"Viro-me depressa, abro o vidro da janela do carro depois que um tiro acerta o espelho lateral. Coloco metade do corpo para fora, e tento atirar neles. Harry está dirigindo rapidamente, tentando desviar dos disparos. Ele faz uma curva rápido demais e perco o equilíbrio.
- Cuidado, Grace - Harry avisa, focado na estrada. O vento sopra em meus ouvidos quando acerto um tiro em um dos pneus. Depois que atinjo o segundo pneu, volto para dentro do carro, respirando pesadamente. Três tiros são disparados na minha direção e eu me abaixo.
Há uma pausa. Volto meu olhar para trás e vejo o carro diminuir a velocidade.
- Harry... eles estão parando - comento.
- Você atirou nos pneus - murmura.
- Não. Eles só pararam - explico, confusa.
No silêncio que se seguiu, escutamos o barulho do vento, soprando fortemente. Mas esse silêncio foi mais curto do que eu esperava. Ouvimos um alto woosh, e então vejo uma chama brilhante vindo até nós. Eles nos lançaram um explosivo. E está vindo para o lado de Harry. Meus olhos se arregalam quando eu grito:
- Harry!
Mas é muito tarde. O carro é impulsionado contra uma árvore. Tudo acontece muito rápido. Meu corpo é lançado para frente e atinjo o painel com a cabeça. Minha visão borra. Engasgo com a falta momentânea de ar. Viro a cabeça devagar para olhar Harry. Está inconsciente, com a cabeça no volante. Não consigo ver o rosto dele. Suas mãos estão sangrando e vejo pedaços de vidro cravados em sua pele. Solto um gemido de dor e percebo o carro em chamas. A fumaça começa a me sufocar.
- Harry... - sussurro, tentando manter os meus olhos abertos. Sinto sangue quente escorrer do meu nariz.
A porta do meu lado é aberta. Eu grito o mais alto que posso. A força e a intensidade do meu grito queimam a minha garganta.
- Harry! - grito uma e outra vez, lutando contra as mãos desconhecidas que me puxam para fora do carro. Mas não faz diferença alguma. Sou arrastada para fora de um veículo em chamas e para longe de Harry. Ouço alguém dizer:
- Certifique-se de que ele esteja morto.
E um tiro é disparado. Meu grito ecoa no ar. Minha dor gradualmente começa a me dominar, me puxando para a inconsciência, um sono perigoso e indesejado."
- Não! - grito, acordando. Calma, digo a mim mesma, suando e tremendo. Foi só um sonho. Na verdade, foi um pesadelo, mas não é real. Enquanto inspiro e expiro, tentando controlar a minha respiração, meu celular toca.
- Pensei que você tivesse ido embora sem se despedir - Sara diz quando atendo. - Ocupada demais fazendo as malas para responder as minhas mensagens?
- O quê? Não! Você já está com saudades de mim? Eu não fui ainda - dou risada. Sara é minha única amiga aqui em Curitiba. Conhecemo-nos no colégio, anos depois que vim morar na capital, quando tínhamos quinze anos, e é minha melhor amiga desde então.
- O que houve? - O tom dela fica sério de repente. Ela sempre consegue perceber quando tem algo acontecendo. É muito irritante em alguns momentos. Suspiro.
- Sonhei com ele de novo. Só que desta vez não foi romântico... - conto para ela sobre a noite horrível que tive, vendo o amor da minha vida morrer tragicamente. - Sei que sou maluca por continuar pensando nele assim - digo rapidamente. - Você não tem que me dizer. Nós já tivemos essa conversa um milhão de vezes antes.
Sara suspira.
- É só que... você tem um novo começo se aproximando, Grace. Caramba, a sua vida vai mudar completamente! Pensa nisso. Talvez seja inteligente, sabe... namorar um cara com quem você pode, tipo, ficar de verdade, sabe? E talvez esses sonhos nunca mais voltem...
- Mas parece que é real, Sara... sinto que é.
- Sabe o que quero dizer. - Sara responde, impaciente. - Alguém que você possa ter de verdade. E apresentar para a sua família. Pensa bem! Você vai para Londres, amiga! E vai conhecer britânicos lindos! E vai poder beijar um deles num canto escondido da escola que você vai estar. Alguém que seja tipo, real.
Real. A última palavra fica se repetindo na minha mente. Ela tem razão. Não importa como eu me sinta em relação a Harry, ainda existe um problema: todas as noites com Harry, desde que me lembro, foram sonhos.
