A prostitua
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Capítulo 2 Volta ao enredo

Volta ao enredo.

Do meio da multidão de curiosos surge uma mulher idosa, que se aproxima e se ajoelha junto ao corpo do desconhecido, lamentando como quem perdera o seu próprio filho. Diz: Meu Deus, um homem tão jovem, o que terá acontecido para abrir mão da própria vida? A vida é tão boa, meus filhos, é uma imensa dádiva de Deus. Que loucura é esta que tomou conta deste mundo! Oh! Meu Deus. Oh! Meu Deus, o que será da mãe desse pobre homem? De onde viria essa senhora, que se nos apresenta ao narrador, que personagem mais imprevisto nos surge em tão contraditório contexto. Essa é mulher idosa, por isso nos tem tanto a dizer sobre a vida e sobre o mundo, mas, no entanto, surge apenas num instante de descuido do narrador, que ao escrever essa cena veio a calhar que, como todos os homens deve ter suas mães, essa mulher bem poderia representar, de forma inconsciente e delirante, a própria mãe do nosso suicida famoso. Quem sabe essa voz não nos visitará logo mais, em outro cenário um tanto mais complexo e importante para o desfecho da história e origem do nosso protagonista.

Outro observador, um pouco mais bem vestido que os demais, todavia mais contristado que os outros, chega mais perto e, antes que removam o corpo, pede aos bombeiros, que já embalavam o defunto para viagem, que lhe permitam fazer uma pequena oração pelo defunto desconhecido. Diz. É preciso recomendar a alma desse homem infeliz, para que ele encontre um bom caminho de volta ao paraíso. Este cuidado de recomendar ou de encomendar os mortos pode ser útil apenas para que eles não se percam no * Inferno de Dante, senhor dos mundos subterrâneos. Continua o homem com a sua oração. Oh! Senhor, tende piedade de nós. Este irmão, que agora enviamos a ti, foi vítima de nossa maldade inconsciente. Fomos nós mesmos que o matamos, com a nossa maneira egoísta de viver. Talvez tenha decidido se matar por falta de amor e de compreensão dos seus pares. Oh! Senhor, quantas vezes batemos a nossa porta em sua cara, quantas vezes passamos por ele sem o cumprimentar! Agora, meus irmãos, oremos por essa alma em desespero, para que ela encontre o descanso eterno junto a Deus, o Pai - que aceita todos os seus filhos de volta, sejam eles pobres ou ricos - loucos ou normais... Amém!

Este homem, que parecia um pastor, pois padre não era, porém ficou fácil deslindar sua ideologia cristã, pois é inconcebível que padres andem por aí sem batina ou que façam extrema-unção ou outro ato religioso qualquer sem que lhes paguem uma boa quantia de dinheiro e de bajulação. Antes de abrir a boca também parecia uma pessoa normal, carregava consigo uma bíblia muito grande e velha, ele já era conhecido na região, fazia pregação em meio às confusões urbanas, mas ninguém tinha tempo para lhe dar muita atenção, a não ser em caso extremo como este. O homem não abriu o livro sagrado, falou tudo de improviso, talvez já tivesse decorado seus discursos fúnebres, parecia que fora convocado para aquela ocasião especial antecipadamente. Esse homem, porém, não aparentava loucura explícita. Fez esta oração em voz alta, dizendo para Deus que tivesse piedade daquele cristão, não o conhecia pessoalmente, não sabia que relação tinha o morto com Deus ou com santos associados, todavia, pelas palavras convictas, demonstrava saber que Deus era capaz de conduzi-lo ao paraíso, como fizera o Cristo com o bom ladrão.

Dissemos que esse pastor, pois agora já podemos identificar sua patente no exército divino, pelo traje e postura diante da morte. Todavia, afirmamos que esse homem não parecia louco. Por que caímos nesse equivoco, uma vez que se trata de um Ensaio Sobre a Loucura? Se formos aqui seguir a lógica de outro ensaio, este sobre a cegueira, portanto devíamos conceber a factível ideia de que todo ser vivo, que por estas páginas respirar, terá de ser, impreterivelmente também louco.

