A prostitua
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Capítulo 3 Outra fatalidade

Ao chegar em casa, aparentando estar bem, depois de abraçar a mãe e contar-lhe em detalhes o ocorrido, o jovem que atropelara a família, sente dores no tórax, a mãe desespera-se e pede pelo telefone uma ambulância para levá-lo a um hospital particular das proximidades. O rapaz teve hemorragia interna - não conseguiu chegar ao hospital com vida. O pai, desesperado por não compreender o tamanho da tragédia em que se envolvera, como quem busca resposta para o incompreensível, resolve procurar as vítimas do seu filho, agora morto.

Vai ao hospital público em busca de alguma informação sobre os atropelados indigentes, lá chegando toma ciência de que todos estão mortos e cortados no IML, em outro prédio anexo ao hospital, e que não há nenhum parente para fazer seus enterros. Com sua influência de rico empresário, consegue a liberação dos corpos e providencia o enterro de todos. Junto da cova do filho, o pai enterra também suas vítimas.

O homem rico e insensível de outrora, agora vira cristão generoso, a loucura se apoderou da sua mente presunçosa, a dor de perder o filho único que fora criado com exacerbado mimo o fez mudar radicalmente de atitude, ninguém mais o conhecia, andava pelos hospitais e asilos em busca dos necessitados para ajudar. Passou o comando da empresa para seu sócio-gerente que lhe devia ser de confiança, dizia que doravante não se esquivaria de ajudar quem quer que fosse, fazia isso com intuito de reparar os danos que seu filho causara àquela família, e também como punição por não ter dado orientação correta ao filho, que por falta de atenção e cuidados adequados, havia se tornado um delinquente juvenil e assassino de pessoas inocentes. A mãe do jovem também adoecera, logo em seguida ao enterro do filho, só que fora do juízo, então começou a ter sonhos acordada, via a família que o seu filho matara, a nova vida do marido lhe deixava numa solidão profunda, dentro de uma mansão sombria, vivia agora sozinha. Tudo isso contribuíra para que ela também perdesse o interesse pela vida. Começou a falar sozinha, andava à beira da loucura, contudo, para amigos e vizinhos já se encontrava desesperadamente louca. Logo em seguida passou a ter crises de histeria e a passar noites em claro, seu estado piorara a cada dia. Em uma consulta rotineira a uma psicóloga, que era amiga de longa data da família, foi lhe indicada a sua internação, de fato havia despencado da linha tênue que separa a lucidez da loucura, era loucura, só que era uma loucura um pouco branda, uma vez que não oferecia perigo a ela própria nem aos seus familiares. Mesmo assim, por consentimento mútuo da família e do marido, fora internada numa clínica especializada para tratamento, por um breve período, pelo menos era o que intencionava a médica amiga, todavia, só o tempo seria capaz de esclarecer este fato, se de fato a mulher recobraria a lucidez ou se pioraria ao desfecho trágico da morte, do suicídio, como é comum entre os loucos, não só deste romance, mas de toda história literária e natural da humanidade. Não queremos com essa afirmação determinar, erroneamente, que só os loucos cometem suicídio, há caso de suicídio entre grandes espíritos, grandes intelectuais que desistiram da vida, por vários motivos, seja vítima de depressão ou por conta da angústia que carregam da sua insignificância dentro deste caos que é o mundo. Muitos poetas abreviaram sua eternidade, e não devemos também nos esquecer daqueles suicidas, que por motivos amorosos, por paixão avassaladora e não correspondida ou talvez por solidão atroz, deram adeus ao mundo das lamentações.