Porque Harry é o garoto dos meus sonhos, e só dos meus sonhos.
Ele não existe de verdade.
É claro que estou plenamente consciente de que soa cem por cento louco estar apaixonada por alguém que nunca conheci e que não é real. Mas, já que não consigo me lembrar de uma noite em que eu não sonhasse com Harry, pode ser difícil esquecer completamente. Os lugares e as histórias nos sonhos mudam, mas Harry é constante, me recebendo em cada sonho com seu lindo sorriso e seus olhos verdes deslumbrantes.
No entanto, sei que isso não pode durar para sempre. Então, tomei a decisão de sair do país e mudar minha vida.
Consegui uma vaga de au pair, vou morar na casa de uma família britânica trabalhando como babá e estudando durante a noite, e tudo já foi pago pela matriarca da família. O dinheiro que irei receber com o trabalho, irei enviar para a minha mãe aqui no Brasil. E, penso que, talvez, saindo da rotina e mudando praticamente tudo à minha volta, os sonhos parem e a minha mente possa, enfim, descansar.
Em outras palavras: estou fugindo, só que desta vez, os livros não serão a minha fuga como foram durante todos esses anos.
***
Minha mãe me levou até o aeroporto de Curitiba. Gabriel, meu irmão, estava triste no banco de trás do carro.
- Grace - ela me disse pela milésima vez antes de eu entrar no avião. - Você não precisa fazer isso. Eu já consegui um emprego, vai dar tudo certo.
Minha mãe não se parece comigo. Tem olhos e cabelos pretos, exceto pelas sardas no rosto. Senti um espasmo ao encarar os olhos dela. Como poderia deixar minha mãe? Ou meu irmãozinho? Claro que eles podem viver muito bem sem mim, mas ainda assim...
- Eu quero ir - digo com convicção.
Eu preciso ir. Precisamos desse dinheiro.
- Verei você logo - insistiu ela. - E pode voltar para casa quando quiser.
- Não se preocupe comigo - pedi - vai ser ótimo. Amo você, mãe.
Abracei os dois por um tempo, então fui para a área de embarque e não olhei para trás.
Quando o avião pousou em Londres, quinze horas depois, encontrei Hannah no portão do aeroporto. Tínhamos combinado esse ponto de encontro na última chamada de vídeo que fizemos. Ela estava tentando fazer malabarismos com duas filhas, três mochilas da Disney, um carrinho de bebê e uma barriga de grávida.
Ela é uma mulher de temperamento forte, independente, e não precisava de qualquer ajuda... até que o carrinho tombou e Katherine começou a chorar, Jenny deixou cair sua tiara com as orelhas do Mickey e, quando se abaixou para pegar, derramou seu milk-shake.
Eu tinha trazido poucas malas. Minha mãe me ajudou a comprar roupas melhores para trazer, mas ainda assim, tinha pouca coisa. Então, consegui ajudar Hannah e peguei o carrinho.
Caminhei com ela e as meninas até à Starbucks. Sentamo-nos em uma mesa enquanto a mãe delas entrou na fila para comprar outra bebida gelada para Jenny. Em questão de segundos, eu sabia que Katherine era tímida, e Jenny não era. Ouvi mais histórias sobre sua viagem para a Disney em cinco minutos do que eu pensava ser possível.
- A mamãe vai ter outro bebê. - Jenny diz enquanto coloca gominhas em sua boca. - Mas não temos um pai.
Eu não sabia como responder. Crianças geralmente não têm um filtro, elas dizem algumas coisas bizarras, então apenas respondi:
- Tudo bem. Nem todo mundo tem um pai.
Ela sorriu. Estava perdendo dois dentes da frente, o que tornou seu sorriso muito mais adorável.
- Isso é o que diz a mamãe - responde ela.
Hannah voltou para a mesa com a nova bebida da Jenny e um café para mim. Ela parecia exausta. Eu não poderia imaginar, estavam voltando de uma viagem para Disney hoje. Nos quinze minutos em que eu me sentei com elas, aprendi muito, principalmente de Jenny, e sua mãe estremecia quando ela abria a boca.
Hannah é editora executiva da revista Harper e ela está feliz solteira. Usou o mesmo doador para cada uma de suas gestações. Quando fez trinta anos, ela percebeu que não poderia esperar pelo homem certo, então decidiu fazer uma família por conta própria. Fiquei completamente admirada. Nunca conheci uma mulher tão independente.
