A prostitua
img img A prostitua img Capítulo 4 Digressão
4
img
  /  1
img

Capítulo 4 Digressão

Digressão

Das personagens até aqui apresentadas, a maioria já nascera morta, sobretudo a mais importante, o suicida, aquele que conduzirá a história através dos seus meandros de psicologia, mas em se tratando de loucura, não são sempre os mortos que mais despertam perturbações nos viventes? Esta obsessão do autor por matar personagens pode revelar algum desvio de conduta ou do estado natural do narrador, para se candidatar à excelsa loucura que permeia e encanta este texto. Poderá inferir, sem muita acuidade, o leitor mediano de que o narrador, assim como Erasmo de Rotterdam, em seu Elogio, de forma consciente, tenta usurpar o posto magnânimo da loucura. Dos que ainda vivem, temos o pai do jovem e a sua mãe, a prostituta desaparecida, o delegado, o médico, sob o perigo de morte nas mãos de bandidos anônimos, um agente de polícia bajulador, e a mãe do suicida que até este momento não nos foi revelado seu rosto ou identidade. Temos também um advogado eloquente, que até agora pouco falou, figura singular nesta trama, um defensor dos oprimidos, ou aquele que defende os que oprimem os excluídos. Pelo histórico de sua profissão, será sem sombra de dúvida defensor dos que podem pagar melhor, não se trata, portanto, nem aqui nem em outro texto, de justiça, a boa defesa é feita mediante o melhor pagamento. Personagens ainda poderão surgir talvez pouco relevantes, mas servirão para explicar certas facetas das personalidades dos principais. Contudo, perguntam-se os atentos, e a prostituta, onde andará, virá ela para o centro do drama, ou será apenas uma alma coadjuvante, a causa principal da morte de um simples cozinheiro que deu à luz a todo este universo de loucura?

O pai rico, que perdera o filho e a lucidez, por viver agora em prol dos desvalidos, esta era a conclusão dos homens de negócios, com quem costumava se reunir, para tratar de novos e grandes empreendimentos imobiliários. Agora o chamavam de o Bom Samaritano, onde quer que se encontrasse um excluído lá estava ele para fornecer ajuda. Logo a imprensa se interessou em pesquisar a sua história, revelar sua tragédia para o mundo.

Hoje eu quero uma matéria sobre aquele pai rico. O Senhor que perdeu o filho naquele acidente do centro da cidade, quero saber tudo sobre ele, dizem que anda distribuindo seu patrimônio entre os miseráveis. Diz o editor-chefe do jornal local, a um dos seus jornalistas mais tarimbados para esse tipo de matéria. Sim chefe eu vou tentar marcar uma entrevista com aquele bom homem, como é mesmo que o chamam? O bom samaritano, responde uma colega da redação de cultura. Isso mesmo, obrigado, colega. Mas chefe, não creio que será uma matéria curta, devíamos fazer uma grande chamada para o final de semana, para o domingo, afinal hoje em dia ninguém anda por aí distribuindo grana à torta e à direita, isso de fato é uma grande notícia que merece ser divulgada, o que acha? Pode ser, primeiro faça a matéria e me apresente, depois discutiremos sobre o dia melhor para sua publicação.

No cativeiro, o médico continua sem saber qual será o desfecho do seu sequestro, ou que surpresa lhe aguarda o futuro sombrio e agora tão incerto. A dita ordem de cima até o presente momento não chegara cá em baixo, no subterrâneo onde vivia agora, onde mal podia respirar sobre o efeito da sujeira da cama onde era obrigado a dormir e, durante o dia, não levantar. Não ouvira mais as vozes dos seus guardadores.

O delegado cumprira a lei, mandou seus agentes realizarem as diligências cabíveis, fazer investigações entre o rol de bandidos já conhecidos, que realizavam sequestros desse porte. Procedimento padrão, pois tinha superiores e se tratando de pessoa influente necessário era prestar contas de como andavam as investigações. Mas o tipo de crime que agora se apresentava era incomum, passados alguns dias e nenhum pedido de resgate se confirmara, a esposa do médico se encontrava debilitada, recusava-se a comer, só chorava inconsoladamente a falta, talvez a morte do marido. Mas esposa é sempre esposa, pelo menos as antigas, nesse caso outra poderia até se sentir aliviada, afinal ela era ciente da conduta questionável do marido, sabia da outra mulher jovem, embora negasse a si própria, e ao mundo, também sabia que o marido não a desejava mais, nem tampouco lhe dava a consideração de esposa que ela merecia, ou que achava que merecia.

