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Semicerrei os olhos em cima da roupa de cama. A seda reluzia sob a luz do quarto dando conforto para a mulher baleada e desacordada. Eu não sabia, exatamente, por quanto tempo estive ali, e só isso era o suficiente para fazer daquela uma situação fora do meu controle. - Sei pazzo, soldato del caos (Está louco, soldado do Caos.) - deixei o sussurro rouco escapar entredentes. Eu estava indignado comigo mesmo. E, sim, eu parecia estar louco. Na verdade, era a única certeza que tinha naquele inferno estranho. Eu literalmente não estava ali.
Só uma parte de mim a observava e era a mais infeliz que poderia me dominar, não tive dúvidas. Voltei a não reagir quando percebi que ela se mexia sobre as camadas macias. Desviei a atenção para um dos homens que conferia as janelas do quarto e, ainda assim, em minha percepção, eu conseguia ver o início de sua aflição. A mulher parecia lutar com as pálpebras, elas demoravam mais que o normal para se abrirem e, quando o fizeram, seus olhos ainda pareciam meio fechados. Observei sua reação atentamente, desde o modo zonzo de despertar à agonia que a perturbou ao me ver. Ela estava sentada sobre a cama no segundo seguinte com os olhos enormes em cima de mim. O tecido fino sob seu corpo fez um insistente barulho de arranhos quando ela se remexeu eufórica. Reparei em sua pele de tom amendoado e nos seus lábios, ambos tremiam diante de mim. A dor que não daria alívio estava lá e a fazia estremecer e fechar os olhos freneticamente. - O que... o que estou fazendo aqui? - gaguejou. Silêncio se fez ao redor enquanto o soldado cumpria minhas ordens. - Eu perguntei o que estou fazendo aqui! - Os movimentos abruptos, como eu imaginava, tenderam a um espasmo, a ninfeta gemeu apertando a ferida estancada e enfaixada no braço esquerdo. - O que foi que fez com meu braço? - Agradeça por estar sendo mantida viva - grunhi baixo o suficiente para que só ela ouvisse. Vi seu braço são se mover, ela agarrava os lençóis e empurrava o corpo à cabeceira. Os cabelos caíam em seu rosto feito cortinas e o medo que a dominava reluzia nas pupilas de seus olhos quase totalmente cobertos pela manta de fios dourado-escuros. Acenei para o soldado, me virando de costas, e ele me seguiu para fora do cômodo ao fazer um sinal que mostrava a porta. Fosse o que fosse, ignorei e saí do lugar em silêncio. Eu estava no modo automático, literalmente. Desenhei com os pés o caminho pelas escadas até a parte de baixo, me fazendo a mesma pergunta pela milésima vez, mas a puta resposta não vinha. O que aquela mulher estava fazendo em um de meus quartos? Ignorei os questionamentos. Minha cabeça estava me matando. Eu voltaria a pensar no que fazer depois, não naquele momento de tamanha loucura. Sempre confiei em mim, nunca faria uma coisa tão estúpida sem que houvesse uma razão e eu tinha cada vez mais certeza de que havia tido algum motivo plausível. Um que o efeito do álcool não me permitia encontrar no momento. - Aconteceu alguma coisa? - Pisquei algumas vezes e me virei em direção à mamma. Ela estava começando a medir meus passos ou o quê? - O habitual. - Tentei cortar a conversa. Ciça não precisava saber de tudo. Não quando se preocupava demais. Já bastava toda a tormenta que me acertava de todos os lados possíveis. Eu não contaria que estávamos sendo bombardeados a não ser que me acertassem primeiro, coisa que nunca iria acontecer, logo... Ficará no escuro, mamma. - Senti a tensão em você a quilômetros de distância, Leon. - Como eu disse, não há nada mais que o habitual. - Comecei a caminhar em direção ao outro cômodo, mas os passos de Ciça me acompanharam. - Não quer mesmo falar sobre o que aconteceu? - Não precisa saber de tudo. Ainda mais agora que já estamos com tudo sob controle. - A mulher misteriosa e ferida no quarto lá em cima faz parte do seu controle? - Me encarou seriamente, como se esperasse por respostas instantâneas. Ela não costumava me questionar sobre essas coisas porque eu sempre evitava deixar mais que o "razoável" chegar ao alcance de seus olhos. Mamma queria estar por dentro de tudo e isso tendia a colocá-la em perigo. - Converso com a senhora depois. - Saí de lá sem olhar pra trás, tendo a certeza de que ela estava me observando e questionado a si mesma que tipo de luta eu estava lutando. Nem eu sabia se ela era física ou se acontecia na porra da minha cabeça. Eu só poderia ter ficado maluco. Atirei meus sapatos para longe e mergulhei os dedos do pé no tapete felpudo do lugar, fechando os olhos devagar enquanto a imagem do cômodo se desenhava em minhas pupilas, mesmo em meio ao escuro. Embaralhei os fios de cabelo, tentei me convencer de que tudo voltaria ao normal o quanto antes, mas eu ainda não tinha nada em mãos, estava tateando possibilidades, me segurando em especulações. Atravessei a minha sala, pisoteando em meio ao breu em busca de respostas. A primeira coisa que fiz foi agarrar o telefone. Sem paciência, coloquei-me a digitar o número de Vincent. - Não. - Sua voz ressoou pelo aparelho antes que eu o cobrisse com um grito estrondoso. - Não tenho ideia do que possa ter acontecido e não conseguimos pegar ao menos um no meio da balbúrdia. - Meus olhos dançaram pelas paredes, parando fixamente no chão. - Então me explique como aconteceu! Como deixou aquela merda acontecer, Vincent? - Eu estou procurando respostas. É minha responsabilidade e vou investigar. - Fez uma pausa. - E a mulher? Percebi que a levou quando abrimos cobertura. Eles a viram junto a você? Vai tirá-la do mapa, presumo. - A única resposta que eu poderia dar a ele se resumia a que eu entregava a mim mesmo sempre que me questionava a mesma coisa: nenhuma. - Receio ter de acrescentar mais duas à lista. - Parou um pouco antes de continuar. - Todas as testemunhas foram mortas, minha filha e sua outra amiga não podem ficar para trás. - Aquele era o peso da máfia. Sacrifício quando necessário, mesmo que fosse do próprio sangue. Sem reclamar, titubear, sem firulas. Estávamos fadados a venerar e proteger a organização com a própria vida e honra, mesmo que isso significasse esquecer de nossos vínculos sanguíneos. - Levarei as duas ao Galpão G. Só preciso dar uma última averiguava no lugar. - Não retorne até conseguir explicar como deixou sua segurança ser vencida e as consequências não serão das piores. Deixei o telefone no lugar e mergulhei as mãos no cabelo, jogando-o para trás. O mais difícil naquilo tudo era chegar à mesma conclusão todas as vezes, a que me apontava que o controle estava começando a escorregar da minha mão. E isso não se parecia nem um pouco comigo. Enfrentei inúmeras afrontas desde que subi ao trono e não era só por as ter vencido que eu me sentava nele, mas por as ter vencido com maestria, especialidade e estratégia. Viver um atentado, uma emboscada ou ar-madilha vinda dos inimigos era algo normal em nosso mundo, ao nosso título, mas eu nunca me deixava ser visto na mira de um arma. Por muito tempo tinha sido somente citado por muitos, nunca visto.
