Capítulo 2 Perdendo o controle

Concentrei as pupilas na tênue camada de vidro que me separava do ar frio pairando lá fora. O lugar era alto o suficiente para que eu estudasse com calma o movimento das nuvens densas, sinal incontestável de que o inverno cairia feito uma praga em Milão, como no ano anterior. Ainda de pé, com uma mão enterrada no bolso e um cohiba fumaçando entre os dedos da outra, caminhei até minha mesa tentando digerir os distintos acontecimentos do dia. A tormenta ia desde a reunião desgastante às más notícias que pareciam cair feito chuva em minha cabeça.

Era uma lástima como tudo parecia cooperar contra mim e aquilo estava me tirando do sério. Eu precisaria, mais uma vez, me agarrar a algo para meu próprio alívio e no meio daquela bagunça só havia uma coisa que me deixava menos tenso instantaneamente. Sangue. Costumava dizer que ser alimentado de sangue me fazia caminhar ao que mais tarde, sem remorso, se tornaria um de meus melhores momentos e eu não estava enganado. Como uma dose generosa destinada à degustação vislumbrei a morte fresca do homem que cogitou pisar fora da linha que impus a ele.O exemplo da noite, espero. Derramei em um copo uma dose da bebida mais gelada, procurando calar minha sede ao nível do silêncio trilhado pelos vívidos vestígios das súplicas do morto em minha memória, era meu deleite. Sentia o gosto do sangue que me dava o título de soldato del maestoso caos a cada gole do que se faziam os melhores dois dedos de tequila da noite. Aquela era, sem dúvidas, a melhor sensação. Estava prestes a alcançar a mesa de centro para me abastecer mais uma vez quando, no meio do lance, captei uma mulher parada com os olhos laçados a mim, era mamma Ciça. A senhora de cabelos grisalhos e olhos profundos se tornou o mais próximo de uma mãe para mim, principalmente nos dias posteriores à minha perda. Cresci envolto em suas saias enquanto meus pais se deixavam consumir por suas distintas obrigações, sempre ocupados demais durante a maior parte do tempo. Poderia dizer que essa aproximação me induziu a cultivar grande afeto pela senhora de roupas simples e costume de morar entre as panelas. - Fazendo a patrulha da noite pela casa? - Abri um sorriso expressivo na tentativa de vê-la sorrir também, foi em vão. - Só queria ter certeza de que estava bem. - Seus olhos preocupados pairavam sobre mim, carregados de um cintilar melancólico. - Estou bem, não se preocupe - falei, mantendo a máscara pacífica que já se tornava ligeiramente cansativa. Eu não estava mentindo para ela. A pacificidade, mesmo que apertada entre meus deveres, assombros e desejos, estava lá. Eu só não a ex expunha aos outros. A última coisa que eu queria era que ela voltasse a tentar me convencer de que não havia culpado na história, quando eu mesmo via o sangue da mulher que me gerou em minhas mãos. - Conheço muito bem você, Leon Vícezzo. Qual o problema da vez? - Me encarou enquanto eu deixava o rosto relaxar aos poucos. Quando ela dizia me conhecer, a verdade cintilava, nítida, em cada letra. A convivência daquela mulher com a minha famiglia era de anos. Mesmo não tendo nosso sangue em suas veias, ela fazia parecer o contrário. Era como uma beata em devoção aos Vícezzo, nos ajudou em tudo que se pode imaginar, situações íntimas principalmente. Não nego que esse ponto meu pai, o miserável, sabia administrar impecavelmente. Selecionar as pessoas ao nosso redor sempre foi quase um ritual e ele construiu pilares que nos acompanhavam até então, como uma segunda parentela. Com a governanta, na maior parte do tempo cozinheira, não seria diferente. Além de ser natural da Itália, Cecília Esposito trazia sangue dourado em suas veias por ter tido um longo período de aprendizagem ao lado de grandes capitães em cartéis quando ainda jovem. Depois de conseguir tamanho respeito no meio mafioso, ela passou a ser conselheira e zeladora das forças. Uma mulher sempre pronta para a batalha, seja onde fosse. Quando veio a nós, após uma de suas inúmeras guerras vencidas, seu maior objetivo era se desgarrar de seus últimos passos, na mudança de um cenário completamente sanguinário para algo seguro à sua idade, uma "aposen"aposentadoria" não tão completa que a forçasse parar de vez e não tão singela a ponto de não evitar os desgastes em seus dias. Isso a tornou a madre del famiglia, conselheira e atenciosa em alguns momentos, firme e rigorosa quando preciso. Traços que só ela conseguia manter equilibrados e que custava em aplicar a meu pai, seu filho adotado, como costumava chamá-lo. Ele nunca aprendeu. - Ele ainda não deu notícias, não é? - Formou uma linha com os lábios, como em todas as outras vezes. Virei o rosto para o lado, forçando o maxilar. A simples menção a Karl Vícezzo revirava meu estômago. Mamma Ciça fazia questão de me perguntar sobre ele periodicamente, como se esperasse por um ressurgimento milagroso. - Aconselho esquecer o homem que nos abandonou, mamma. - Continuei apertando os dentes. - Ele não vai voltar e eu não quero que volte. Já falei antes e vou repetir. - Fechei brevemente meus olhos, tentando controlar a raiva. - Meu pai fugiu, mamma Ciça, como um covarde. - Não diga assim, Leon. - Ela rebateu como se a minha fala ferisse sua pele. Não consegui evitar repassar as memórias do funeral da minha mãe e terminei de enterrar, ali, junto a essas lembranças, os últimos vestígios que eu tinha de sua imagem como ser humano porque, como pai ou inspiração, ele já havia morrido há exatos treze anos. - Não vamos mais tocar nesse assunto, encerramos isso aqui. - Puxei a senhora e beijei sua testa enquanto sentia seus braços circularem no meu tronco. - Durma. Não preciso ser vidente para ter a certeza de que estava até agora na cozinha. - Preparei seu ensopado. Espero que coma. - Ela passou as mãos por minha roupa, ainda inquieta, e se afastou devagar, desenhando o caminho até a escada com os pés rasteiros. Com o grande coração que tem, sei bem que ainda espera por ele, mamma. Mas eu precisava dizer. Se eu tivesse a dádiva de obter dois desejos naquele momento, primeiro desejaria vê-lo passar pelo que passei todos os dias durante esses treze anos. E, no fim, assistiria a sua morte. O combo perfeito que me entregaria a satisfação de, além de saber que sofreu, ter certeza de nunca mais ter que olhar na cara de Karl Vícezzo. As luzes do meu escritório iluminavam somente o essencial, minhas mãos sobre a mesa de madeira maciça e as palavras minúsculas mal tingidas nas folhas. Sublinhei as linhas com o dedo indicador, amaldiçoando o papel amarelado e espesso. Era uma lástima em forma de leitura. O banqueiro mais velho insistia em fazer aquilo à moda antiga. Eu já havia me imaginado matando aquele velho em cima de todos os ofícios que ele me emitiu, desde que fechamos acordo, mas isso me faria perder boa parte do investimento naquela escória financeira. Quem sabe depois de tirar tudo dele. Apoiei os cotovelos na mesa e estiquei as pernas. O cabível àquele momento, na verdade, seria o corpo nú de uma ninfeta em cima dos papéis, do pior tipo entre as mulheres, das que abrem a boceta sem se importar com os hematomas no final, com as marcas cor de sangue ou os respingos de porra, afinal essa era uma das partes relaxantes do pódio, ter poder sobre tudo e todos. Se existisse ao menos alguma coisa a que se pudesse chamar de vantagem, esse poder seria uma delas, ter ganhado um sobrenome podre e abominável, mas construído. Ser o fazendeiro numa plantação de propina e criação de gado dourado, não podia estar no roteiro de todos. Estava no meu por um preço alto, pelo meu sangue. Uma batida à porta me tirou do devaneio. Inclinei o corpo em postura, reconhecendo o soldado. - Entre, Luigi. O homem parou na minha frente com a feição submergida a nada. Não me dava sequer vestígios do que poderia ter acontecido à minha melhor colheita do ano, então instiguei o infeliz a abrir a boca. - Perdeu a língua, porra? - Luigi pigarreou antes de se colocar em postura. Coluna ereta, continência e olhos na janela atrás de mim, frescuras de um ex-militar corrupto. - À suas ordens, senhor. Eu já estava tendo o bastante naquela noite e ter que receber o relatório de um soldado em vez do subchefe era o suficiente. - Pule as formalidades. - Ele começou a falar assim que fechei a boca. - Tivemos êxito em duas das investidas. - Quais?de