O Professor, médico velho experiente, entre tantos outros aparentemente normais, era o que mais respirava lucidez, mas não escaparia de ser acometido pela loucura dos cães violentos. Ao chegar em casa, depois de um plantão agitado, ao tentar abrir a garagem, foi surpreendido por bandidos fortemente armados, que o sequestraram e o colocaram dentro do porta-malas do seu próprio carro, levaram-no para um cativeiro, nos arredores da cidade. Um crime sem claras intenções, mas não há nem deve haver explicações para o improvável, e para morrer, como dizem os entendidos do assunto, basta-se estar vivo. Um médico de vida aparentemente pacata, sem inimigos declarados, ser subitamente vítima de um bem elaborado sequestro, seria realmente uma coisa surpreendente, sobretudo para quem o conhecia intimamente. Quando a esposa percebe a falta do marido, que até aquela hora não chegara em casa, liga para o hospital e fica sabendo que ele havia voltado para casa cedo, no mesmo horário, como fazia todos os dias. O próximo telefonema que deu foi para a polícia. Depois de expor, em detalhes o fato ocorrido e descrever o perfil do marido sumido, como era fisicamente, onde e com quem trabalhava, diz a esposa angustiada: Mas delegado, como esperar vinte e quatro horas, eu estou lhe dizendo que o meu marido sumiu, desapareceu, não voltou para casa, acho que foi sequestrado, assaltado ou mesmo, quem sabe assassinado, o senhor precisa tomar as providências cabíveis. Por favor! Eu sou uma cidadã cumpridora das leis, pagos meus impostos em dia, portanto exijo meus direitos. Calma, minha senhora, existem leis que nesses casos determinam qual deve ser meu procedimento correto, não posso fazer nada por enquanto, espere até amanhã, se amanhã, a esta mesma hora ele não tiver aparecido ainda, então autorizo as diligências, acalme-se, por favor, manter a calma nessas horas é sempre o melhor remédio, conclui o delegado, o mesmo que cuidara do atropelamento que vitimara a família pobre, também o mesmo que recebera a notificação do suicídio do centro da cidade. Além de outras ocorrências menores e sem importância para nosso contexto.

Mas que plantão, hein, delegado! Diz o agente de polícia, assistente imediato do delegado. Parece que a bruxa anda mesmo solta nesta cidade de malucos. Não tenha dúvida meu caro, estamos vivenciando tempos muito esquisitos, eu nunca vi tantas ocorrências, ainda mais desses tipos. A pior de todas foi aquela do início da noite, a do velho safado, molestador de menores. Como é que um cidadão de sessenta e cinco anos pode ser tão descarado como aquele, molestar crianças, se eu pudesse e se não existissem os tais direitos humanos, eu mesmo executaria sumariamente o desgraçado. Você viu delegado, o que disse o pai da menina molestada, que o vagabundo oferecia doces para conquistar os filhos dos vizinhos, quando eles iam a seu estabelecimento comercial comprar mantimentos? Sim, ouvi, o que mais me chocou foi o fato de ele negar todas as acusações, apesar das provas, e das testemunhas, mas não tem nada não, lá na penitenciária ele vai pagar tudo, vai receber em dobro o mal que causou para aquela criança. Além do mais, quando saírem os exames médicos que mandei proceder na criança ele não terá como negar, então receberá da justiça, aquilo que de fato merece. Pena que o desgraçado seja velho, não terá tempo para apodrecer na prisão. Pode deixar delegado, enquanto isso eu vou cuidar muito bem dele, durante sua estada nesta delegacia. Reforça o agente sua cumplicidade junto ao delegado, mostrando-se também indignado com o velho pedófilo.

Sobre a expressão, na prisão ele vai receber em dobro o mal que fez às crianças, é sabido que esse fato ocorre no mundo inteiro, detentos, que de alguma forma molestam sexualmente crianças e mulheres indefesas, são tratados com o mesmo grau de empatia, são eles usados na prisão como mulheres para satisfazer os homens que se embrutecem pela abstinência sexual.

