Diferente do que algumas pessoas acham, eles nunca me obrigaram a seguir os passos deles, muito menos falava sem parar na profissão. Uma vez ou outra, perguntavam o que queríamos ser, aquela típica pergunta de quando se é criança e diz que quer ser astronauta, médico, bombeiro...
Acredito que desde meus sete anos, quando foi a primeira vez que disse que queria ser advogado, já tinha certeza do que queria. Inicialmente ao ouvir isso de mim, minha mãe não disse nada, apenas se retirou da cozinha e apenas meu pai continuou, dizendo o quanto era bom ouvir isso de mim.
Só depois, ela veio dizer que não importava qual profissão eu iria querer fazer, ainda seria filho dela e que se sentiria orgulhosa de mim.
Mantive minha decisão pelos anos seguintes e só então perceberam que eu não iria voltar atrás.
No meu último ano na escola particular que estudava, desde sempre, comecei os estudos em casa com toda força.
Apesar da minha escola estar preocupada com o vestibular que faríamos, nos ajudando, sentia que precisava fazer mais por mim, sabe? Me dedicar mais, já que sem esforço, não chegaria a lugar nenhum.
Parado em frente ao espelho, via o nervosismo estampado em meu rosto e também não era para menos. Havia prestado o vestibular a pouco tempo, estava apenas esperando a resposta e aquele dia seria o dia da minha formatura, aonde deixaria de ser um simples estudante, para ser o estudante de uma federal.
Meu pai nos fazia sonhar grande, então não aceitava menos que uma federal para mim, depois de todo o esforço que fiz, acreditava que essa seria a recompensa mais do certa.
O terno que estava vestindo havia sido alugado, apesar do meu pai querer que minha mãe comprasse um, ela e eu, achamos completamente desnecessário, pois por enquanto não víamos outro momento para usá-lo e ficaria dentro do guarda-roupa apenas ocupando espaço.
Era preto e um pouco justo nos ombros, mas havia servido perfeitamente.
Meu pai entra de repente no quarto, com certeza esquecendo que não era mais uma criança e que poderia me pegar fazendo alguma coisa que, seria um pouco vergonhoso para nós dois, segurando uma gravata vermelha.
- Essa vai ficar bem melhor - diz colocando em frente ao meu corpo e olhando para o espelho.
- Essa gravata não é sua? - pergunto, quando ele começa a colocá-la no meu pescoço.
- É sim. E ainda por cima, a minha da sorte - diz com um sorriso, fazendo o nó com maestria.
- Veio uma gravata com o terno - Um pouco sem graça e apagada, mas acho que iriam prestar atenção justamente na gravata.
- Essa vai ficar bem melhor em você - E disso não tinha dúvidas, já que era um vermelho puxando para o vinho, só que brilhante, com pequenos detalhes.
Era linda, realmente. E estava se destacando com facilidade no terno preto.
Meu pai tinha uma espécie de coleção de gravatas, com todas as cores, modelos e detalhes. As vezes eu via minha mãe o presenteando com alguma e apesar de ser gravata, eram caras, e também muitas vezes, ele comprava mais, aumentando sua coleção. Então não iria fazer muita falta, eu usar uma das mais bonitas naquele dia.
Quando ele termina, afaga meus ombros, arrumando o paletó, olhando em seguida para mim no espelho com um sorriso.
- Eu disse o quê? Tá bonitão.
Sorrio em resposta.
Ele começa a arrumar a gravata cinza no pescoço dele.
- A mãe vai chegar que horas?
- Ela vai nos encontrar lá.
Respostas como aquela, já faziam parte do meu cotidiano. Por causa do trabalho, nem sempre minha mãe estava em casa nos horários combinados. Sempre alguma audiência durava mais do que outra e assim por diante, além de as vezes as testemunhas não aparecer ou acontecer algum imprevisto.
Algum tempo atrás, ela começou a sofrer atentados. Começou com "pequenos sustos", o carro dela era fechado no meio da rua e homens gritavam alguma coisa para ela ou se não ela tinha os quatro pneus do carro furados e vidros quebrados.
Até que passaram de "inofensivos" para grave e isso a deixou ainda mais alerta, precisava blindar o segundo carro que tínhamos e contratar seguranças. Não para nós e sim para ela, que estava sempre na mira de bandidos.
Por causa do objetivo dela, que era condenador o máximo de traficantes possíveis, isto acabou meio que os irritando, pois sabiam que se fossem à julgamento com ela, acabariam presos.
Até aquele momento, era a juíza que mais prendia traficantes com bases de provas, ainda por cima uma negra que, ia contra tudo o que achavam.