Não importa quantos erros cometa um homem, ao morrer terá pago sua culpa, ou será que pode haver castigo maior que o da morte? Sobre o bom ladrão. Será que é possível classificar de bom um ladrão só por que amarelou na hora da morte, e pediu a outro agonizante que se lembrasse dele quando chegasse ao seu reino metafísico? Pode ser. Digamos que esse bom ladrão fosse uma espécie primitiva de Robin Hood.

Depois da prece em voz alta, o pastor começou um resmungar sem fim, outra oração, agora em voz quase sussurrada, infinitamente longa, pois o pastor não conseguia terminar seu monólogo, ou aquilo que ele acreditava ser um diálogo em particular com o Todo-Poderoso.

Os loucos diferem apenas em periculosidade, cada um expressa uma forma de loucura distinta. Crentes que dizem ver Deus, mas que ignoram os homens. Médicos que receitam o não uso do tabaco, mas que são usuários inveterados de fumo e de álcool. Juízes que defendem a justiça de punhos fechados, mas aceitam suborno de mãos bem abertas, delegados que torturam para colher provas de crimes sem solução, políticos que desviam a grana da merenda escolar, filhos que escondem o que são dos seus pais, mulheres que fingem prazer com seus maridos, mas com os seus amantes se desmancham em volúpias. São todos loucos. E quem discordar desse argumento é louco também, apenas por discordar.

Os paramédicos, do outro lado da rua, socorrem as vítimas do acidente automobilístico e as levam para uma emergência de um hospital público. Como havia crianças envolvidas no acidente, mesmo parecendo já mortos foram levados e, durante a viagem, submetidos a uma tentativa de ressuscitação, porém foi em vão, chegaram todos mortos ao hospital. Médicos e enfermeiros lamentavam a perda irreparável, a morte trágica de uma família inteira, quatro vítimas ao todo. Também lamentavam o fato de não poderem fazer nada para salvar aquela família. Médicos são apenas pessoas normais diante da fatalidade da vida e da morte. Entre os presentes havia um médico velho muito experiente, um professor, que tentava consolar seus colegas e alunos, dizia: é evidente que tudo isso é uma espécie de loucura, estamos todos loucos, em um só dia, tantas e quantas desgraças? Duas tragédias sem explicação! Coisa de um mundo absurdo. O Médico tinha conhecimento literário, falava da teoria do absurdo de Albert Camus. Não devemos nos surpreender se ainda hoje cair um avião sobre este hospital e nos matar a todos. Continua o médico seu discurso pessimista. Cruz credo, diz uma médica católica, que ficava apavorada com os pensamentos trágicos do velho doutor. Falo sério, outro dia ouvi de um amigo, que viaja muito de avião, que muitos pilotos voam embriagados. Não se lembram dos americanos malucos e irresponsáveis, daquele avião que voava com o aparelho sonar desligado que causou aquele grande acidente que matou mais de cem pessoas? Seus colegas ficavam mais apavorados quando ele começava a falar da loucura humana, se mostrando grande conhecedor do tema, mas sempre com histórias ou relatos com final terrivelmente trágico. Era outro louco que fingia compreender a loucura dos outros.

O jovem que subira com o carro na calçada, estava bêbado, voltava de uma festa, onde havia bebido e consumido drogas, fora pego pelos policiais que faziam ronda na região, o lugar era bem guardado pelo Estado, policiais o levaram sem constrangimento, afinal se tratava de gente rica, o rapaz era branco e conduzia um carro importado, também dissera para os policiais que tinha pai rico e importante. Coisa pouco relevante, as aparências, nesses casos é o que realmente conta. Logo o jovem estava diante do delegado de plantão, para explicar o que acontecera. Então, meu rapaz, como é que você foi cometer um crime desses, matar uma família inteira de inocentes?

