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Capítulo 6 No cativeiro

Capítulo 7 A entrevista

Capítulo 8 A visita à clínica


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Deixemos de mão, por enquanto, este ensaio sobre o preconceito e alienação e voltemos ao nosso tema original, pois quem se estende de mais por vias perigosas pode comprometer o objetivo que deseja alcançar, sem contar com o tempo e energia empregados em projetos insalubres e contraproducentes.
Há outra tese que não é científica para discussão em outra ocasião. O que chamamos de razão pode ser um surto que acometeu os animais, lá nos primórdios da evolução ou da percepção de uma inteligência emocional, em alguns com mais intensidade que em outros, então os homens mais inteligentes, aqueles que conseguem dominar com mais facilidade seus pares, do ponto de vista atual, seria sempre o animal mais contaminado, aquele que conserva um grau maior de loucura, percebe-se, como base para esse argumento algo irrefutável, é o fato de que no estado do instinto, embora fosse o homem bruto, não havia premeditação e pré-disposição para a maldade. Se juntarmos Russell, Lacan e Nietzsche em um mesmo tribunal, veremos que essa tese não é assim tão absurda.
Volta ao tema
Deixemos o médico em seu cativeiro, e a história do seu malfadado romance com sua melhor aluna interrompido por algum tempo, até porque o tempo aqui é de pouca ou de nenhuma importância. Como já foi dito, mas não custa nada repetir para que fique bem entendido, como é veraz o provérbio que diz que a repetição é a mãe da retenção, a médica jovem, a noiva do sócio-gerente, pessoa também anônima neste drama, pela insignificância do seu nome, mas pela relevância dos seus atos, virá para o panteão dos imortais, digo para o rol dos loucos, talvez a mais louca e mais contraditória de todas as almas que respirarão nestas páginas.
Ela não deu muito na pinta que ficara chocada com o sumiço do médico professor, tinha, evidentemente seus bons motivos, encarou o ocorrido como algo normal, trivial, corriqueiro, até fez brincadeira sobre o assunto, causando de certa forma estranheza em seus colegas, mas ao se encontrar com o noivo, pôs de fora as suas garras, para defender aquilo que suspeitara intimamente.
Como foi seu dia no hospital? Pergunta o noivo, mostrando meiguice e um interesse desproporcional, incomum para a pequenez de sua alma rasteira, não tinha costume de fazer esse tipo de pergunta, nem sensibilidade suficiente para tanto, essa atitude atípica logo denunciara segundas intenções, pois como é do nosso conhecimento, a jovem médica não era pessoa comum, do tipo de mulher que aprecia exageros de tratamento. Foi normal, exceto pelo fato de terem sequestrado meu melhor amigo, o nosso professor, aquele senhor charmoso, lá da residência médica se lembra dele? Sim, ah sei, mas como assim, sequestro? Fiquei sabendo sobre o desaparecimento de alguém importante, mas não me lembro de ouvir falar nada sobre sequestro. É, sou eu que afirmo que foi sequestro, mas a polícia não tem nenhuma pista sobre o caso, estamos aguardando novidades, espero que sejam boas. Diz a moça mostrando frieza e distanciamento emocional. Eu também querida, espero que achem seu amigo velho com vida. Sabe como é, há casos em que mesmo pagando o resgate eles matam as vítimas, para esconder melhor o crime, para não deixar pistas. Comenta o gerente de forma desinteressada. O que é isso? Não vão matar meu amigo, ele não tem inimigos. É um homem bom, do bem, e pode ter sido sequestrado por engano. Depois ele não é velho, é um homem muito interessante, fique o senhor sabendo que eu, se não fosse noiva ficaria com ele facilmente. A moça diz essa frase com um sorriso entredentes, fato que não foi notado pelo noivo alienando. Finaliza o diálogo, ao fechar a porta do carro, chegando a seu apartamento na Zona Sul, onde o noivo não costumava entrar, por causa de sua companheira de quarto.
