.

- Obrigada. - Tentei sorri.

- Estamos ansiosos para expô-las no Museu. Como pensa que as pessoas agirão? - Ele tocou com carinho em uma das telas.

- Você já sabe como reagirão, não precisa de mim massageando o seu ego - respondi com mordacidade.

- Não é o meu ego que você alimentará e sim a minha alegria de saber que não somos os únicos a valorizar tamanha genialidade - ele se expressou de forma genuína.

- Eles são incríveis - falei mais interessada em admirá-los do que em julgá-los.

- Ainda assim precisam de bons restauros. Vou deixá-la avaliando-os para logo mais ser informado quanto tempo vamos dispor da sua companhia. - Ele se retirou.

Fiquei horas observando atentamente cada uma das seis pinturas. Claramente duas delas estavam perfeitamente restauradas. Naquele momento me peguei pensando em Eduard: o que aconteceu, realmente, com ele? O que ele descobriu que custou sua vida? Pior ainda, comecei a pensar em minha vida e na vida de Belinda. Se essas pessoas estavam envolvidas em assassinatos, estávamos seguras ali?

Forcei-me a avaliar os quadros, determinei que cinco a sete semanas bastariam para que eu terminasse todo o trabalho. Queria ter fornecido um tempo menor, no entanto, seria impossível concluir tudo com perfeição em um curto espaço de tempo. Restaurar é mais difícil do que começar do zero. Envolve manter ilesa uma obra já existente, cultivando suas cores e relevos o mais próximo possível de todo restante, sem intromissão na arte já existente. Não cabe ao restaurador modificar e sim conservar. Trata-se de microcirurgias que exigem atenção e delicadeza.

Depois de informar ao Luigi, quase com precisão, quanto tempo seria uma forasteira naquelas terras, retornei para a casa de hóspede. O dia ainda estava claro e ensolarado. Belinda encontrava-se sentada no chão da varanda e Leila fazia longas tranças nos seus cabelos avermelhados. Sorri intensamente ao avistá-la conversando com Leila convicta das suas ideias.

- Embora a maior parte da população seja constituída por pessoas com cabelos escuros, acredito que não me importaria de fazer parte da maioria - Belinda falou.

- Mas a cor de seu cabelo é linda - Leila contestou.

- Minha mãe conta que o meu pai tinha os cabelos castanhos, mas os pelos da barba eram vermelhos como o meu cabelo - Belinda explicou contente.

- O meu próprio pedaço do pôr do sol - sussurrei ao lembrar da frase dita, tantas vezes, quando comecei a namorar o John.

- Mamãe - ela gritou, animada. - Leila está me ensinando a fazer tranças embutidas.

- Está ficando linda. - Sorri com entusiasmo. - Leila se importa em ficar um pouco mais. Não consegui dormir direito à noite, queria ver se consigo descansar um pouco.

- Viu Leila, quando não lhe dou um beijo antes de dormir, ela fica com insônia - Belinda falou sentida.

- Por isso preciso de um demorado beijo seu agora. - Abaixei-me e encostei a testa na dela.

Minutos depois, estava recostando a cabeça no travesseiro, desejando imensamente que as minhas dúvidas não consumissem o pouco da sanidade que ainda me restava.

Almejei que as estranhezas daqueles últimos dias desaparecessem automaticamente, contudo, pensei e repensei em todos os "i" sem pontos. Tantas coisas necessitavam de explicações concretas. Perdida, senti que nem mesmo o chão que pisava era seguro o suficiente para o meu caminhar.

Infelizmente a minha natureza aliada as minhas dores, criaram em mim um sistema rigoroso de organização mental. Preciso ter todos os indicativos a minha disposição e quando esses fogem do meu controle, levam consigo a minha calma. Senti-me atormentada por dentro. Buscando esse sossego momentâneo, fechei os olhos e com grande esforço desliguei o meu cérebro.

