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A vidraria da minha pequena e aconchegante sala de estar estava sendo bombardeada pela energia nostálgica, refletida através da arquitetura esbranquiçada de beleza imensurável que tinha o poder de encher os meus olhos. Eram exatamente três horas de uma tarde nevada em Milão. Uma das que me fazia me arrastar, envolvida por cobertores, até a janela, segurando uma xícara de chocolate quente e amassando folhas alvas no colo. Inspirei fundo e fechei os olhos. Eu podia ver o porquê de eu ter insistido para que meus pais ficassem anos atrás.
Aquele era o lugar onde toda a minha paixão tinha cor, que ia além da moda e dos artigos de artesanato de luxo, era onde se tinha evidência da arquitetura, as linhas que corriam em meus rascunhos, aos pontos turísticos que dormiam e acordavam comigo, insistindo em serem impecáveis em qualquer estação do ano. Chegando ao seu ápice no inverno. Aquelas estruturas faziam meu coração bater mais rápido, me doavam espaço, traziam aconchego e uma indução arrebatadora à admiração.Poucas pessoas viam a arquitetura como arte e eu sempre tive orgulho de fazer parte dessa porcentagem. Ter os prédios, fachadas e torres como mais que simplesmente construções, lançá-los ao papel e mesclar as cores e as texturas continuava me encantando todos os dias e cada canto de Milão excitava essa alma de artista melancólica que habitava dentro de mim. Passei os dedos sobre meu rascunho recente. Era uma das trocentas versões do amontoado esculpido que eu tinha como a vista dos sonhos. Daquela vez, eu havia acrescentado mais coisas ao cenário, tudo graças ao movimento espalhafatoso e anormal das ruas. Os passos ligeiros das pessoas anunciavam mais que um dia normal, berravam a véspera do Réveillon. Momento em que o que já brilhava se tornava cegante, o que já encantava fazia embriagar. O começo dos dias em que Milão reluzia em toda sua glória. O começo do show de luzes. Um movimento chamou minha atenção, desviei os olhos das janelas assim que ouvi uma palma atrás de mim. A animação de Dandara, minha amiga, era expressiva até demais. - Buon anno, signorina! ( Feliz ano novo, senhorita!) - Ela abriu um sorriso largo. - Isso deveria significar algo? - Soltei as palavras sem o mínimo de animação, estacionando meu caderno rabiscado sobre a coxa e bagunçando os cabelos. Nota de esclarecimento: eu estava achando tudo lindo, mas só quando visto de dentro da minha casa. Dandara, com certeza, iria propor um desfrute ridículo naquela época do ano e isso envolveria música alta, álcool e homens. Ela continuou cantarolando, balançando os fios de cabelo ruivo e evidenciando o tom italiano enquanto arrastava os pés em minha direção. - Eu ouvi um "preparação para o Réveillon do século em formação"? - Seus olhos sorriram junto aos lábios. - Vamos ao bar do meu pai. - Segurou meus braços e tentou chacoalhá-los com os dela. Eu parecia um boneco de posto preenchido por ar e com isso, graças a Deus, ela desistiu, enrugando a testa e suspirando alto. - O que foi? Não está animada? Antes que eu respondesse mais alguém surgiu à porta da sala. - Você ainda pergunta? Sabe que a Bruna é um saco. - Oi pra você também, Stormy. - Arqueei a sobrancelha fingindo surpresa em vê-la. - Cara, você nunca dá trégua, né, Stormy? - Dandara rebateu. - Eu estou mentindo? - questionou, forçando um sorriso expressivo. - Bruna nunca tem vontade de nada. Sempre precisamos insistir para que ela faça o mínimo e se divirta como qualquer ser humano normal. - Ela só é modesta. Não fale como se tivesse algum problema em preferir ficar mais em casa a sair todos os dias. - Ela só é traumatizada, você quer dizer. - A mulher de cabelos escuros se inclinou sussurrando em minha direção. - Você não vai acabar como seus pais se sair de casa, Bruninha. - Ficou maluca?Dara começou a discutir com ela e eu me ajeitei sobre o estofado. Debater era inútil, sempre foi, e aquele era o cenário no qual eu vivia desde o colegial, agraciado pelo dilema da minha vida tediosa e massacrada, devido a ausência dos meus pais. Quando os perdi, em um acidente de carro, eu estava quase