"- Passei aqui apenas com a intenção de me distrair um pouco e ir embora. Provavelmente jamais voltaria. Mas conhecer você, me deu motivos pra voltar"
A fala do desgraçado do Gabriel antes de passar pela porta do quarto ronda minha mente e não consigo esquecer. Taco um travesseiro na porta no instante em que ela é aberta e quem leva a travesseirada é a Camila e não a peste do Gabriel.
- Ei, o que aconteceu? - fala ela assustada. - Nice mandou subir para ver como você está. Tem mais de três horas que ele foi embora e você não desceu. Ele fez alguma coisa a você?
Bufei, precisava muito falar com alguém. Nunca falei muito sobre ele, aquele canalha que destruiu minha vida.
- O que ele fez não pode ser reparado, Camila.
- Como não? Se ele agrediu ou a humilhou ele deve ser punido.
Balancei a cabeça em negação.
- Ele me humilhou, me agrediu, mas não foi agora.
Os olhos dela ficaram confusos.
- Como assim? Você já o conhecia?
- Infelizmente sim, Camila. Ele é o pai do Kayo.
- O quê? - espanta-se e desaba na cama no mesmo momento que me levanto.
- É isso que ouviu. Ele me abandonou grávida e destruiu a minha vida. Foi muito mais fácil fugir e construir uma fábrica de laticínios com a família na Cidade aqui do lado. Foi bem mais fácil ficar rico, ficar ainda mais rico, enquanto eu tinha que ganhar a vida me deitando com homens estranhos.
Havia andado até a janela e via a água cair nos jardins. Chovia forte e por isso a casa ficou vazia hoje.
- Meu Deus, Luma, por que não nos avisou? Sei lá, dava um sinal qualquer. Não precisava ter vindo para o quarto com ele.
Me virei para Camila que ainda me olhava com seus olhos escuros arregalados.
- E ele vai voltar. Vai voltar por minha causa.
- Ele não te reconheceu?
- Não, pelo menos não pareceu. Disse que essa época do ano é muito difícil para ele e que precisa se distrair. Um amigo indicou a mansão a ele e então veio conhecer.
- Essa época do ano... coincide com a época que foi abandonada?
- Coincide com o nascimento do Kayo. Nosso filho está perto de fazer onze anos, ele deve ter feito as contas e soube o mês do ano que o menino nasceu.
- Que história, Luma. Vai continuar atendendo ele?
- Vou, quem sabe ele não solta o que aconteceu pra mudar de ideia tão rápido.
- Mas atendê-lo pra ficar nesse estado, não sei se é bom pra você. Mesmo sendo profissional, deve ter sido muito forte deitar-se com ele novamente.
Uma lágrima subiu aos meus olhos no mesmo instante e passei a mão com raiva em meus olhos.
- É minha oportunidade de tentar descobrir direto da fonte o que aconteceu. - Vou ao banheiro lavar o rosto e retocar a maquiagem. Em poucos minutos estou pronta novamente. - Vamos voltar ao trabalho.
Camila sorriu e veio atrás de mim.
- Vamos.
***
Dois dias depois
- Mamãe, eu gostei desse aqui.
Estávamos procurando um salão para fazer a festa de onze anos de Kayo. O lugar que estamos visitando agora tem tudo o que ele quer: piscina, campo de futebol, cavalo para fazer passeios e sala de jogos. É um mini sítio. Um ambiente com um aspecto bem rural, parece que até o gosto por coisas do campo ele herdou do pai.
- Então será aqui, meu filho.
- Ebaaaa - grita e corre pelo campo - Posso montar um cavalo?
- No dia poderá.
- Não, mamãe, eu quero montar agora.
- Ah, filho, isso eu não sei se o moço vai deixar.
Olho para a face do senhor que está nos atendendo em nome dos donos.
- É claro que pode, senhora. Venha, rapazinho, vou te ajudar a montar.
O senhor leva meu filho para onde os cavalos ficam guardados e eu pego meu telefone para ver o porquê de estar vibrando tanto.
Mais de dez mensagens de Nice; umas vinte de Camila e uma chamada não atendida de Janaína. O que essa mulherada quer de mim?
"O que aconteceu?" - Mando mensagem para Nice.
"Ele está aqui" - Ela me responde de imediato e eu não consigo mais respirar com a possibilidade.
"Ele, quem?" - pergunto só pra ter certeza.
"Você sabe quem, seu cliente, o Gabriel."
"Mas não está em horário de atendimento" - contesto.
"Falei isso, mas ele disse que não veio para isso. Quer só conversar com você."
Começo a pensar que possa ter finalmente se lembrado de mim ou que simplesmente descobriu algo... começo a suar frio.
"Ele disse o que quer de mim?"