O gerente era sobremodo preconceituoso, apesar de viver implicando com a noiva para mudar de companheira de quarto ou de apartamento, ela nunca lhe deu ouvidos, dizia que mesmo sendo sua noiva, alguém com quem intencionava se casar, nem por isso lhe dava o direito de opinar sobre sua vida particular ou com quem devia ou não morar. A médica dividia um apartamento com outra amiga, que conhecera na noite, não na faculdade, era uma mulher muito bonita, que fazia programas e morava na cidade grande, onde trabalhava arduamente para ajudar a família que vivia no interior. Sua amiga de quarto era bela demais para os padrões de um Ensaio Sobre a Loucura, onde o narrador não deveria fantasiar, além dos limites da lógica, os seus devaneios teatrais. Mas há de ser perdoado, afinal há sempre um pouco de razão e beleza na loucura, e, em se tratando de literatura todo excesso para atingir picos de beleza no texto, sendo coerente e relevante ao contexto, qualquer extravagância será válida. A prostituta, por ser bela e inteligente não lhe faltava clientes, uma prostituta independente, que não tinha agenciador ou cafetão como é conhecido pela maioria das pessoas, contudo, a ficção nos proporciona mudar, até certo ponto a realidade dos fatos para enfeitar o mundo real onde as coisas nem sempre são justas. Pela intimidade que desenvolvera e grau de cumplicidade, às vezes até convidava a amiga médica para lhe acompanhar nos sabores de uma vida mundana, para saber como era a vida de uma prostituta de luxo. O convite fora aceito, pelo menos uma vez. Um dia, na verdade fora durante uma crise, no início do relacionamento, quando o ciúme era a terceira pessoa mais presente na relação, a médica aceitara por um dia, a aventura de viver a fantasia de ser mulher de outro homem, nesse caso de um desconhecido, em troca de alguns dólares e muita adrenalina, mais pela adrenalina que pelo dinheiro. Tivera assim a sua chance de viver outra existência, essa extravagante experiência fora muito válida, segundo constataremos logo mais adiante. Teve antes, porém, a garantia da amiga experiente de que seria uma coisa muito simples, rápida, sem consequências futuras, pois o cliente seria um estrangeiro limpo, educado e generoso, que pagaria muito bem e não voltaria a vê-la outra vez. Isso era o bastante, para ela que não costumava ter dor de consciência, uma experiência desse tipo valia a pena o risco, se bem que nesse caso o risco era insignificante, quem contaria para o seu noivo essa aventura? Percebe-se que muitas ações, quando praticadas sem o conhecimento daqueles a quem se deve satisfação, não tem lá o mesmo peso moral. Há, portanto, outro ditado idiota que diz, aquilo que os olhos não veem o coração não sente. O fato é que há olhos que não têm coração.
As figuras de linguagem são as coisas mais ineficientes inventadas pelos poetas e sábios do passado, são tão ineficientes quanto certos adjetivos incoerentes com a realidade. Esta ilação ou ideia de que é o coração quem sente não tem nenhum apoio científico, para Schopenhauer é o olho que sente primeiro, e é o cérebro, na verdade, que vê e sente tudo, quem produz as imagens externas pela percepção nervosa, em suma, somos apenas mente, por isso este detalhe da lucidez, que nada mais é do que a saúde mental, que é tão relevante para sabermos opinar sobre certo e errado, daí fica muito fácil botar em xeque todos os conceitos de moral, sobre a ótica da relatividade. Como sabemos, a jovem médica vivera em vinte e poucos anos experiências que muitas mulheres de quarenta anos jamais viveram ou viverão - sabia bastante da vida para se submeter às regras convencionais.