Quem é o seu pai? Não deve ter família, para andar por aí em alta velocidade matando inocentes. Se tiver mesmo um pai eu quero falar com ele, para dar-lhe os parabéns, diz o delegado, revoltado com a injustiça da fatalidade com a qual devia tratar. Atordoado, porém sem nenhum ferimento visível, o jovem pede para ligar para o pai, pedido que logo é atendido pelo delegado, que parecia ser um bom cumpridor da lei. Embora o delegado insista em perguntar por que andava em alta velocidade em uma área que não permitia mais que sessenta quilômetros por hora, o jovem se recusa a responder, diz que não tem nada a declarar sobre o ocorrido, e que só falaria depois que o pai chegasse com seu advogado. Digno de nota é a maturidade emocional do jovem, que aqui dissemos ser delinquente, todavia essa aparente maturidade só lhe veio a lume depois da fatalidade sofrida, pois se a tivesse de fato antes do ocorrido, não teria pegado ao volante em tão deplorável estado.

No hospital, depois de confirmada a morte da família, os corpos são conduzidos para o IML, para detectar e confirmar a causa morte. O corpo do suicida anônimo já estava por lá, chegara primeiro, fato normal, não tendo quem lhe reclamasse o parentesco, também por ter sido morte instantânea, seria um bom laboratório para os avanços da medicina. Talvez aqui se compreenda melhor este fato, o de médicos fazerem estudos em corpos de pessoas indigentes. Tudo nesta vida tem um fim, quando não se serve mais vivo, há de se achar algum objetivo depois de morto.

Há uma espécie de loucura no ar, por que era necessário cortar os corpos dos pobres infelizes, expor assim as crianças e os seus pais a mais esse tipo de humilhação? Seus corpos já haviam sido destroçados pelo carro e pela parada de ônibus contra a qual eles haviam batido.

Os corpos da família e do suicida que pulara do prédio se juntam à mesma mesa gelada dos corta-defuntos, na morte todos são iguais, não há nenhuma diferença de tratamento. Mas com os vivos a coisa é bem diferente. Na delegacia, o pai rico chega com o advogado, para defender o jovem delinquente e, agora também assassino. Meu filho, o que foi que aconteceu? Diz o pai abraçando o filho, demonstrando carinho e preocupação paternal. Nada, pai. Responde o filho. Eu bebi um pouco com meus amigos e, na volta para casa, aconteceu um acidente, mas não foi culpa minha, o carro quebrou alguma peça, eu perdi o controle, merda, pai, merda. Não tive culpa, meu pai, acredite em mim. Diz o jovem, com bastante desequilíbrio emocional, tentando conquistar a confiança que perdera junto ao pai, desde que abandonou os estudos, para viver de festança em festança. Fora tão inconsistente, que até o delegado, que já o havia condenado intimamente, muda de semblante e de opinião, passa a ter pena do pai e, se colocando em seu lugar, pergunta: Então, é o senhor o pai desse jovem desafortunado? Sim, claro, ele é meu filho, meu único filho e nunca soube que usava drogas ou que bebia tanto. Como é que foi acontecer essa fatalidade? Senhor delegado, como é que um pai administra uma infelicidade desse porte? Silenciou o pai o seu lamento justo, silêncio que logo foi quebrado pelo delegado de plantão. Ele matou quatro pessoas, meu senhor, não foi uma nem duas vidas que ele tirou, por isso não há outro caminho, seu filho é maior e vai responder pelo crime doloso que cometeu. Tudo bem delegado, ele não pode ficar preso, providencie sua fiança e, a partir de agora eu vou defendê-lo perante a justiça, meu cliente é primário, tem residência fixa, portanto o senhor sabe muito bem que não pode mantê-lo preso. Diz o advogado, que ouvia em silêncio toda conversa no mesmo recinto, demonstrando bastante conhecimento de causa, fazendo jus aos honorários que devia receber do homem rico, é claro, ossos do ofício. Além do mais, crime de trânsito não é considerado em nosso país como crime comum, passível de prisão, o senhor sabe mais do que eu, e deve estar acostumado a soltar, todos os dias, pessoas que, por infelicidade ou por imprudência, atropelam e matam inocentes. Isto é coisa comum. Reforça o advogado, o seu argumento de que o jovem por ser de família rica e possível réu primário não poderá ficar preso. Dizemos provável réu primário, pois não vamos aqui investigar sua vida pregressa, todavia, pela condição financeira e moral em que vive, não seria impossível já ter cometido outros crimes dessa mesma natureza.