"Só que quer conversar"
"Será que ele descobriu? Ou pode ter se lembrado de mim?" - Depois que saí do quarto naquela noite, contei a todas que aquele homem era o pai do meu filho.
"Se descobriu não falou nada nem deu a entender." - Suspiro e penso no que vou escrever.
"Não posso ir agora, estou alugando o salão para a festa do Kayo"
Nice visulisa, mas não responde. Um minuto depois começa a digitar.
"Ele disse que vai encontrar com você."
Fico nervosa imediatamente.
"Diz a ele que não precisa e que ele pode voltar mais tarde"
Mais uma vez ela demora um pouco a responder.
"Ele já está na porta só esperando você dar o endereço"
Meu Deus, como ele é insistente. Vejo Kayo passar montado no cavalo com o senhor segurando a rédea para ele e guiando o animal. Meu filho acena para mim, orgulhoso.
Aceno de volta.
"Estou no salão das Flores, Kayo está encantado com o lugar. Até montou cavalo."
"Ele disse que sabe onde é que está indo aí. Eu queria muito ver Kayo montado a cavalo"
"Verá no dia da festa. O que será que ele quer comigo?"
"Estou tão curiosa quanto você"
Vejo que chega mais mensagens, mas não vou abrir agora. Estão só curiosas.
Fico nervosa porque Gabriel vai chegar e eu não sei o que fazer. Não posso distratar um cliente e não sei se ele descobriu alguma coisa sobre nosso passado. No mesmo instante Kayo vem correndo na minha direção e tomo consciência que meu filho conhecerá o pai sem saber quem ele é de verdade e o mesmo posso dizer de Gabriel. Fico ainda mais nervosa e minhas mãos começam a suar outra vez.
- Você está bem, mamãe? - meu filho questiona e me olha curioso.
- Estou bem, filho, só estou com fome. Quer ir almoçar?
- Também estou com fome, onde vamos?
- Ah, não sei, você escolhe.
- Na pizzaria.
- Não pode almoçar pizza, filho. Que tal uma lasanha bem gostosa ou uma macarronada?
- Eu quero lasanha com muito queijo.
- Tudo bem, então vamos comer lasanha. Só vou acertar tudo com o senhor Manoel.
- Está bem - reponde animado.
Começo a pensar na possibilidade de ir embora antes que Gabriel chegue. Acerto tudo o que preciso com o senhor Manoel sobre o aluguel do salão e vou para o carro.
- Vem, meu filho, quer comer lasanha fria? - implico para que ele venha logo, pois está encantado com o lugar.
- É claro que não, mãe. - Ele se acomoda ao meu lado. Como já tem tamanho o suficiente, Kayo já senta no lado do carona.
Quando o portão se abre, vejo um carro estacionado. O senhor vai até o carro dele e então Gabriel sai do veículo, porém, antes que pergunte por mim, eu saio do meu carro. Nossos olhos se encontram e um lindo sorriso se expande pelo rosto dele.
- Oi, Lu.
O senhor percebe que nos conhecemos e se afasta, mas não quero perder tempo aqui.
- Oi, Gabriel. Me desculpe, mas já estava de saída.
- Estamos indo comer lasanha - Escuto a voz do meu filho. Tenho medo do que pode acontecer. - Você quer vir conosco?
Convidar Gabriel para almoçar é a última coisa que passou por minha cabeça. As coisas podem sair do controle rapidamente. Torço para que ele não aceite.
- É claro que aceito, se a sua mãe não se importar.
Ele fala tão galante, parece tanto com aquele Gabriel em quem eu confiei minha vida e meu futuro, porém por causa dele acabei onde estou. Vou até ele, não posso me ferir ainda mais.
- Me desculpe, Gabriel, mas o que temos é profissional, e... - Mas ele me cala colocando um dedo sobre meus lábios.
- Só é profissional no seu local de trabalho, e eu queria muito conhecer a Lu que é uma mulher batalhadora... - ele desvia o olhar para o meu filho ao lado da porta do carro - que é uma mãe carinhosa; a mulher que existe por trás dessa máscara de profissional.
- O que queria conversar comigo? - Consigo falar.
- Queria te convidar para jantar - Ele olha para meu filho novamente - Mas almoçar está de bom tamanho, por hoje. - Ele foca em meus olhos. - Você tem olhos lindos... me lembra os olhos de... alguém. - Seu sorriso é um pouco triste. Sinto meu coração se apertar.
- Vamos almoçar então - Me afasto de seu toque.
Volto para o meu carro e me sento ao volante. Meu filho volta a se sentar e logo questiona.
- Quem é ele, mamãe?
- Só um conhecido, filho. Ele vai almoçar conosco.
Fico pensando em como será esse encontro de pai e filho. Será que mesmo sem se conhecerem haverá uma conexão entre os dois?
- Ele parece ser um cara legal.
- É, um cara muito legal.