O sono foi profundo e imperturbado, sem assombros ou apoquentações. Estava tão cansada fisicamente quanto mentalmente. Foi fácil fugir do presente me escondendo na escuridão de um cérebro adormecido. Todavia, quando acordei tudo estava lá, exatamente no mesmo lugar. As coisas caras, a cama grande e confortável, as paredes brancas e tristes. Tudo continuava exatamente como eu havia deixado horas antes.

O silêncio perambulava entre os cômodos e acompanhou os meus passos, que sentiam a frieza do porcelanato.

Escutei os risos fáceis de Belinda que ainda permanecia na varanda externa, ensinando um jogo de cartas para Leila (era um jogo engraçado que jogávamos com frequência. Contava-se os números enquanto eram descartados no centro, caso coincidisse o número citado com o número descartado o jogador precisava bater contra a carta, o primeiro ganhava a rodada e o outro levava todas as cartas que já haviam sido descartadas). Dentre tantas coisas que fazíamos juntas, aquele jogo nos arrancava muitas risadas.

Sentei-me no sofá da sala e observei a minha menina tão viva e tão feliz. Belinda sempre foi uma criança fácil de conviver, sem birras ou choros desnecessários. Ela compreende tudo com facilidade. Não questiona as minhas decisões e demonstra amor em todas as coisas que faz ou diz.

Ela foi o presente esperado. A cura produzida antes mesmo dos sintomas perceptíveis da enfermidade. Antes dela sair para secar as minhas lágrimas, antes dessas, se quer, terem sido produzidas, Belinda dispunha de dois corações batendo no mesmo ritmo, o meu e o do seu pai, pois queríamos que no meu ventre ela sentisse que estava trazendo um insólito significado as nossas vidas.

John cantava, bem pertinho da minha barriga, uma canção que ele compôs. Sua voz era suave e o toque do violão reconfortante. Às vezes, fecho os olhos e o escuto cantar. A canção escrita para Belinda, tonara-se apenas minha. Depois da sua morte nunca ousei cantá-la outra vez. Sei que ela pertence a Belinda, mas infelizmente não consegui dedilhar as notas no piano sem pensar que estava me apoderando de algo que pertencia ao John. Era ele quem devia cantar, não eu.

- Senhora, tudo bem? - Leila tocou em meu braço.

- Leila, eu não sou sua senhora, sou Cloe - respondi um tanto irritada, tentando relocar minha mente para aquela sala.

- Desculpe, mas não consigo - ela abaixou a cabeça.

- Quantos anos você tem? - Ajeitei a almofadada no colo.

- Vinte e seis - ela respondeu rapidamente.

- Viu? Eu sou apenas quatro anos mais velha que você. Isso não é muito, é?

- Não - ela negou imediatamente.

- Então, sempre que for me chamar de senhora, lembre-se que eu tenho praticamente a mesma idade que você - falei com carinho.

- Sim, senhora.

Sorrimos, pois a força do hábito, muitas vezes, determina as nossas palavras e ações sem nem nos apercebermos se aquilo que praticamos rotineiramente beneficia a todos ou apenas uma minoria que altivamente impõe os seus interesses aos subordinados. Uma vez na posição de servir e no ambiente que se exerce o serviço, encontramos dificuldades para subirmos nossa posição ou elevarmos o queixo para tratar o outro como igual e não como nosso dono. Eu não era dona de absolutamente nada ali. Eu não queria ser dona de nada nem ser a senhora de ninguém. Quanto mais cedo Leila compreendesse isso, mais fácil seria tratá-la como uma amiga, pois é disso que nós que convivemos em sociedade realmente precisamos, pessoas com quem possamos contar, ombros para recostarmos a cabeça e ouvidos para escutar nossas alegrias e lamentos. Necessitamos ter amigos na mesma proporção que precisamos ser amigos.

- Você queria me dizer algo - sorri para Leila.