Parece-me que há uma loucura coletiva no ar, as pessoas não têm mais limites. Eu até queria poder ajudar a esta senhora que deu queixa do desaparecimento do marido, mas sinceramente, não acredito que esse médico foi sequestrado. Deve estar por aí, em algum motel, com uma médica ou enfermeira, colega de trabalho, talvez com alguma aluna do curso de medicina. A esposa me contou que ele é, além de médico, professor no hospital onde trabalha. Forneceu-me algumas informações sobre o perfil dos seus colegas de trabalho. Então, pode ser mesmo, acrescenta o agente maria-vai-com-as-outras. Deve ter umas alunas médicas gostosinhas e bem bonitinhas. Conclui sua tese, o agente besta-quadrada. Depois é a lei, eu não posso infringi-la só porque se trata de pessoas de posses, você o que acha? Está certo, muito certo, chefe. Responde o agente bajulador, demostrando a baixeza de uma alma servil.

No cativeiro, amarrado sobre uma cama fétida, entre quatro paredes sujas e esburacadas, em um quarto de três metros quadrados, o médico sequestrado tenta entabular um diálogo com seus algozes, que se encontravam do outro lado da porta, para diminuir a pressão que sofria pela incerteza da sua integridade mental. Um silêncio quase mortal é quebrado por estas palavras. Meus caros, por que vieram sequestrar-me? Logo a mim que não tenho dinheiro nem bens para lhes dar. Sou médico da rede pública de saúde, e professor de universidade, de um estado falido, o pouco que ganho, meus amigos, mal dá para os meus vícios de café e leitura, e de um uísque de vez em quando. Os senhores devem ter se equivocado quanto à minha casa, consequentemente sobre a minha pessoa. Cala a boca doutor, se não quiser que o façamos dormir um longo sono. Diz uma voz rouca, do outro lado da porta que estava fechada, mostrando pouco equilíbrio emocional. Fica quieto doutor, só estamos cumprindo ordens de cima. Retruca uma segunda voz, que demonstrava ainda menos calma, do que a outra voz rouca que falara antes. Como ordens de cima? Indaga o doutor aflito, mas logo cai sobre todos o mesmo silêncio de antes. Vivendo um conflito interior, o médico tenta encontrar, nos atos passados, alguma explicação lógica capaz de elucidar toda aquela loucura que o atingira. Do pressuposto incomum, de que todo homem é culpado pelas mazelas do mundo, sobretudo daquelas que lhe sobrevêm, provavelmente haveria razões suficientes para que esse médico, aparentemente gente muito nobre, fosse alcançado por algum tipo de justiça, que não deixa impunes os atos mais secretos dos homens. Há um ditado, idiota por ser popular, que diz que quem apanha nunca se esquece, ao passo que os que batem se esquecem rápido, porque continuam a bater em outros. A prática do mal, por ser muitas vezes repetida, passa despercebida do próprio autor. Muitas cenas foram revisitadas na mente do velho médico, e a cada imagem relembrada, que hoje, no seu ponto de vista, não parecia lá tão nobres, sobrevinham-lhe calafrios e dores de consciência. Será por isso ou por aquilo que fiz ou deixei de fazer, que estou sendo agora castigado por Deus, pelos homens? Pensou o médico, um homem culto não devia consentir este tipo de pensamento de remorso. O Médico sabia da expressão de Tiago, meio irmão do Cristo, que diz: Deus não prova nem condena ninguém, são as ações e pensamentos dos homens que os condenam ou os absorvem. Não podemos nunca nos esquecer de uma verdade não relativa. Toda sabedoria que se acumula por anos afio de estudo e experiência nos foge pela janela, quando nos sobrevém o improvável.

O médico tentou se lembrar, especialmente em seu imaginário, nas suas memórias literárias, se por ventura existia algum caso, que fosse conto ou romance, algum ato semelhante ao que lhe ocorrera, visitou os clássicos russos, os francês, os romances épicos, os poemas malditos, mas não lhe elucidava o enigma, havia algo de singular em seu martírio, contudo, de tanto investigar pôde encontrar apenas um caso parecido com seu, em Kafka, no livro O Processo, onde um homem é conduzido numa prisão imaginária, para um julgamento no qual não conhece o teor de sua acusação, todavia não poderia servir como modelo para deslindar seu caso intrigante e desesperador.

