Desço as escadas às pressas, antecipando o que poderia ser. Minha mãe, Joaquina, é vítima de uma forma precoce e rara de Alzheimer, que começou a afetá-la em seus cinquenta e poucos anos. Agora, aos sessenta, ela luta contra a névoa que rouba suas memórias. Como filho, meu coração se aperta ao vê-la nesse estado, mas o mínimo que posso fazer é garantir que seu tratamento seja adequado, pois cuidar dela com todo meu amor é a minha missão.
Ao chegar à cozinha, deparo-me com sua angústia ao lidar com a sonda de alimentação. Uma sonda enteral, que vai do nariz até o estômago, pois a demência avançada a fez esquecer até mesmo como se alimentar adequadamente.
Com todo cuidado, envolvo-a em meus braços, sentindo a fragilidade de seu corpo envelhecido. Nesse momento, uma lembrança aflora em minha mente. Lembro-me de quando eu tinha apenas 4 anos e engasguei com um pedaço de carne. O desespero tomou conta de mim, e minha aflição só dificultava o processo de desobstrução. Mas minha mãe, com sua voz calma e doce, me tranquilizou aos poucos, até que eu conseguisse desengasgar. Agora, é a minha vez de repetir o processo, mas é ela quem se encontra em um estado vulnerável. Sussurro palavras reconfortantes, acalmando-a enquanto readéquo a sonda.
- Pronto, Dona Joaquina, agora está tudo bem - digo a ela, enquanto seus olhos vagos encontram os meus. Minha mãe foi uma mulher jovem e bela, porém abandonada por meu pai, que tinha duas amantes: ela e a mãe do meu meio-irmão, nascido no mesmo ano que eu, o qual eu nunca conheci.
Enquanto penso na infância marcada pela ausência de meu pai, percebo que seu nome ainda está presente em todos os meus documentos, embora ele tenha agido como se não me conhecesse quando nos encontrávamos nas festas da empresa em que trabalhavam juntos.
Minha mãe foi uma mulher guerreira que de sempre o possível e o impossível para me dar o melhor. Tive a oportunidade de estudar em escola privada, universidade privada e hoje tenho uma vida confortável graças aos seus esforços e ao incansável auxílio da minha vozinha, Dona Eva, que também já está sofrendo com a passagem do tempo.
...
Após o tumulto matinal, finalizo minha preparação vestindo uma calça jeans, sapatênis e uma camiseta. Dou uma aparada na barba e saio a pé. Moro próximo ao meu local de trabalho, e um carro ainda não está nos meus planos.
Iniciei minha jornada na World Corporation aos 18 anos como estagiário, e com dedicação e habilidade, fui conquistando espaço gradativamente. Lembro-me até hoje do meu primeiro dia como estagiário do setor administrativo, eu estava no início da faculdade de administração e não sabia fazer absolutamente nada, ficava feliz com cada folha que solicitavam para eu fazer cópias, ou quando me mandavam direto para organizar o arquivo morto, sempre gostei de me sentir útil, e foram pequenos detalhes do meu dia-a-dia que me fizeram chegar onde estou.
- Bom dia, Sr. Lino - cumprimento o porteiro com alegria, recebendo um sorriso caloroso em resposta.
- Hoje será um dia especial, meu chefe! - Sr. Lino responde, repetindo sua frase clássica de todas as sextas-feiras. Mal sabia eu que esse dia seria decisivo para o rumo da minha vida.
Enquanto aperto os botões do elevador, sentindo a música animada ecoar pelo espaço, não pude deixar de lembrar que ainda não havia conseguido conferir as notícias sobre meu amado Campo*. "Bem, terei que esperar até o horário do almoço", penso, resignado.
Ao chegar ao 12º andar, sou diretamente chamado para a sala do meu diretor. Matheus Amparatto, um velho amigo, com quem compartilhara momentos divertidos e boas histórias antes de ele se casar, ele me recebe com um sorriso.
- E aí, Gabizinho, como você está, meu querido? - cumprimentou Matheus cordialmente.
- E aí, meu irmão, tudo tranquilo. - Respondo, evitando mencionar as fortes emoções que havia vivenciado pela manhã com minha mãe.
- Gab, hoje temos a seleção para a vaga de auxiliar administrativo. Os selecionados irão trabalhar diretamente com você, e você será responsável pelo crescimento deles na empresa. Preciso muito da sua opinião sobre os candidatos - explicou-me Matheus.
- Claro, Matheus, pode contar comigo.
- Às 9h os candidatos já estarão na sala de reuniões. Podemos chegar juntos? A psicóloga e a gerente de Recursos Humanos estarão lá organizando tudo - sugeriu Matheus.
- Com certeza, Matheus. Mal posso esperar! - Respondo com um tom irônico, o que fez Matheus soltar uma risada.
Enquanto passava a primeira hora de trabalho, organizei meu cronograma ao som empolgante de Bon Jovi. Adoro a liberdade que tenho na empresa para trabalhar de forma autônoma, o que certamente contribuí para meu bom desempenho. Enquanto observo os candidatos chegarem e se sentarem na sala de espera, decido me aproximar para interagir com eles. Eram quatro candidatos, dois rapazes e duas moças, todos aparentemente na faixa dos vinte anos de idade. No entanto, foi a chegada da quinta candidata que chamou minha atenção, causando alvoroço e risadas na equipe da higienização.
- Misericórdia, estou esbaforida! - exclamou a moça, com longos cabelos castanhos escuros e pele branca como a neve.
- O que houve, menina? - perguntou Dona Ida, uma das funcionárias responsáveis pela higienização.
- Devo ter subido uns dez mil quilômetros de escada. Será que cheguei ao céu? - brincou a moça, arrancando mais risadas.
- Menina, por que não usou o elevador? - perguntou Dona Ida, confusa.
- Ué, tem elevador? Onde estava que eu não percebi? - ela disse, fingindo pensar, o que fez Dona Ida explicar que o elevador era a primeira coisa que se via ao entrar na World Corporation.
- Meu pai, acho que estou precisando de óculos. Mas eu me acostumo - disse a moça, rindo de si mesma.
A psicóloga da empresa deu as boas-vindas aos candidatos e deu início à primeira etapa da seleção, que consistia em uma breve apresentação de cada um. Continuei observando de longe, até que uma voz familiar respondeu à psicóloga, chamando sua atenção.
- Eu posso começar? - disse a voz, que parecia ser da moça engraçada que chegou esbaforida.
- É claro. - Permitiu a psicóloga.