completando a maioridade, me virar sozinha passou a ser normal, estar em casa se tornou uma segurança. Por isso a falta de energia em sair e farrear como os outros. Eu tinha medo do que poderia estar à espreita, havia me fechado e admitia isso. Sim, houveram tentativas. Eu até tentei namorar um carinha, entretanto sempre fui trouxa e em uma relação não seria diferente. As únicas pessoas a quem eu via frequentemente eram aquelas duas. Stormy, com seus olhos saltados e ombros marcados, sempre esteve junto. Se ignorássemos o bullying constante e a falta de noção atemporal eu diria que ela tinha algum tipo de urgência em chamar atenção. Ela era o sal na nossa salada de frutas. Estranho, mas estava ali, sempre esteve. Fazia questão de viver a vida sem olhar as consequências, sempre teve especialidade em fazer amizades com facilidade, na maioria das vezes com pessoas erradas. Eu achava que por isso sempre se rotulou como a rebelde da área. Nojento. Dandara, por outro lado, sempre esteve mais próxima a mim, mesmo quando eu insistia em não sair, passávamos horas maratonando séries. Dara sempre me considerou uma irmã e já provou isso tanto verbalmente quanto emações. Ela sempre demonstrava que se importava comigo, mesmo quando eu era um saco... - Ano novo, vida nova, Bruna! - Stormy mascava um chiclete irritantemente. - Você não pode ficar pra trás o tempo todo, ser lerda no colegial era uma coisa, continuar assim depois que saiu de lá é uma maldição. - Ergueu uma sobrancelha enquanto me olhava, sorrindo. - Quando foi que transou pela última vez? - Uma bola elástica estourou entre seus lábios. - Não, não, mais simples... - Sua euforia repentina me fez fazer uma careta. - Quando beijou na boca pela última vez? - Agora já chega, Stormy! - Estou acostumada com a palhaça, Dara. Não esquenta. - E eu só estou sendo sincera, "Dara". - Ironizou o apelido. - Bruna precisa acordar. Não está fazendo jus ao sangue brasileiro que corre em suas veias. - Seu canino tiniu. Ela sabia que eu odiava quando diziam que todos nós sambávamos num mesmo ritmo. Um que eles mesmos criavam e tinham como verdade absoluta. - Sabe onde enfiar os estereótipos. - Semicerrei os olhos e a mulher ergueu as mãos em sinal de rendição. - Tudo bem, sem tocar no assunto delicado. Mas e aí? Vai ou não vai? Fechei meu caderno e ergui os olhos pela sala. Eu não via problema em sair, às vezes, mas me acomodar em meio aos meus pincéis ou cozinhar alguma coisa para passar o tempo tinha virado costume para mim, de tanto que eu preferia. - Quanto quer apostar que desta vez ela dirá que precisa repor o estoque de tubinhos de tinta? - Stormy zombou, me encarando. - Tenho o suficiente. - Usei o tom mais seco que consegui. - E vai ficar em casa "criando arte", adivinhei? - Não. - Me levantei, cruzando os braços. - Eu vou sair. - Você quer palmas? - Balançou a cabeça enquanto Dandara voltava a saltitar. - Quero que cale a boca. Pelo menos uma vez na vida. - Stormy bufou antes de revirar os olhos, se virar e sair. - Eu digo Mara e você, vilhosa! - A ruiva soltou seus gritinhos contidos, demostrando felicidade em me ver querer sair da toca. No fim eu queria acreditar que elas só estavam preocupadas comigo, mesmo não tendo necessidade alguma, e usavam de suas maneiras para me convencer. Talvez pensassem que eu afundaria num poço sem fim e nunca mais sairia de lá. Não minto, eu tornava isso um possível acontecimento devido ao isolamento constante, mas, daquela vez, estava disposta a fazer diferente. Pelo menos daquela vez. Mantive o pincel o mais longe possível do meu suéter. Não era uma missão impossível para mim. A prática de anos me entregava numa bandejinha dourada a garantia de que eu finalizaria a obra com zero manchas na roupa ou no corpo e, ainda assim, faria um trabalho perfeito. Bom, pelo menos foi o que eu desejei fazer. Tudo lindo e sem bagunça. No final, consegui sujar até a ponta da minha unha do dedo mindinho enquanto trabalhava a pintura. Mas, para falar a verdade, minha atenção estava tão ligada àquele processo que não me importei com nada além de terminá-lo. Já havia se passado tanto tempo que eu não era agraciada