O imprevisto sobrevém a todos, a tolos e a sábios, a corrida não é dos ligeiros, porque há para todo destino um atalho. Mas o que é que se pode classificar de improvável? Improvável é aquilo que não esperamos e que não admitimos que ocorra conosco nem em sonhos ou em delírios. Criamos uma lógica distinta das demais para reger nossas ações, aí quando fatos reais contradizem essa lógica, achamo-nos perdidos, embora saibamos que só existe uma lógica universal, a do caos e a do eterno retorno, portanto surge para nós, vez por outra, o que chamamos de improvável.

Há uma hipótese plausível, com relação aos bandidos silenciosos, poderemos inferir algo muito subterrâneo sobre suas condutas, seriam ou não capazes de abusar sexualmente do sequestrado? Do pressuposto de que a loucura se apresenta de várias maneiras, alguns loucos desenvolvem apetite sexual exacerbado, aquilo que o lato sensu classificaria de instinto animal, pode ser apenas um tipo de insanidade moral, uma variação natural de lascívia. A natureza dotou alguns animais de desejos e necessidades distintas, aquilo que pode ser absurdo para alguns homens, para outros parece natural. O narrador aqui presente não tem a pretensão de ser onipresente, embora pudesse sê-lo, sendo onisciente, porém, se o quisesse, conduziria o leitor para alguns nichos que permanecerão sobre trevas, para deslindar outros segredos, sobre a vida pregressa das nossas personagens sem rostos. Como Kafka, o criador do absurdo e de histórias inacabadas, abismos serão abertos sobre as vistas e mentes dos leitores, ficará a critério, decidir se os explorarão ou não. Não devemos cair no lugar comum de afirmar que o bom leitor é aquele que, ao pegar na leitura de um livro, escreve outro livro paralelo ao que está lendo, preferimos dizer, que o bom leitor é sempre aquele que nos confere a honra da leitura, daquilo que produzimos, muitas vezes em dores de parto, outras vezes por insana vaidade, outras vezes até por necessidade econômica, como meio de sobrevivência, pois embora se reclame tanto de que ninguém possa viver de literatura, não raro encontramos escritores que se dedicam apenas à escrita e que dessa escrita como ofício fazem o seu ganha-pão. Já quanto ao resultado será sempre distinto, cada um absorve para seu universo aquilo que lhe aprouver.

Diz um dito nada popular, retirado do esplendoroso Dom Quixote, com louco não se discute, a menos é claro, se formos mais loucos do que ele. Darei uma ilustração, para mensurarmos a loucura vigente neste contexto. Sodoma e Gomorra, duas cidades da antiguidade que, segundo o texto bíblico, foram destruídas por Deus, pelo fato de atingirem a crassa loucura, sobretudo no campo da moral e dos bons costumes. Quando dois anjos chegaram à cidade para resgatar Ló e sua família, os homens da cidade, como era de costume, avançaram para molestar sexualmente os enviados de Deus. Ló, em desespero ou sob algum tipo de loucura, que até Freud desconhecia, ralhou com seus contemporâneos dizendo que não causassem mal aos homens, pois eles eram seus convidados, e, em nome da boa e velha hospitalidade, oferecia suas filhas em troca da honra dos visitantes desconhecidos. O texto sagrado não diz se a turba violenta e sexualmente depravada aceitou ou não aceitou as filhas de Ló como recompensa, aliás, diz que eles não apreciaram a oferta, todavia subtende-se que os anjos não foram molestados sexualmente, talvez para não chocar os homens crédulos, só diz que logo em seguida levaram Ló pela mão, para escapar da destruição iminente, apenas a esposa de Ló pereceu sob a mão da suprema justiça, virou uma coluna de sal, também quem lhe mandou olhar para onde não devia. Por olhar para trás, para as coisas materiais, para os bens que acumulara durante uma vida inteira, por esse pecado incomum sofreu a pena capital. A recomendação dos anjos fora muito clara, na verdade era um decreto divino, ninguém devia olhar para trás nem lamentar o bem deixado. Esse evento enigmático pode ser a chave para entendermos algumas das formas de loucura nos homens atuais, especialmente nos que professam alguma forma de religiosidade.

            
            

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