Ela já havia morado em uma comunidade, sabia como funcionava as leis dos traficantes locais e nem por isso, os defendia, era alimentada por algo que eu nem sabia que, o que faziam além de colocar os moradores em risco, destruía qualquer um que passasse na frente deles.
- Vamos lá? - Meu pai pergunta, saindo do quarto.
Assinto seguindo ele.
O quarto em frente do meu estava fechado, precisei conter a vontade de abrir a porta, pois já sabia o que iria encontrar. Invés disso, segui meu pai para fora do apartamento.
Mesmo sendo uma simples entrega de canudo, estava nervoso, principalmente por não ser algo costumeiro meus pais aparecerem na escola. Não que isso fosse vergonha, mas era um orgulho para mim, ter pais como eles, ter um pai como o meu, que sempre esteve ao meu lado, se dedicando e dando seu melhor todos os dias.
Não tinha o quê reclamar. Só agradecer.
A distância da nossa casa, com o trânsito calmo, era de quarenta minutos e naquele dia, o trânsito resolveu cooperar.
Assim que o carro vira a esquina, percebo diversos carros, parados dos dois lados da rua, dificultando encontrarmos um lugar para estacionar.
Andamos lado a lado em direção a escola e neste meio, meu pai não perde tempo para cumprimentar algumas pessoas, sempre da melhor forma possível e com a simpatia que só ele tinha.
Mesmo a escola sendo grande, me senti em um formigueiro, havia pessoas por toda parte, conversando ao mesmo tempo, dificultando até o movimento de algumas.
Me afasto do meu pai em determinado momento, ao ver alguns dos meus colegas de turma, me adiantando em por minha beca.
- Se eu fosse uma mina, iria querer que me pegasse - diz João Guilherme, piscando para mim, conseguindo dessa forma que alguns sorrissem.
Não demora para que a cerimônia comece, ficamos lado a lado em cima do palco, por ordem alfabética para o hino nacional. Durante o hino, meus olhos vagam pela fileira de cadeiras acolchoadas vinho, procurando meu pai, o encontro, cantando baixo o hino nacional. O lugar ao seu lado está vago e não vejo minha mãe por nenhuma parte, nem no final do hino.
Quando começam a entregar os canudos, minha atenção continuava dividida entre o diretor que chamava os alunos e a porta do auditório. Constando que até aquele momento, não havia nenhum sinal dela.
Na minha vez, forço um sorriso e tiro a foto com ele, tentando demonstrar que a ausência dela não havia me destabilizado. Entendia que não era por quê ela queria e também sabia que na minha vez com meus filhos, também teria que passar por isso, mas mesmo assim, não deixava de não sentir a ausência dela.
Descendo os degraus do palco, noto quando uma mulher negra, alta, por conta dos saltos que calçava e com roupas claras que aperfeiçoavam ainda mais sua cor e suas curvas, entra no auditório, tirando o óculos de sol quadrado enquanto andava na minha direção.
Eu reconheceria minha mãe até em baixo de água e poderia dizer, com todo o respeito, que era apaixonado pela garra que tinha e por ela.
A medida que andava na minha direção, diversos olhares a acompanhou, mais de homens. Talvez fosse a energia que emanava do corpo dela ou o poder que ela tinha.
- Desculpa pela demora - murmura, me abraçando com força, como costumava fazer quando se sentia culpada em não estar conosco, quando queria, beijando por fim o lado do meu rosto - Já chamaram você, não foi? - Ela nota o canudo na minha mão, ao baixar o olhar.
- Já sim, mas não importa - Olho para ela - Não tem nada mesmo aqui - Ela sorri levemente, passando a mão pela minha cabeça, o olhar indo para o auditório cheio.
Não demora para meu pai sair de entre as pessoas, tentando encerrar uma conversa que havia começado e mesmo vendo ele, ela continuou procurando alguma coisa e não precisei pensar muito para saber o quê.
Só não sabia como falar para ela. E não adiantava ir com rodeios, ela odiava rodeios e preferia que sempre fóssemos diretos.
- Ele não está aqui, mãe.
Ela olha para mim no mesmo instante, franzindo o cenho.
- Onde está o seu irmão, Lucas? - Até onde sabia, éramos gêmeos, não sabia qual de nós dois havia nascido e também não importava, mas tínhamos a responsabilidade de cuidar um do outro.
- Ele repetiu de ano, mãe.
O que me assustava na minha mãe e me deixava muito preocupado, é que ela não explodia de vez, entende? Simplesmente ela ficava parada, absorvendo o que havia dito e se preparando para o veredicto dela. As vezes, acho que ela esquecia que estava em casa e continuava atuando como juíza.
- Ele repetiu - Ela repete, mantendo o tom de voz e a expressão suave.
- É, mãe.
