Harry sorri, me dá um beijo na bochecha e um grande empurrão. Começo a cair, gritando como uma louca. Noto que estou caindo rápido demais, e minha visão torna-se um borrão.
- Harry? - grito.
- Uhuuu! - Ouço ele gritar, enquanto surge, disparando atrás de mim.
Ele parece estar prestes a me ultrapassar, mas, em vez disso, estende um braço, puxa a minha mão na sua direção e só a solta para abrir o paraquedas.
De repente o cenário muda, não sinto mais sua mão na minha e não o vejo em lugar algum. Estou sozinha, em um campo verde, olhando para todos os lados. Ele foi embora.
- Harry? Harry! - grito, desesperada. Então sinto seus braços me envolvendo.
- Calma, amor. Estou aqui. Sempre aqui."
Acordo com um alarme que soa no corredor. Uma voz nos informa que temos que nos preparar para o café da manhã, pois em trinta minutos o instrutor irá chegar. Levanto-me, lavo meu rosto, que está inchado de tanto chorar, amarro o cabelo em um rabo alto, visto uma calça e uma camiseta, ambas na cor preta que possuem um pequeno símbolo laranja no canto. O coturno é preto também.
Quando abro a minha porta, a porta em frente também se abre e Harry sai, com o cabelo escondido em um boné, vestindo roupas iguais as minhas. Ele vai andando na frente pelo corredor e para na fila que vai pra cozinha.
Neste momento, o homem dos meus sonhos está pegando um prato e se direcionando para a fila do café da manhã, e minha tarefa hoje é ver o que ele come. Porque, se eu descobrir que ele tem as mesmas preferências do Harry dos sonhos – odeia azeitonas, ama pizza e tem uma queda por doces - vou saber se estou mesmo sonhando com uma pessoa real...
Fico atrás dele na fila. Bato os dedos em meu prato com nervosismo, sentindo alívio ao chegar aos pedaços de banana. Isso!
Uma vez, em um dos sonhos, reclamei para Harry que era ruim quando minha mãe colocava canela na banana para eu comer.
- Na verdade, eu gosto de banana com canela - disse ele, enquanto nos sentávamos no campo de tulipas na Holanda, em um piquenique, assistindo a um pôr do sol maravilhoso. - Mas você já provou com mel? Aqui. - Ele colocou um pedaço na minha boca, sorrindo enquanto eu mastigava.
Olho para Harry com o canto dos meus olhos, aponto para os pedaços de banana e pergunto:
- Você já comeu banana com mel?
Por favor, diga que sim.
- Não - ele responde, casualmente.
Mas nem sequer espera pela minha resposta e segue para a fila do café, enquanto meu coração afunda.
- E a Holanda? - insisto, quando chego à mesa do café. - Já esteve lá?
Harry enfim olha para mim, mas a expressão em seu rosto não é exatamente a que eu esperava. É hostil. Desvio o olhar, coloco um copo em posição para servir o meu café, mas estou tensa e acabo derramando o líquido quente no meu prato e um pouco na mesa. Suspiro.
Harry ainda está olhando para mim com o cenho franzido, mas dessa vez percebo que tem um vestígio de sorriso começando a aparecer em seus lábios, como se ele estivesse forçando sua boca para não rir.
- O quê? - pergunto.
- Nada. Você faz muitas perguntas.
- Então, Holanda? - pergunto de novo.
- Nunca estive.
- França? Espanha? - insisto, lembrando de nossos passeios turísticos nos sonhos.
- Não mesmo.
Respiro profundamente.
O que estou fazendo? Ele com certeza não é a pessoa que eu desejo com todas as forças que seja. Quantas vezes ele precisa me ignorar antes de eu colocar isso na minha cabeça? Harry não é o mesmo cara que eu sonho. Não é possível.
Sento-me na frente de Hirma e Angela, que sorriem para mim e sorrio de volta. Harry senta do meu lado. Balanço a cabeça para afastar os pensamentos sobre a proximidade dele. Não é como se ele me nota ou gosta de mim.
Meu ombro arde, e afasto um pouco a camiseta para dar uma olhada. Está ferido, mas não consigo lembrar como isso aconteceu.
- Nossa, que escândalo! A puritana está exibindo um pedaço do corpo!
Levanto a cabeça. Devon aponta para mim, rindo debochadamente. Ouço mais risadas. Ele já deduziu que sou uma puritana? E por que ele está rindo de mim? Meu rosto esquenta, e arrumo a camiseta.
- Vamos ver quanto tempo você vai durar aqui, docinho... - continua Devon. Seu riso me deixa nervosa. Penso em responder algo, talvez para convencê-lo de que vou durar sim, mas as palavras me escapam. Não sei por que, mas não quero que Devon olhe para mim mais do que já olhou. Na verdade, não quero que ele olhe para mim nunca mais. Devon continua a me provocar: - Me deixa adivinhar: segunda é dia do clube do livro, terça é noite do jogo em família, quarta é dia do estudo bíblico, e quinta você se encontra com o grupo de costura para fazer manta para os velhinhos. Cheguei perto?