No hospital, colegas comentavam. Que raio de sequestro foi esse, como é que sequestram alguém e não pedem resgate? Se é que foi mesmo um sequestro. Diz um jovem médico que também era aluno do experiente colega. Talvez o tenham executado, a estas alturas, por isso não telefonaram para a esposa pedindo resgate. Diz a aluna mais brilhante do velho pessimista. Cruz Credo, colega, não diga uma insanidade dessas, pode trazer mau agouro. Assegura uma médica idosa que o substituíra junto aos seus alunos, como professora da mesma disciplina. Só estou a me lembrar de como ele reagiria em meu lugar, e o que diria se aqui estivesse, diante desta situação, com certeza diria coisa muito pior, conclui a aluna brilhante. Vamos rezar por ele, Deus sabe o que faz, retruca a médica idosa e devota de Santa Luzia. É, pode até ser que saiba mesmo, mas esses bandidos não sabem, são todos uns loucos descontrolados, drogados que matam só pelo medo de serem descobertos. Pergunto aos colegas, realmente acreditam na interferência divina? Pois é, meu mestre não cria nessas coisas, portanto não será contemplado pela fé de outros, a fé, como pensa o senso comum, não é coisa material, é um bem intangível, isso se realmente for um bem, logo não se pode transferir sua propriedade. A fé de que uma montanha pode ser removida sem o uso inteligente de grandes máquinas não seria uma espécie rudimentar de insanidade? Finaliza a discussão, a jovem médica, aluna preferida do médico sequestrado.

Há uma infeliz coincidência entre nossas personagens, a médica que é aluna aplicada do velho médico, professor sequestrado, também tem relações próximas com o pai rico do jovem que atropelou a família do início de nossa história. E com seu professor de medicina tem relações verdadeiramente próximas, para não dizer relações íntimas. A moça de vinte e poucos anos, embora noiva do sócio-gerente das empresas do bom samaritano, do empresário que se afastou dos seus negócios para cuidar das carências dos mais necessitados, mantinha até o dia do sequestro um romance atípico com seu mestre, mestre no ofício que tinham em comum, e, sobretudo mestre de filosofia. A jovem médica aprendera de maneira muito prática como brincar com fogo sem se queimar. Os pais da jovem médica moravam distante, bancavam os seus estudos, a faculdade de medicina, que não era nada barata, mas não podiam acompanhar de muito perto todos os seus passos. A médica gostava de sair à noite, era séria e competente no seu ofício, mas aproveitava a vida sem grandes pudores morais, fumava e bebia bastante, diriam os moralistas de plantão, mas este modo de viver livre de culpa se intensificara depois que conhecera o velho médico. O noivado com o sócio-gerente rico, porém ignorante, era antigo, já perdera o fogo, a paixão se extinguira, sobretudo com as aulas teóricas e práticas que recebera do mestre. Ouvi-la falar sobre as conflitantes facetas da existência, era o mesmo que ouvir o velho professor, que possuía eloquência e saber filosófico, por esse fato, por essa semelhança de pensamento, alguns colegas já haviam desconfiado que os dois escondiam algum segredo picante. Mas a desconfiança não prosperara, pelo fato de a moça dar prosseguimento ao noivado, que logo se consumaria em casamento.

A juventude pode até certo ponto se encantar com a sabedoria ou experiência da velhice, mas a história e a literatura comprovam que no final da ópera tragicômica em que se dão os romances sempre perdem para a lucidez da vida prática, e mesmo neste Ensaio Sobre a Loucura, apesar da discussão fomentada pelo elemento lírico da paixão entre almas distintas, mesmo assim a abordagem dos fatos não poderia ser diferente, sem com isso fugir ao tema proposto por este ensaio, que ora se apresenta como romance. Contudo, já foi suficiente para se esclarecer que a loucura, nesse caso dos amantes, sendo de idades tão díspares, foi justificada, apresentar uma jovem bela e inteligente, de espírito livre como amante de um senhor decadente que já descamba ao mundo dos inválidos, como seu viril e permanente amante. Deve-se questionar, ou apontar também como loucura, que essa criatura de alma tão nobre e livre seja uma farsante na relação que alimenta com um noivo jovem e rico, embora tenhamos dito que se trata de um ser ignoto, de pessoa estúpida.