- O almoço foi entregue uma hora atrás, eu e Belinda já almoçamos, pois, quando entrei no quarto a senhora - Leila parou de falar subitamente - digo, você estava dormindo profundamente.

- Eu precisava mesmo dormir.

Havia passado das três quando fui até a cozinha a procura de algo para comer. A comida estava organizada sobre o balcão, as frutas em cima da mesa e a geladeira repleta de coisas verdadeiramente saborosas, no entanto, não ingeri absolutamente nada do que estava ali. A ansiedade trancou o meu estômago com um cadeado de chumbo e não encontrei a chave para destravá-lo.

Confusa, entediada e extremamente abatida, sentei-me na varanda ao lado das meninas. Olhei a grama verde e as plantas baixas que circulavam o vasto jardim. A distância entre o meu "encarceramento" e a casa principal era significativa. A ostentosa construção só era vista por causa da sua imponência. Resolvi que, sentada ali, não conseguiria organizar meus pensamentos. Certifiquei-me que Belinda ficaria bem ao lado de Leila e segui em direção aos grandes pinheiros, ao fundo da casa de hóspedes. Durante o dia a paisagem era de tirar o fôlego. Se as circunstâncias fossem outras, se os proprietários não fossem os Becovitchi, possivelmente me deleitaria com tamanha beleza. Contudo, depois do que eu havia escutado sobre o que poderia ter acontecido ao John, ficou impossível sentir o mínimo prazer com alguma coisa naquele lugar.

Confusa, sentei-me em um tronco acima do chão e me escondi entre algumas folhas, torturando-me por minha covardia e por me sentir incapaz de decidir enfaticamente. Eu não queria estar ali, entre mortes e segredos, sem saber ao certo qual seria o resultado final.

Os ventos fortes, que balançavam as folhas das árvores e tocavam os meus cabelos os arremessando ao ar, contribuíram para que os meus olhos se fechassem em busca da paz mental. Congelei por longos minutos, escutando apenas o som produzido pela própria natureza. Rememorei coisas que estavam carregadas comigo há tempo suficiente para serem esquecidas, mas não foram.

Quando eu era criança o meu pai construiu uma casa na árvore para mim. No meio de um campo cercado por uma grama alta. Eu subia na casinha de madeira para apreciar a propriedade que um dia pensei que seria minha. Eu sentava com alguns cadernos no colo, traçava planos e desenhava mapas. Aquele era o meu mundo e aquela casinha o meu Forte. Mantendo os olhos fechados, escutei vividamente cada prego que o meu pai batia na madeira com precisão.

Lembro-me de cada livro que lemos juntos, eu e ele, desbravando o mundo sem precisar sair do nosso próprio mundo. Aos poucos fui crescendo e percebendo que em segundos nossas paredes podem ruir e o nosso Forte desmoronar. Às terras foram arrancadas de nós pelo banco que financiara os investimentos do meu pai. Ele era um exímio artesão, mas um péssimo administrador. O verde se dizimou e as paredes cinzas do reboco assombraram os meus olhos durantes cinco longos anos. Tinha doze anos quando deixei para trás o primeiro lugar que, de fato, amei na vida.