desvio nas cargas. - Dei a ele o pior entre minha coleção de olhares. - Perderam minhas cargas do Nórdico? - Arqueei as sobrancelhas ao infeliz, desacreditando no que ouvi. - Eram minhas melhores cargas! - Os homens não tiveram chance de avançar, senhor. - E por que diabos não tiveram chances de avançar? Quem os impediu? - Soltando um longo suspiro, ele estremeceu diante da minha carne em chamas. - Perdemos a maioria em confronto. - Quem interviu? As forças armadas? - Não, senhor. Minhas narinas dilataram, eu parecia ferver por dentro. No entanto, os próximos segundos antecederam o pior estado no qual alguém poderia me ver naquela noite. - Foram combatentes inimigos, uma investida. Eles portavam pistolas calibre .38 SPL Todos eles. - Levantou um exemplar aos meus olhos e eu os senti escurecer. Aquela era a cópia fiel do tipo de arma cujas balas acertaram minha mãe naquela noite. - Reconhecemos como uma afronta a nosso próprio sangue, senhor. A voz do soldado continuou narrando toda a onda de ira que os cobriu, destrinchando todos os acontecimentos. Mas, para mim, ela ficava cada vez mais distante enquanto eu me perdia em um mar cuja correnteza me aprisionava. Eu era do tipo que engolia a dor a seco, mastigava junto ao sangue, deglutia a afronta para vomitá-la em cima do inimigo triplamente pior, mas o que me agarrou naquele momento era diferente. Eram memórias. Memórias que eu estava lutando para enterrar. Imagens da minha perda, da ardência das lágrimas contidas quando eu ainda era um garoto, um amontoado de cenas angustiantes estacionando uma atrás da outra. Acionadas unicamente pelos malditos projéteis embutidos na pistola, suas marcas e detalhes. Captei mais do que os meus olhos eram capazes. Minha atenção mergulhou nos movimentos e no barulho nocivo do metal, enquanto o soldado gesticulava com as mãos, nas batidas de boca que formavam o zunido desesperador que causavam à minha cabeça, os mesmos zunidos que ressoavam em meio a mais sangue. Porém, não o dos soldados, o de minha madre. - Guarde isso - resmunguei ao homem, sem tirar os olhos da maldita. Luigi arrastou a pistola lentamente, com os olhos arregalados e o corpo inerte diante de mim. Sua fala seca só se estendeu depois que ele engoliu em seco. - Algo errado? - Pareço estar com algum problema? - Encarei o homem com a expressão da morte. Eu definitivamente estava com problemas. Estava por um fio. Mais uma palavra e eu o estraçalharia em um piscar de olhos. O soldado, mais que ninguém, queria se afastar de mim, da fera desgarrada de sua âncora, della bestia (da besta) sem o controle que mantinha as garras no lugar. Provei isso quando um único gesto com a mão foi suficiente para que ele desaparecesse, me deixando à vontade novamente.À vontade... que piada! Agarrei o telefone e o atirei contra a parede. Eu estava de pé em um piscar de olhos, amassando a cara com as mãos, enxugando o suor frio repentino, batendo de frente com a sensação de descontrole iminente. Tudo ao meu redor parou. O único movimento, além da cadeira girando sozinha, se fazia em minha consciência, alertando o início da minha loucura. Era mais um dos episódios antigos, um contexto que eu consegui apagar nos últimos anos, mas que estava tentando me vencer de novo, como na noite em que a vi morta. - Está me assombrando, Ághata Vícezzo? Eu já não mandei me deixar em paz? Sei que tive culpa, a maior parcela dela, mas garanto que posso pagar por meus pecados sozinho, sem essas lembranças! - falei alto, sem saber se aquilo era realmente fruto da loucura ou do álcool em meu sangue. Pousei a mão sobre o copo, pacificamente. Era a tentativa que sempre funcionou para mim, ignorar o tormento, mergulhar no vício, luxúria, poder. - Não vai vencer meus demônios. Nunca venceu antes. Eu repetia isso como uma verdade e, de fato era a minha verdade, mas o que eu não sabia era que a barreira estava perdendo força e, mesmo que eu preferisse a morte do que viver controlado por lembranças deploráveis como aquelas, eu não tinha controle. Pela primeira vez, depois de tanto tempo, eu estava perdendo o controle.

            
            

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