Não é a primeira vez que me ridicularizam sem saber quem eu realmente sou, mas - não sei por que - talvez porque pareça tão incompatível com o local onde estamos, dessa vez é mais desanimador. Não olho para ele.
- Dá para você calar a boca? - Angela diz, em um tom agressivo. Gosto dela.
Há um silêncio.
- Espera um pouco - Devon continua e, por algum motivo idiota, eu levanto o olhar, supondo que ele queira pedir desculpa. - Quando é que você tem tempo para fazer o sopão?
Ouço várias risadinhas, que se calam quando Harry soca a mesa com força, assustando a todos. Ele olha furioso para Devon:
- Mas que porra!? Será que você não consegue calar a merda dessa boca?
Devon arregala os olhos para ele.
Olho para minhas mãos.
- Hey, vamos nos acalmar e começarmos a comer? - Natan diz calmamente. Todos começam a comer em silêncio.
Meus olhos avistam um relógio na parede, e vejo que são sete horas da manhã, mas ainda não tenho ideia de qual é a data de hoje.
Natan cutuca meu lado e olho para ele, que com um pequeno sorriso, pergunta:
- Está bem, querida? Conseguiu dormir?
Franzo as sobrancelhas. Por que ele se importa? Seja o que for, gosto dele. Sorrio em resposta, acenando que sim, ainda não confiando em falar, porque acho que vou gaguejar ou minha voz não vai sair.
Quando estamos terminando de comer, ouvimos um clique na porta de entrada, que se abre automaticamente. Então as grades que fecham as janelas e portas sobem, trazendo a luz do sol, e vejo que estamos em uma clareira no meio da floresta, só há árvores e montanhas à nossa volta, um lindo gramado na frente e, na outra janela, vejo um campo que parece ser de treinamento, com vários equipamentos, e um galpão ao lado. Sinto um nó no estômago, ocasionado pelo medo.
Alguns levantam para olhar à nossa volta e quando Natan corre para a porta, um homem alto, bonito e musculoso aparece, vestindo calça preta e uma camiseta preta, os braços cruzados ao olhar para nós seriamente.
- Bom dia, pessoal. Meu nome é Will, e serei o instrutor de vocês.
- Podemos saber por quê? Por que seremos treinados? - indaga Alex.
- Sinto muito, mas estou na mesma situação que vocês. Também fui capturado e obrigado a seguir as ordens deles, caso contrário... - Will suspira e continua: - Não tenho escolha, eles estão no controle. - Sua expressão muda: - Tudo bem, vamos começar! Sugiro que vocês se esforcem o máximo, porque suas vidas dependem disso. E a minha também. Sigam-me.
Ele sai porta afora e o seguimos.
Contornamos a casa e vejo que homens armados cercam a clareira. Chegamos na parte de trás onde fica o galpão. Will para em frente a uma porta de madeira e cruza os braços.
- Existem algumas regras básicas - diz ele. - Vocês devem estar na sala de treinamento todos os dias. Começará às oito da manhã e terminará às seis da tarde, com um intervalo para o almoço. Não tentem sair deste lugar, ele é fechado com um muro de mais de cinco metros de altura e uma cerca elétrica logo acima dele. E só a tentativa já garante a sua morte.
Entramos no galpão e olhamos ao redor. É impressionante a quantidade de equipamentos para os treinos. Will vai até o final onde ficam vários tipos de armas em uma mesa e há alvos desenhados na parede.
- A primeira coisa que vocês vão aprender essa semana é como atirar.
Will pede para cada um pegar uma arma e se posicionar na frente dos alvos.
- Observem com atenção! - ele grita. Ele encara a parede na qual estão desenhados os alvos: um quadrado para cada um de nós, com três círculos pretos no centro. Will separa os pés, segura a arma com ambas as mãos e atira. O estrondo é tão alto que machuca meus ouvidos.
Estico o pescoço para ver. A bala perfurou o círculo central.
Olho fixamente para a arma em minha mão. Nunca esperei um dia segurar e, muito menos, disparar uma arma. Ela me parece perigosa, como se eu pudesse ferir alguém apenas por segurá-la.
Separo os pés e seguro delicadamente a arma com as duas mãos. Ela é pesada e difícil de manusear. Aperto o gatilho com força. O som fere meus ouvidos e a força do disparo me empurra para trás. Tropeço, apoiando-me na parede à minha esquerda para me equilibrar. Não sei onde foi parar a bala, mas sei que não foi nem perto do alvo.
Atiro mais uma vez, e mais outra e outra, e nenhum dos tiros chega perto. Natan, que está ao meu lado, sorri e diz:
- Calma, Grace. Você vai conseguir.
Cerro os dentes e encaro o alvo, decidida no mínimo me manter firme desta vez. Se eu não for capaz de aprender nem a primeira lição que eles nos deram, como serei capaz de chegar ao final do treinamento? Ou melhor, como sairei daqui viva?