A vida real é mesmo diferente daquilo que apregoam os livros, sobretudo os romances dos Nobel de Literatura, alguns são sobremaneira inventivos, e os que mais agradam ao povo são aqueles que inventam um mundo irreal, que forjam situações que jamais poderiam fazer parte da nossa realidade sensível, algumas personagens que não representam nem de longe o que tem de fato a alma humana, mulheres representantes de uma moral apenas imaginada no senso comum. Outras que trazem em sua essência a capacidade humana de superação, de vencer desafios intransponíveis, respiram dentro de uma lógica textual, com adjetivos iluminados, mas que não podem dar asas a quem nasceu para andar no chão, essa enganação lírica, com intuito de fazer da vida real uma poesia, não alimenta as almas que precisam ser sacudidas para encarar suas chagas naturais. A vida é difícil, as pessoas são totalmente vulneráveis ao crivo das suas próprias necessidades de autoconhecimento, chamamos de loucura as reviravoltas que alguns resolvem dar em suas vidas, mas o que há de verdadeiro no ser humano é um desejo insano de se conhecer, de testar seus limites. Por isso não se pode antever as reações das pessoas, enquanto elas não forem submetidas a alguma situação de difícil escolha.
Questionaremos, portanto, a conduta da médica jovem, que se encontra no auge da sua procura por emoções diferentes, nunca faríamos o mesmo que ela fez? Se pensarmos assim pode ser que talvez nunca fomos, nem por algum momento, humanos. Em tese, ser humano é ser fraco, e incapaz de uma conduta perene, os conceitos de moral que a humanidade tem experimentado até hoje não foram ratificados por mais de uma geração. Vivemos de ciclos, mudamos sempre que surge necessidade de adaptação, poucos homens tiveram a sorte de nascer e morrer sem ter que mudar seus hábitos, gostos culinários e até mesmo preferência sexual.
Então, o noivinho não quis mesmo entrar? Brinca a prostituta com a amiga médica. Não, você já sabe como ele é cabeça dura. Responde a médica, rindo sarcasticamente do noivo, junto com a prostituta. Havia uma cumplicidade singular entre as duas almas femininas, de vidas e origens tão distintas. Sei, se eu fosse você lhe aplicava uma peça. Que tipo de peça? Você não está pensando em sacanagem, "tá"? Não, mas se quiser a gente apronta uma para esse bobão, ele merece mesmo é ser chifrado. Não, outra vez não, basta, afinal eu tenho que ser leal, afinal vou me casar com esse pamonha. Você é quem sabe, o noivo é seu, se fosse meu saberia como lidar com ele. Já pensou se ele soubesse que tu és amante do médico professor? "Tá" doida? Ele faria uma merda, seria capaz de matar por ciúmes, não a mim, mas a ele, coitado do meu amigo professor. Sei como é, o corno sempre prefere matar o amante para ficar com a mulher só para ele. Coitado, ele pensa que tu és virgem ainda. Virgem, eu? Claro que não, só se for como aquela do Garcia Márquez. O quê? Pergunta a prostituta, revelando a sua ignorância literária. Nada querida. Deixa isso para lá, conta-me aí como foi a noite passada, parece que foi boa, pela tua cara de cansaço. Pergunta a médica que sempre demonstrava bastante interesse pela vida difícil da amiga prostituta. Foi normal, responde a prostituta sem querer revelar detalhes íntimos do seu encontro noturno. Não que fosse reservada quanto ao que praticava com seus clientes, mas neste dia havia algo especial, que ela relutou esconder da amiga. Saí com um policial que me contou uma história muito esquisita. O quê? Falou-me das últimas ocorrências da sua delegacia, menina, foi tanto caso que me impressionei, demorei a pegar no sono, nem nas ruas por onde eu ando agora vejo tanta violência assim. O que foi realmente que ele te disse? Ah, menina, falou-me do sequestro do teu amigo professor. Sério, mas você não falou de mim, para ele, falou? Claro que não, amiga. Falou também de um suicida, de um maluco que pulou de um prédio, lá no centro da cidade, mas desse não me deu detalhes, falou que ninguém conhecia o homem, apenas que fora enterrado como indigente. Também falou de um velho pedófilo que abusou de uma menina de seis anos de idade, de um acidente, de um atropelamento, disse que um filhinho de papai, um garoto rico subiu numa calçada com um