Há aqui uma semelhança com esta insanidade capitalista, a de que para ser aceito em uma empresa, por exemplo, o cidadão precisa de referências e de experiências comprovadas em carteira.

Terminado os procedimentos legais, o pai saca de um talão de cheques e paga a fiança, quase uma fortuna, para os padrões dos que morreram no asfalto, e não tiveram quem os pagassem fiança para não serem reféns eternos da morte trágica. O jovem é liberado, com as recomendações de praxe, não devia sair do país, devia comparecer na presença do juiz, provavelmente para responder ao processo em liberdade, isso se fosse convocado. Mesmo depois de matar quatro pessoas, o pai leva o filho para casa, sem remorso, para o seio da família, para o aconchego do lar, onde o esperava a mãe aflita por notícias suas.

Ninguém aparecera ainda para reclamar os quatro corpos, a família era sozinha na grande cidade, tinha parentes muito distante, pobres assim como eles, que mesmo se quisessem não poderiam vir para os funerais, não havia, portanto, quem os procurasse para providenciar um enterro digno. Talvez pudesse usar as palavras "enterro justo", mas o ponto em questão não é julgar as ações dos envolvidos, apenas observar os limites do que conhecemos como ser racional.

Por outro lado, o suicida não tinha esposa nem filhos, apenas uma mãe velha e doente, morando num asilo, que também não fora avisada ainda sobre a tragédia. Como poderia ser avisada se seu filho era um anônimo, alguém que perambulava nas ruas como um lunático, longe de onde morava, de onde tinha alguém conhecido? Talvez leia nos jornais as notícias que jamais poderá inferir se tratar do seu único filho, depois as notícias de jornal são sempre incompletas, ainda mais se tratando de suicídios, é sabido agora pelo leitor que não são noticiados. A mãe, mesmo que fosse avisada não teria os meios para se deslocar ao encontro do filho, apenas mais um indigente, que morria sem ninguém para lhe reclamar a alma, nem mesmo para lhe conceder o seu último direito, um enterro cristão. Mas a realidade é sempre pior que a ficção, ficaria apenas com a oração do pastor lunático, como passaporte para a região dos mortos. Um homem jovem, que aparentava ter uns quarenta anos, um desempregado, que depois de vagar dias e dias atrás de um emprego e daquela que era a sua real razão de viver, a prostituta, resolve abreviar o descanso eterno. O homem tinha alucinações, era epiléptico, desde criança dizia que via e ouvia os mortos. O suicida era cozinheiro, trabalhava em restaurantes, era muito talentoso, mas quando tinha crise era logo mandado embora, não conseguia trabalhar mais que três meses no mesmo local. No último emprego conhecera uma mulher, por quem se apaixonara perdidamente, uma bela prostituta, que fazia ponto em frente ao seu trabalho, que ficava em uma praia famosa da Zona Sul. Sempre ao final da noite, quando ela estava livre, depois de uma maratona de programas, com turistas estrangeiros em sua maioria ingleses, então saiam os dois para se divertir até o amanhecer, em alguma espelunca em que o seu dinheiro dava conta de pagar. Um dia, enquanto esperavam um ônibus para irem a um motel, foram surpreendidos por policiais, que os confundiram com bandidos e os levaram para uma região inóspita, para um matagal nos arredores da cidade, espancaram o homem e estupraram a mulher. Largaram os dois em lugares diferentes, foi a conclusão que chegou o suicida, quando deu queixa do crime ao delegado, sobretudo pelo fato de não a ter visto mais. Por que não fizeram mal também ao homem, e apenas estupraram a mulher? Diria o lato sensu, por ser bela mulher a prostituta. Claro, ser muito bonita pode ser um bom argumento, embora não usasse óculos escuros, a mulher era bela sobremaneira. Talvez tenha sido isso um dos motivos que a fez escolher este tão invejado ofício, o de ser prostituta. Como assim invejado? Pergunta a senhora que me escuta, todavia há quem concorde comigo, que ser puta ou prostituta, fato que aqui não altera a etimologia da palavra, pode ser um ato de extrema liberdade sexual, liberdade essa que poucas mulheres, mesmo no ocidente ainda não usufruem.