O que pareciam não ter conhecimento era
de que eu nunca me deixaria escorregar do pe-
destal naquela altura do campeonato. Nem em
sonhos. Mesmo que eu tivesse em minhas mãos um império construído, sua devastação estava escancarada a quem quisesse ver. Eu o reergui, e o tirei do pó. Não seria aquele o momento em que eu perderia sua glória. Na verdade, aquilo nunca iria acontecer. Em momento algum. Me sentei na poltrona e apertei a tecla que iniciou os registros das minhas inúmeras câmeras de segurança. Eu precisava assistir a um pouco o lugar em ordem, talvez conseguiria me livrar daquela sensação. No entanto, o que as paredes vedaram aos meus ouvidos, meus olhos captaram através das telas. Que merda é essa? Ela estava lá, no batente da porta de saída, sendo segurada pelos meus soldados, que não eram poucos. Senti meu olho formigar, as pontas dos meus dedos roçaram a mesa e em um impulso eu estava de pé com a visão conturbada. Estavam executando algo que não saiu da minha boca, logo, estavam passando por cima da minha palavra. Honra e glória já fragilizadas em minha cabeça. Desci até a sala como um foguete, a imagem dos homens a prendendo com força, ignorando seu estado, me fez falar alto.
Soltem ela. Um deles me dirigiu a palavra.
- Senhor, ela vai fugir. Eu preciso repetir? vociferei, com os punhos cerrados. Não admitia constatações às minhas ordens.
Os olhos da mulher seguiram até mim, cansados e desesperados, mas persistentes. Uma vez livre, seu corpo cambaleou até o chão e ela se levantou em um andar desengonçado e se colocou a correr. Terminei os degraus da escada e abri caminho por entre os homens. Eu não precisava correr para alcançá-la. Não estando naquele estado. Vi quando ela se lançou para fora dos portões dando de cara com a rodovia. Seus fios emaranhados batiam junto ao vento. Ela parecia querer sair dali, mesmo que aquilo custasse sua vida. E, em meio ao jogo de suas pernas, ela estava atravessando a pista enquanto segurava o braço enfaixado, sem atenção ou cuidado algum.
Captei em segundos as rodas desenfreadas
de um automóvel. Era noite, o farol tinia em
meus olhos, mas ela estava de costas e aparentemente surda em meio à adrenalina.
Iria morrer e eu poderia deixar aquilo tudo
acabar ali mesmo, afinal nem eu sabia o que
aquela mulher estava fazendo em minha pro-
priedade. Eu já deveria ter dado cabo em sua
vida no caminho para casa Mas, como da última vez em que a vi em frente à morte, eu não consegui fechar os olhos. Maledetta, ninfeta! Acelerei o passo, atravessando a pista ligeiramente, e agarrei-lhe pela cintura. Estávamos na margem por um fio. Uma vez jogados ao chão, seu corpo pulsou levemente em cima do meu enquanto o vento soprava a nós dois emaranhados. Não dei a ela tempo para nada, me levantei e segurei seus ombros. O brado veio do mais profundo, eu realmente estava com raiva.
Raiva para caralho.
- Eu estou tentando manter você viva!
Ainda não entendeu isso? Aqueles olhos escuros entornaram nos meus enquanto ela tremia sob minhas mãos.
- Me manter viva? Por quê? Quem é você?
- Batia os olhos devagar, completamente tonta, enquanto suas mãos tocavam meu peito, quentes e macias.
Assim que aquela voz alcançou meus ouvi-
dos e eu me vi fazendo mais por uma estranha do que faria a qualquer um ao meu redor, percebi que havia uma coisa errada. Eu não queria matá-la ou me livrar dela. Não queria ao menos que soubesse quem eu era. E, as perguntas que acabava de fazer voltavam. Daquela vez, saindo de mim para mim. Aquela mulher havia despertado mais que pena, mais que lembranças vívidas. Eu só não sabia
o que era forte o bastante para me fazer querer mudar de rota de uma hora para outra. Por que eu queria salvá-la? Aquele definitivamente não era eu.