carro importado e matou uma família inteira, pai e mãe e dois filhos. Mas esses foram todos acontecimentos dos últimos dias. Que isso, que loucura, que mais ele disse? Quer mais, mais do que isso? Ele disse que tudo isso aconteceu apenas de uns dias para cá. Ah, também me falou que um homem se suicidou, pulou de um prédio lá no centro, mas desse não sabia detalhe, não tinha família nem amigo, mas desse eu já havia falado, acho que sim. Fiquei de encontrar com ele outra vez, falei que queria saber do desenrolar dos casos, mas claro que foi só pelo sequestro que me interessei, ele não desconfiou de nada. Ele me pareceu muito gente boa, me prometeu que na próxima vez em que nos encontrarmos terá novidades sobre os casos que me contou, talvez até do teu amigo. Cuidado hein, pode ser muito perigoso sair com policiais, você não se esqueceu daquela noite em que foi estuprada, esqueceu? Não, claro que não, mas esse policial é civil, é bem-educado, diferente daqueles animais que me ofenderam, a mim e ao meu ... Esqueça isso, não quero me lembrar dele. Precisa ver como esse policial é inteligente, parece com você falando. Eu acho até que ele estava mentindo quando me disse que era apenas um agente de polícia, será que ele não é um delegado, desses importantes, eu fiquei pensando, e se for um delegado, hein? Pode ser, mesmo assim, se eu fosse você teria mais cautela. Vai devagar querida. Na próxima vez em que encontrar com ele, pergunte sobre essas coisas, quem sabe ele mesmo não lhe conta. Já pensou amiga, eu amante de um delegado de polícia. Acho que gostei mesmo dele. É! E o seu cozinheiro sumido, já pensou se de repente ele aparece, como vai ser se você já estiver envolvida com outro homem, além do mais com um delegado? Meu querido cozinheiro, esse não deve mais aparecer, era muito doente, se tiver escapado dos bandidos policiais, pode ter morrido em algum hospital público, jogado como um cão sem dono. Como era o seu cozinheiro? Pergunta a médica de modo meigo e empático. Era um amor de pessoa, carinhoso, preocupado comigo, acho que nunca mais conhecerei alguém tão bom quanto ele. Era generoso, ganhava menos que eu, uma miséria, o que ganhava em um mês não dava para pagar uma noite de farra das que eu ganho de alguns clientes, mas sempre fazia questão de me dar presentes, e de pagar o quarto para me oferecer momentos inesquecíveis, momentos em que eu não precisava fingir que sentia prazer. Houve noite em que eu não estava disposta, mas ele nunca reclamou da minha falta de vontade de fazer sexo com ele, às vezes estava exausta, cansada desta vida, então ele só me dava carinho, sem cobrança, então passávamos a noite apenas conversando, isso quando eu não dormia de tanto cansaço. Era um santo, esse seu cozinheiro, desculpe amiga, mas eu não sabia que existia homem assim. Tudo bem, não me ofendo, mas é a pura verdade. Sei que de parente ele tinha só a mãe, velha e doente, mas não podia cuidar dela, vivia em um asilo. Meu cozinheiro era inteligente, mesmo sem estudo se mostrava ser uma pessoa muito evoluída e sensível. Que doença ele tinha? Pergunta a amiga disfarçando as lágrimas, consternada pela demonstração de afeto daquela alma singular, capaz de revelar magnificamente toda dualidade dos humanos. Era epiléptico, era o que ele me dizia, o que diziam a ele os médicos que o atendiam durante as crises que tinha. Dizem que os epilépticos são todos muito inteligentes, será verdade? São assim pelo menos os escritores que eu conheço e que eram epilépticos, todos são gênios incomparáveis, contudo, o que atrapalha o gênio é a vaidade, por isso viram deuses. O quê? Nada, pensava alto. Você nunca se perguntou que a mãe doente pode saber notícias dele? Não, nunca pensei nisso, você pode ter razão, mas como encontrá-la? Não será muito difícil, asilos não existem muitos hoje em dia, no máximo dois ou três em toda cidade, com o avanço da medicina diminuiu também a necessidade de internar doentes mentais. Será que devemos tentar encontrar a mãe dele? Claro, pelo menos você tira a dúvida, sobre o que houve com o seu querido cozinheiro. Se quiser posso ir com você, também posso me informar sobre os endereços dos asilos, não será muito complicado, no hospital talvez alguém possa me ajudar com isso.