com tamanha inspiração ou com uma força de vontade tão grande, daquelas que me fazia querer iniciar e terminar uma coisa em poucos minutos, que eu nem me lembrava mais qual tinha sido a última vez que fiz algo parecido. E bom, aquela era eu pincelando uma tela aos quarenta e cinco do segundo tempo. Torcia para que Dandara se atrasasse só mais alguns minutos e me desse tempo de apreciar a minha nova obra e trocar de roupa. Como todos os meus desejos, aquele não aconteceu e eu me vi entre um ir e não ir até a porta depois que a campainha anunciou minha amiga no batente. - Estou indo! - Caminhei até lá com uma flanelinha, enxugando as mãos, e com o pincel entre os dentes. Eu já imaginava sua cara de espanto quando me visse naquela situação, então adiantei o passo dando a ela sobrancelhas franzidas e um sorriso torto. - Oi! - Puxei a porta revelando o caos. - É sério? - Dandara prendeu a risada enquanto me seguia até a sala, o ápice da zona. - Foi por uma causa nobre, acredite.- Não existe uma causa nobre o suficiente para que você... - Minha amiga parou quando seus olhos pousaram na minha tela. - Essa é... - "il desiderio proibito" ( "O desejo proibido")... Eu a refiz com mais alguns detalhes... - Tentei não demonstrar minha vergonha ao expor uma obra tão detalhada. - Isso é... incrível, Bruna! - Se aproximou, estudando cada canto da pintura. - Obrigada! Foi um dos meus melhores surtos artísticos, eu acho... Não dizia aquilo pelo fato de eu ter refeito uma obra antiga em tempo recorde e ainda assim ter conseguido criar detalhes diferentes, trazer cores mais vívidas, misturas que poderiam ser incompreensíveis à mente, mas que casaram harmonicamente com a obra e outras mil e uma observações que poderiam ser levadas em consideração. O ponto era que eu havia conseguido colocar, pela segunda vez, algo como aquilo para fora. Eram pinceladas que eu jurei não conseguir fazer de novo, um contraste que jurei nunca superar, mas era só olhar para aquilo que ali estava a prova de que, sim, eu era capaz. Capaz de muito além daquelas coisas, aliás. Olhar para aquela arte trazia um mix de emoções inexplicáveis que me levavam a um tour, desde os edifícios desenhados à mão à evidência do desejo carnal reprimido entre um homem e uma mulher numa noite mal iluminada. Era minha obra mais ousada e instigante, submersa ao dilema que trazia uma linha tênue entre a inovação e a originalidade, ambas, no fim, sempre necessárias em determinados períodos da vida. - Por que decidiu mudar? - Ela se mostrou curiosa, ao mesmo tempo que se segurava para não parecer invasiva. - A essência é a mesma, apenas a realcei. Eu dei a ela o que gostaria que acontecesse a mim, uma repaginada. Algo novo... - Suspirei pousando o pincel à mesa. - Ano novo, vida nova e uma versão de Bruna Kiran que ninguém nunca viu. Foi isso que eu fiz com a tela, é isso que eu quero pra mim. - Que profundo... - Sorriu, franzindo as sobrancelhas. - Pareço uma maluca, eu sei... - Parece uma mulher decidida. - Ela afirmou enquanto fazia uma varredura dos meus pés à cabeça. - E uma mulher decidida não passa o Réveillon de suéter. Muito menos um suéter sujo de tinta. - Nem se eu colocar um limpo? - Enruguei a testa numa tentativa fracassada de convencer Dandara. - Nem se você vestir a máquina de lavar. - Ela se colocou a me empurrar para o quarto. - Coloque um vestido legal. Garanto que não vai morrer congelada, os aquecedores do bar de papà estão lá para garantir isso. Assenti, um pouco sem jeito. Eu fazia parte daquele grupo de pessoas que odiava chamar atenção. Colocar algo escandaloso estava longe das minhas opções para a noite, mas Dandara estava certa. Eu deveria pelo menos usar um vestido. Afinal, era ano novo, uma festa nos esperava em um dos lugares mais altos de Milão e eu havia decidido dar uma repaginada em absolutamente tudo que eu fosse capaz de mudar. Meus hábitos eram os principais focos até então e eu estava apostando naquela saída para dar o primeiro passo, com calma, mas de modo assertivo. Na minha cabeça tudo, com certeza, correria bem. Até porque, o que poderia dar errado numa festa de réveillon com as amigas?