Só precisou uma viagem para levar todas as minhas coisas para o andar de cima. A casa é grande, bonita e aconchegante. Fiquei com o quarto que tinha janela para o jardim de trás. Com o piso de madeira, as paredes de cor azul claro, o teto branco e as cortinas cinza.
Deixaram-me sozinha para desfazer as malas e arrumar as coisas no quarto. Hannah me disse que ela e as meninas iriam descansar da viagem e que eu poderia fazer o mesmo. Quando terminei de colocar as minhas roupas no guarda-roupa, peguei minha bolsa e fui ao banheiro para um banho.
Olhei para meu rosto no espelho enquanto penteava meu cabelo embaraçado e úmido. Estava pálida, sem cor. Encarando meu reflexo, fui obrigada a admitir que estava mentindo para mim mesma. Não era só fisicamente que eu nunca me encaixaria. Se eu não consegui no Brasil, quais eram as minhas chances aqui?
Eu não me relacionava bem com as pessoas da minha idade. Talvez a verdade fosse que eu não me relacionava bem com as pessoas. Até minha mãe, que era a pessoa mais próxima de mim no planeta, nunca estava em harmonia comigo.
Não dormi bem naquela noite, mesmo depois de ter falado com Sara, com minha mãe e Gabe no telefone.
***
Uma semana depois e estou começando a aprender como é a rotina dessas garotas. São sete horas da manhã de segunda-feira e estou na cozinha preparando o café para elas. Depois de terminar, eu ainda tenho quinze minutos para ver se Katherine se vestiu. Ela está naquela idade que quer escolher suas próprias roupas. Na maioria das vezes, eu a deixo escolher, porque gosto da ideia da liberdade de expressão. Mas ela tem três anos e quer usar seu tutu em todos os lugares. Houve momentos em que tive que convencê-la do contrário.
Jenny geralmente se veste enquanto estou fazendo o café da manhã. Ela nunca consegue decidir, por isso temos um desfile de roupas em potencial entre colheradas de cereal. Aos sete anos, ela tem mais roupa do que eu poderia imaginar. O resto do dia é dividido entre aulas de balé, ginástica, aulas de natação, música e, no meio disso, o almoço. São crianças ocupadas. Elas têm um calendário social maior do que a maioria dos adultos.
Jenny senta-se na banqueta do balcão da cozinha e sorri para mim. Ofereço a taça de frutas para ela, que pega um morango e coloca na boca, sorrindo enquanto o suco escorre pelo queixo.
- Você escovou os dentes? - pergunto.
Ela pega uma fatia de pêssego e responde:
- Você sabia que a babá da Emily não a faz escovar os dentes?
Cruzo os braços e estreito os olhos para ela.
- Eu acho que vou ter que falar com a babá da Emily sobre a importância da higiene bucal.
- Mas a pasta de dentes faz as coisas terem um gosto estranho - Jenny faz um beicinho.
Coloco o iogurte para ela:
- Termine seu café da manhã e, depois, suba as escadas e escove os dentes.
Jenny franze a testa, mas continua comendo as frutas. Eu não sou rigorosa com a maioria das coisas, mas escovar os dentes é importante.
Eu estava colocando a minha tigela de cereais na máquina de lavar louça quando Hannah entra na cozinha com Katherine em seu quadril. Ela está grávida de quatro meses do terceiro filho, mas pelo tamanho da barriga, parece ser mais. Nós não sabemos se é um menino ou uma menina, e nós não vamos saber até o nascimento. As meninas estão muito firmes em ter uma irmãzinha, mas acho que Hannah quer um menino.
- Tem granola hoje? - Hannah pergunta antes de beija a bochecha de Jenny.
- Sim, eu fiz! - exclamo, alegre. - E já coloquei um pouco em sua lancheira com sua vitamina e o suplemento de ferro. Também coloquei nozes, porque você precisa de seus ômega-3. Ah, e há um cupcake porque, bem, todo mundo precisa de um cupcake.
- Eu não sei o que eu faria sem você, Grace.
Essa é a coisa favorita sobre esse trabalho: o fato de que eu sou necessária. Jenny e Katherine precisam de mim. Hannah precisa de mim. Eu gosto disso. Eu gosto de cuidar das pessoas.
Hannah saiu pouco depois que Jenny terminou o café da manhã. Ela tinha um motorista esperando para levá-la para uma reunião com almoço em algum hotel de luxo no centro de Londres. Isso significa que ela vai voltar para casa muito mais tarde que o normal.