Fomos morar no centro de uma cidadezinha até eu ser aceita no Curso de Artes cênica. Estava perto de completar dezessete anos quando vi o alegre rosto do meu pai pela última vez. Ele me abraçou desejando que eu fosse feliz em minhas escolhas e que seguisse por caminhos belos. Recordo-me dos seus verdes olhos marejados. Lembro-me da sua voz entristecida. Arrependo-me por não ter ficado e por ter dito até mais, quando o que rompia em silêncio era um infeliz adeus. Uma semana depois encontraram o meu pai adormecido no sofá da sala, sem batimentos cardíacos, sem centelha de vida. Ele se fora rapidamente, assim como minha repentina volta para enterrá-lo. Eu estava sozinha no mundo. Essa verdade nunca havia me atingido, nem mesmo depois que minha mãe me abandonou quando eu tinha três anos de idade. Não tenho lembranças dela e nem construí nenhuma. O meu pai se livrara de tudo que pertencera a ela, incluindo as fotos. Não tinha ideia de como eram os seus traços físicos. Ele nunca me disse: você tem os olhos dela, essa cor amarelada, luminosa, ou os seus cabelos são mais cheios e mais escuros, puxaram aos meus. A única coisa que sabia a respeito da mulher que me dera a luz é que ela nos abandonou e seguiu para o exterior em busca de luxo e riqueza. O meu pai nunca deixou que questões como: por que ela me abandonou? Será que a culpa foi minha? Um dia ela vai voltar? Permeassem a minha mente. Ele sempre deixou claro que eu era um presente e a melhor coisa que ele já havia recebido da vida.

Fui amada quase na mesma proporção que amo Belinda. Eu a amo muito mais. Eu a gerei, senti os seus chutes contra a minha barriga, amamentei e durante nove meses ela pertencia literalmente a mim. Meu pai nunca pôde experimentar os sentimentos que só uma mãe tem o privilégio de desfrutar. Contudo, não havia ninguém melhor para substituir o afeto natural provido pelo envolto da bolsa uterina, por isso, nós formávamos uma boa dupla.

Lamento ter deixá-lo em busca de uma formação. Embora ele tivesse me incentivado o tempo inteiro a fazer isso, era uma decisão que cabia apenas a mim e eu deveria ter ficado. Acreditei que o teria para sempre e jamais imaginei que o seu coração, tão forte, fosse parar sem emitir nenhum alerta, aos cinquenta e dois anos.

- Uma hora você sentirá frio.

Uma voz, enrouquecida, fez com que eu me assustasse e me desequilibrasse. Senti os braços fortes de alguém sustentando as minhas costas, antes que ela tocasse o chão.

- Tudo bem? - Vicente me segurou.

- Claro! Pode me colocar no chão - falei indignada.

- Sinto muito, minha intenção não era lhe assustar. - Ele afastou as suas mãos dos meus braços.

- O que está fazendo aqui? - Ignorei completamente o pedido de desculpas.

- Estava seguindo em direção ao lago, costumo visitá-lo com certa frequência quando estou aqui.

- Por quê?

- Para conservar a minha sanidade. - Ele tentou sorrir.

- Por que você me pediu para descobrir quem assassinou Eduard? - Desconsiderei a resposta anterior dada por ele, já que existiam perguntas mais importantes a serem respondidas.

- Porque disseram que ele infartou no parque Central, mas algo me diz que ele foi envenenado - ele respondeu com pesar.

- Desculpa, mas você disse que ele morreu em qual lugar? - indaguei, intrigada com a referência ao parque próximo ao restaurante que eu trabalhava

- No parque Central. - Vicente me olhou desconfiado.

- Que dia ele morreu? - A preocupação acompanhou o tom da minha voz.

- Um dia antes de eu ir na sua casa.

- No dia que Luigi me encontrou. - Pensei alto. - Ele foi encontrado perto do lago?

- Sim. O acharam caído, tentando respirar. - Vicente franziu a testa.

- Eu estava no parque - expressei-me baixo. - Notei uma aglomeração, mas me afastei. Era ele - conclui, tristemente.

- Não havia nada que pudesse ser feito. - Ele tentou me consolar.

- O que lhe leva a pensar que ele foi envenenado? Você me procurou menos de vinte quatro horas depois da morte de Eduard. Sua teoria tem algum fundamento? - Apertei os olhos.

- Ainda não, por isso preciso da sua ajuda. Não sei o que ele descobriu, mas temo que esteja ligado, de alguma forma, ao John.

Uma pontada atravessou o meu peito ao ouvir o nome do homem que amei sendo pronunciado com tanta intimidade por um desconhecido.

- Acredita que tem algo a ver com as obras de artes?

