A neve começava a derreter lentamente nas calçadas de Vila dos Cedros. O céu estava coberto por nuvens cinzentas, e o ar tinha aquele cheiro de pinheiro molhado que Helena Duarte conhecia bem demais. Ao descer do carro alugado, ela ficou imóvel por alguns segundos, encarando o portão de ferro enferrujado da pousada Vila Lúcia.
Seu nome ainda estava pendurado na placa de madeira, mas as letras estavam gastas, quase apagadas. O tempo havia passado, e mesmo assim, tudo parecia congelado no mesmo instante em que ela partira, dez anos atrás. Aquele lugar era uma cápsula - de lembranças, de saudades, de mágoas.
Com as luvas pretas cobrindo as mãos frias, ela segurou a chave antiga que o advogado havia lhe enviado por correio. Girou-a entre os dedos, como se estivesse prestes a abrir uma porta não apenas física, mas emocional. Lá dentro estavam os fantasmas da sua infância. E de algo ainda mais difícil: o passado que ela tentou apagar.
Empurrou o portão. Ele rangeu alto, como se também reclamasse de seu retorno.
Deu alguns passos pelo caminho de pedra coberto por folhas secas e galhos quebrados. A pousada estava silenciosa. As janelas fechadas, a varanda empoeirada, e a madeira das colunas carcomida pelo tempo. Era difícil de acreditar que um dia aquele lugar fora cheio de risos, café quente e histórias contadas à beira da lareira.
Subiu os três degraus da varanda devagar. Parou diante da porta. Respirou fundo.
- Então você voltou. - disse uma voz masculina atrás dela.
Helena fechou os olhos por um segundo. Reconhecia aquele tom. E sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria que enfrentá-lo.
Virou-se lentamente.
Vicente Ferraz estava parado na calçada, mãos nos bolsos do casaco, barba bem aparada, olhos castanhos fixos nela como se estivesse vendo um fantasma. E talvez estivesse. Dez anos de silêncio são uma eternidade para quem esperou respostas que nunca vieram.
Ele parecia mais maduro, o rosto mais firme, ombros mais largos. Mas os olhos... os olhos eram exatamente como ela lembrava: intensos, feridos, guardando perguntas que o tempo não apagara.
- Oi, Vicente. - ela disse, com um fio de voz.
Ele não respondeu de imediato. Apenas subiu os degraus, parando a poucos passos dela. O cheiro dele era familiar. Lenha, terra molhada, saudade.
- A dona Lúcia morreu há quase dois meses. - disse ele, seco.
- Eu sei. Só consegui sair do hospital agora. - respondeu, abaixando o olhar. - Foi difícil conseguir licença.
- Engraçado. Você foi embora em uma noite e nunca mais apareceu. Dez anos sem uma carta, uma ligação. E agora está aqui... por causa de uma herança?
Helena sentiu o rosto queimar. Ela não queria discutir. Ainda não. Ainda não tinha forças.
- Eu não vim por causa da pousada. Eu... precisava vir. Eu devia isso a ela. E a mim mesma.
Vicente cruzou os braços. O vento sacudia os galhos dos cedros atrás dele.
- Você deve muita coisa a muita gente, Helena.
Ela mordeu o lábio inferior. O peso da culpa sempre esteve com ela. A cada ano, a cada noite sem dormir, a cada carta que escreveu e nunca teve coragem de enviar.
- Eu não espero que me entenda. - disse, por fim. - Só quero... colocar as coisas no lugar.
Ele deu um passo para trás, o olhar ainda preso ao dela.
- Você não devia ter voltado, Helena. - disse, firme. - Não sem contar a verdade.
E então virou as costas e foi embora, deixando Helena sozinha diante da porta da casa onde tudo começou - e onde, talvez, tudo precisasse terminar.