Aperto o gatilho com força, e desta vez estou preparada para o empurrão que a arma dá e meus pés permanecem firmes no chão. Vejo um buraco de bala no canto do alvo, e ergo as sobrancelhas ao olhar para Natan.
- Viu como eu estava certo? - Natan diz. Esboço um sorriso.
Depois de incansáveis tentativas, consigo acertar o centro do alvo, fazendo com que uma corrente de energia e satisfação percorra meu corpo. Estou desperta, com os olhos bem abertos e as mãos quentes. Sorrio para Harry, que está do outro lado de Natan, mas ele me ignora. Percebi que ele nem precisa de treinamento, acertou todos os disparos no centro do alvo. Natan também.
Quando finalmente chega a hora de fazermos um intervalo para o almoço, meus braços estão latejando de segurar a arma por tanto tempo, e tenho dificuldade em esticar os dedos.
***
Dois dias depois, Will nos guia a uma nova sala no ginásio. Ela é ampla, com um piso liso cinza e fosco. Pendurados em um dos lados da sala, com intervalo de cerca de um metro entre eles, encontram-se sacos de pancadas. Will fica em pé no centro, onde todos podem vê-lo, e diz:
- O objetivo desta etapa é ensiná-los a agir, preparar seus corpos para que respondam a ameaças e desafios. Hoje nos concentraremos na parte técnica, e em breve irão lutar entre vocês. Por isso, sugiro que prestem atenção. Aqueles que não aprenderem rápido, vão se machucar.
Nos minutos seguintes, ele mostra e explica tipos diferentes de socos, demonstrando-os à medida que os apresenta, primeiro no ar e depois no saco de pancadas.
Vou me familiarizando com eles à medida que treinamos. Como no caso da arma, preciso de algumas tentativas até descobrir como devo me posicionar e como movimentar meu corpo da maneira correta.
Os chutes são mais complicados, embora ele nos ensinou apenas o básico. O saco de pancadas machuca minhas mãos, deixando minha pele vermelha, e ele quase não se move, não importa o quão forte eu bata.
Will nos libera às seis da tarde. No caminho para dentro da casa, Angela me acompanha e olho para ela, erguendo minhas sobrancelhas.
- O que você vai fazer agora? - pergunta.
- Comer, estou com muita fome - respondo, com um suspiro cansado - E depois, quero dormir.
- Hum, pensei que poderíamos sentar lá debaixo das árvores e descansar, junto com Hirma.
- Ah, podem ir, obrigada pelo convite, mas eu quero dormir mesmo.
- Tudo bem então, mas estaremos lá, caso mude de ideia.
Aceno e sentamo-nos à mesa para o jantar. Sento-me ao lado de Harry, que já está sendo alvo dos olhares de Cornélia e Megan. Não sei por que, mas não gosto delas, e parece que o sentimento é mútuo, porque me olham como se fossem me estrangular.
Depois que termino de comer, sigo para meu quarto e tomo um banho demorado. Deito-me, tentando dormir, mas não consigo por causa dos pensamentos correndo em minha mente. Temos que dar um jeito de sair daqui... só consigo pensar nisso.
Não consigo dormir desde que compreendi que no silêncio da noite meu cérebro funciona melhor. Observo com atenção tudo por aqui: a hora das trocas dos guardas, como se posicionam, qual deles vigia, qual traz mantimentos...
E, depois, tento me preparar para o esforço que uma fuga exige, as precauções a tomar. Será que alguém está pensando o mesmo que eu? Ou estou sozinha nessa? O calor se acumula atrás dos meus olhos à medida que penso na minha casa, minha família, nas meninas em Londres e, quando pisco, uma lágrima escorre sobre meu rosto. Cubro a boca para abafar o soluço de tristeza. Não posso chorar. Não posso. Preciso me acalmar.
Vai ficar tudo bem aqui. Poderei ser amiga de Angela e Natan. Tenho Harry aqui comigo, mesmo que esteja me ignorando, sinto que posso contar com ele.
Minhas mãos tremem e as lágrimas se acumulam com mais rapidez em meus olhos, ofuscando minha visão. Não importa agora se sinto uma dor em meu peito quando me lembro do rosto do meu irmão, de Jenny e Katherine, mesmo que seja por segundos. Regulo minha respiração.
Ouço um soluço vindo do quarto ao lado. Quem será que está chorando tão alto assim? Engulo em seco com força. Meus olhos se fecham e sinto o peso do sono, mas quando estou prestes a dormir, ouço o choro do quarto ao lado novamente.
Talvez meu problema seja que, mesmo que eu voltasse para casa, lá não seria meu lugar. Nunca consegui sentir que tenho um lugar para chamar de lar. Sempre quis sair do Brasil para morar em Londres achando que acharia meu lar. Quando consegui, foi por pouco tempo, porque fui capturada algumas semanas depois. Pensar nisso me leva a ranger os dentes. Aperto o travesseiro contra meus ouvidos para bloquear o choro que estou ouvindo, e adormeço com uma poça úmida apertada contra a bochecha.