- Não. Pelo que sei John não esteve aqui e nem teve acesso aos quadros que estão sendo restaurados. Essa coleção nunca foi mencionada há sete anos - Vicente balançou a cabeça numa negativa, como se as coisas não estivessem fazendo sentido.

- Acha que o professor foi ao meu encontro? - questionei preocupada.

- Possivelmente. A pergunta é: por quê? - Vicente indagou e mais confusões se fixaram em minha mente.

- Se a morte do Eduard e a do John estiverem ligadas, por que estou aqui? O que essas pessoas querem comigo?

- Juro que queria ter uma resposta para essa sua pergunta. - Vicente passou a mão pela cabeça.

- Eduard tinha várias formações acadêmicas, mas assim como John era um verdadeiro historiador - raciocinei, apreensiva.

- Além disso, eles conheciam você - Vicente concluiu aflito.

- Você não acha que - interrompi minha fala por alguns segundos. - Você acha que a morte deles estão de alguma forma relacionada a mim? - perguntei horrorizada.

- Infelizmente, enquanto não temos ao nosso dispor informações concretas, não podemos descartar essa possibilidade. - Ele abaixou a cabeça.

Por um momento, paralisei com aquela nova informação percorrendo os diversos caminhos até o meu cérebro. Já é extremamente doloroso perder alguém, mas chegar a conclusão que você pode estar diretamente ligado a morte de tal pessoa, é aterrador.

- Cloe, estamos estabelecendo conjecturas aqui, nada foi comprovado. Tudo isso pode ser apenas um mal-entendido. - Vicente se aproximou e repousou a mão sobre o meu ombro.

- E, se não for? - Minha voz falhou.

- Ainda assim, não terá sido culpa sua. - Ele simplesmente me abraçou.

Dois dias se passaram sem que eu esquecesse um único segundo daquela conversa. O John reapareceu em muitos pensamentos aleatórios. Quando nos conhecemos, no final de uma aula extra que o professor Eduard havia proporcionado aos alunos de diferentes turmas e estagiários, John compartilhando toda a sua sensatez, aproximou-se e disse: "Eduard acaba de dizer que se eu não lhe convidar para sair, me arrependerei eternamente". Eu tinha dezoito anos e ele vinte e cinco.

Apaixonamo-nos intensamente. Um ano depois estávamos casados e descobrindo os desafios e as alegrias de dividirmos o mesmo teto. Ficamos em Putuma por mais um ano até eu concluir o meu curso. Logo depois, Belinda surgiu e fomos morar em Monte Belo. Não planejamos, mas aconteceu e nos agarramos com muito amor aquela situação. Tornei-me mãe no dia da confirmação que uma vida estava sendo gerada dentro de mim e John me acompanhou no mesmo instante.

Havia muitos detalhes da nossa história em que me agarrar, entretanto, concentrei-me numa conversa aleatória desenvolvida, enquanto ainda éramos só nos dois, sentados na areia branca, observando as ondas rebentarem contra o quebra-mar. John segurou a ponta dos meus dedos, sorriu e disse: "a vida pode até tentar estabelecer limites no nosso relacionamento, mas ela nunca conseguirá impedir que o meu amor ultrapasse qualquer barreira. Nada no mundo será capaz de me afastar de você ".

Eis o mais duro dos questionamentos: se, no momento que o aceitei, tornei-me um piedoso quebra-mar onde todos os sonhos e amores de John rebentaram?

A pior angústia que podemos enfrentar é aquela em que se desconhece o objeto causador da aflição. Sentindo-me culpada, comecei a sofrer pela morte do John sendo que nem sabia ao certo em que momento emiti o decreto que ordenava o seu assassinato. Decidi, então, que não descansaria enquanto não descobrisse o porquê meu marido foi assassinado e por quem. Esperava também que pudesse solucionar o que, de fato, aconteceu a Eduard.

            
            

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