A moça iria se casar, pelo menos, era o que já estava acertado até o momento do sequestro. Isto para o senso comum não tem nada de anormal nem de absurdo, pessoas se casam mesmo sem se gostarem, o casamento há muito deixou de ser o sumo empreendimento para se alcançar a felicidade, diria uma pessoa qualquer do meio da multidão. Embora ainda possa ser o meio mais rápido de se atingir a fortuna, diriam outros menos estúpidos, mas que também concordam com alguém do meio da multidão de conselheiros comuns. As convenções sociais ainda dominam as atitudes das pessoas, a médica tinha família em outra cidade é fato, mesmo assim devia satisfação aos seus pais, embora apreciasse bastante a companhia do velho médico, não podia se esquecer das coisas práticas da vida, como ter filhos saudáveis e um futuro seguro financeiramente. Sobre a relação dos amantes, da sua ligação com o mestre, era mais coisa de afeto, de encantamento intelectual, uma vez que não seria lógico admitir que alguém no vigor da juventude dos seus vinte e poucos anos pudesse se satisfazer com as migalhas que um velho, mesmo de quase sessenta possa lhe oferecer. Mais cedo ou mais tarde a natureza cobraria seus tributos. Como somos vez após vez informados, o seu mestre era um homem velho e casado, não tinha lá muito para lhe garantir um futuro seguro, em sentido financeiro, é claro e, provavelmente, não poderia lhe dar filhos fortes e sãos. Essa observação de cunho científico é da médica jovem, que estudara o suficiente para saber que a genética não mente, e que as mazelas de um corpo velho não poderiam dar à luz outro corpo saudável. Seguindo um pensamento muito lúcido de um grande filósofo alemão, não se deve gerar filhos mais fracos que seus pais, a natureza não poderá aperfeiçoar-se sozinha, é preciso adicioná-la um pouco de razão, e razão neste contexto, só pode ser planejamento metódico sobre uma ótica materialista, sem encantamentos ou argumentos sentimentais. Sabendo do caráter do velho amante, podia-se prever também que mesmo se ela quisesse, ele não se separaria da esposa, pois era homem bem-conceituado na sociedade médica, com família tradicional e filhos adultos - pelos caminhos da lógica esse romance não poderia prosperar. Contudo, é importante acrescentar uma informação que fará muitas almas preconceituosas mudarem de opinião sobre o caráter das nossas personagens, digo dos dois, ora envolvidos nesta débil trama emocional. O casamento do médico professor não andava lá muito bem das pernas, sua esposa havia perdido o interesse sexual, e há anos os dois não faziam mais sexo. É comum, em algumas mulheres, ao atingirem certa idade, surgirem alguns tipos de doenças que dificultam ou até mesmo atrapalham levarem uma vida sexualmente normal, satisfatória. Isso pode ser observado em quase todas as mulheres, já nos homens não consta na ciência que o mesmo ocorra. Será mesmo a natureza masculina, uma vez que Deus não o pode ser? Agora está justificada a sua atitude imoral? Outra coisa, ele não era assim muito velho como parece deixar evidente a repetição desse adjetivo impróprio, tinha lá pelos cinquenta anos e chegando aos sessenta, para os padrões atuais, não era de tudo um velho gagá, mas este ensaio não é sobre a moral, e sim sobre a loucura, portanto as condutas não serão aqui mensuradas nem julgadas pelo crivo da boa moral vigente e sim pelo crivo da lucidez. Ainda sobre o preconceito, que será de alguma forma aqui exposto, não seria muito acrescentar um argumento providencial, o de que é a natureza a única culpada das diferenças que existem entre homens e mulheres, entre todos os seres. Portanto, algumas cenas para terem força moral e capacidade de mexer com a imaginação e sentimentos dos leitores, precisam, sobretudo, serem apresentadas de forma muito realística, mesmo porque não há ficção que possa esconder ou disfarçar as características humanas. E sendo o homem objeto de estudo de uma tese qualquer, quando se coloca mais de uma pessoa em um só contexto, é o mesmo que se estivesse tratando dos defeitos ou virtudes de toda a humanidade, além do mais não se pode esquecer que o narrador é sempre humano, passível de exageros e erros de avaliação psicológica, fruto das suas próprias experiências cognitivas. Pobres e ricos, negros ou brancos, loucos ou pessoas normais, todos têm defeitos iguais, sobretudo a capacidade de serem injustos. A vida é injusta, logo os homens também o são. Ser humano significa ser de certa forma ingrato, e cem por cento injusto. Portanto devemos sempre inferir que alguém preconceituoso pode ser, em outras palavras, apenas um observador das diferenças existentes. Se todos os homens fossem iguais, se tivessem, por exemplo, a mesma cor e a mesma ideologia política. Se os homens fossem de uma única raça, com a mesma crença ou descrença, provavelmente não teríamos percebido ou desenvolvido isto que hoje chamamos de preconceito. Alguém, mais reacionário do que o narrador que agora vos fala, poderia também afirmar que, a inteligência criativa não pensou bastante antes de projetar as espécies, se é que fora projetada toda esta confusão, uma vez que se tivesse produzido tudo o que há, numa grande forma de forma genérica, em grande escala, não haveria nenhuma disparidade capaz de provocar as competições e nem tampouco discriminação racial, exceto os casos de anomalias, aqueles que por acidente tivessem sido modificados, daí se explicariam as notáveis diferenças entre homens e animais, no entanto não é esse o caso, nós não fomos fabricados em série, ou será que fomos? Mas convenhamos uma coisa, como seria um mundo, onde todos fossem iguais? Provavelmente um mundo muito sem graça, sem disputa pela sobrevivência, as espécies não prevaleceriam, seriam todas extintas pelo tédio.

Conviver com as diferenças é algo infinitamente complicado, mesmo se todos fossem literalmente loucos, como já constatamos, de maneira um tanto poética neste ensaio, as espécies de sanidades seriam distintas, logo se formaria o caos, um louco mais esperto do que outro, logo menos louco, ou seria o contrário?

            
            

COPYRIGHT(©) 2022