O homem teve uma crise e baixou ao hospital, levado é claro por desconhecidos, quando vagava pela cidade, e lá ficou internado por mais de um mês. Todavia, quando se recuperou da surra e da crise, tinha perdido o emprego e o seu grande amor, não sabia nada sobre a vida, origem ou endereço da bela prostituta, a prostituta sumira sem deixar nenhuma pista. Caso este, não tão raro, o de amores avassaladores, costumam os amantes combinarem entre si, como num pacto de silêncio, que nenhum deva saber sobre a vida pregressa de ambos. É claro que isso só ocorre nos romances, pois nos dá um ar de mistério, assim como misterioso é sempre o amor, sobretudo quando é recíproco.

O homem que já era problemático chegou ao clímax de sua desilusão com este acontecimento fortuito. Quando resolveu subir no prédio e dar baixa em sua vida, já não tinha nenhum resquício de lucidez. As vozes que ouvia, que segundo ele eram dos mortos, se intensificaram, ouvia também a prostituta gritar seu nome, às vezes lhe pedindo socorro, outras vezes chamando-o para vir ao seu encontro no além. A dúvida, se sua amada havia mesmo morrido, no início deixava-o ainda com alguma esperança, mas essa esperança logo se dissipava, quando se via sozinho no meio da multidão, longe da mãe, sem amigos e meios de vida, a soma de todas essas carências lhe conduzia a um abismo de insignificância e inutilidade social. Além de só, estava louco, não valia a pena mais buscar um emprego, até porque não poderia mais viver sem sua bela prostituta. Mas a bela mulher, que aqui reconhecemos como prostituta, e que insistimos em construir sua bela imagem estética, uma vez que ainda não sabemos nada sobre seu espírito, nem das nuances da sua psicologia, não era uma mulher qualquer, era uma jovem de uns vinte e cinco anos, embora inculta era apaixonadamente inteligente, para as aspirações românticas de um homem simples, que tinha como profissão o ofício de cozinheiro, e, que além de pobre era muito doente. A moça, profana e divinamente bela, fora realmente capaz de deixá-lo alucinado, tanto na sua presença, como ainda mais na sua ausência. Há dois tipos de paixão no terreno amoroso, a paixão que alucina pela satisfação do amor recíproco, como a alucinante paixão que desvirtua o julgamento da razão, a falta do objeto amado. Descrever a prostituta, para este narrador não é nenhum incômodo, aliás, é algo muito prazeroso, diferentemente da prostituta de óculos escuros, de outro ensaio famoso pela relevância da sua cegueira, lá o narrador não podia se aprofundar de mais nos dotes e atributos físicos, daquela que viria a ser sua melhor personagem, afinal se tratava de um mundo onde todos eram deficientes visuais. Digo quase todos, pois a Mulher do Médico, aqui adjetivada pela sua importância literária e humana, enxergava e foi graças ao seu generoso espírito que Saramago recebeu o Nobel de Literatura. A Mulher do Médico, segundo tese nem tanto implícita, representa o espírito humano, que para preservar sua espécie procura sempre, em primeiro lugar o bem coletivo. Todavia devo aqui ressaltar que esse espírito não é comum entre os homens de carne e ossos. Ainda sobre a generosidade da Mulher do Médico, que além de conduzir e proteger todos os outros prisioneiros cegos de um manicômio fétido, ela, talvez por se encontrar em outro estágio evolutivo, consegue entender e perdoar a traição do marido, que como todos os outros homens desta fascinante história também se apaixona perdidamente pela prostituta de óculos escuros. Contudo, para os curiosos, o suicida era mais um louco, que subira nas alturas com a intenção de sair de lá voando, era o que diziam os normais observadores. Mas não devemos esquecer que é na loucura que reside a sinceridade da alma.

            
            

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