Depois de conseguir finalizar a conversa que estava tendo, meu pai se aproxima sorrido, acariciando o queixo dela como sempre faziam quando se encontrava. Entretanto, dessa vez, ela não retribuiu o carinho.
- O que foi? - Ele pergunta por fim.
- Você sabia que o Luan repetiu? - Ela questiona da forma mais direta possível.
Ele olha para mim e novamente para ela, sem conseguir disfarçar que sabia de tudo.
- O diretor me ligou, informando que ele não estava comparecendo às aulas.
- E por quê não me disse nada?
Observo ambos, sem deixar de notar que até para discutir, não pareciam que estavam discutindo.
- Você já anda tão ocupada e além do mais tentei conversar com ele.
- E você conversou com ele? - Ela não queria saber se estava ocupada ou não, o quê importava ali era se ele havia feito Luan voltar para a escola, mas essa resposta eu também já sabia e tive dó do meu pai.
- Luan já não é mais o mesmo, Gabriela. Não me escuta mais.
Ela solta o ar dos pulmões, fechando os olhos por alguns instantes.
- Era para ele estar aqui - murmura com a expressão triste.
Não precisava ser um gênio para perceber que ela estava decepcionada, não apenas com Luan, mas com ela. Toda vez que Luan saia da linha, ela acreditava que a culpa só era somente dela, que se passasse mais tempo dentro de casa, o apoiando e o auxiliando da mesma forma que meu pai fazia comigo, ele estaria no mesmo patamar que eu.
A frustração as vezes ficava estampada no rosto dela e era em momentos como este, que queria fazer ela entender que não era culpa dela, que já não éramos mais crianças e já estava na hora de começar a nos responsabilizarmos pelas nossas decisões.
Conhecia minha mãe o bastante, para saber que ela nunca faria isso, com nenhum dos de nós dois e enquanto tivesse alguma chance de nos trazer de volta para o caminho que estávamos trilhando.
Isso significava que ela não iria desistir do Luan, nem que para isso tivesse que ir no inferno para buscar ele.
- Onde você vai, Gabriela? - Meu pai pergunta, quando ela dá as costas para nós, andando em passos firmes para fora do auditório.
- Atrás do meu filho - diz sem nos olhar.
Meu pai respira fundo, soltando o ar dos pulmões, olhando para mim em seguida.
- É melhor a gente ir também, não acha, pai?
Ele balança a cabeça de um lado para o outro.
- Não - diz sem pensar muito - Não vamos acabar com seu dia, por causa das decisões mal tomadas do seu irmão - Ele dá dois tapinhas em minhas costas - Vá lá com seus amigos, estou por aqui.
Hesitante, ainda permaneço alguns segundos parados, o suficiente para vê-lo ir até o grupo de pais e recomeçar uma conversa.
Não era só a minha mãe que estava preocupada com o meu irmão, eu também andava preocupado com ele. Costumávamos ser inseparáveis, fazíamos tudo juntos e até nos vestíamos iguais, mesmo nossa mãe não fazendo questão, mas só foi entrarmos na adolescência que tudo mudou, Luan mudou e com ele o comportamento dele que, deixou de ser uma pessoa que estava sempre sorrindo, para se tornar uma pessoa introvertida que, evitava a qualquer custo conversar com as pessoas que moravam com ele na mesma casa.
Até comigo ele mudou, me tratava como um estranho, quando eu queria que ele só fosse meu irmão e quando tentava me aproximar dele, ele me evitava.
Foi neste meio tempo, que as discussões começaram, entre ele e o meu pai. Isso sempre na ausência da nossa mãe, as brigas começavam sempre por besteira, um copo fora da pia, toalha molhada em cima da cama ou até entrar de sapato dentro de casa, até chegar no nível onde estavam trocando xingamentos e agressões físicas. Meu pai batia nele, acreditando que dessa forma, o faria voltar ao normal e meu irmão apenas absorvia tudo para si e não reagia, o quê era até bom, pois não sabia o que poderia acontecer, caso ele reagisse.
Por semanas, essa era a realidade quando minha mãe não estava em casa, até chegar no ponto de Luan não comparecer mais nas aulas e só aparecer quando queria em casa.
- Lucas! - João Guilherme grita - Vem! - Sem nenhuma animação, caminho até ele e mais quatro pessoas, desejando que aquela cerimônia acabasse o mais rápido possível.
Minha cabeça não estava mais ali, estava em casa, imaginando o que aconteceria quando minha mãe chegasse em casa e o questionasse sobre o que estava acontecendo. Temia que Luan fosse agressivo com ela, acabasse descontando toda a sua raiva que tinha do nosso pai nela, sem ela ter culpa de nada e isso acabaria abalando a conexão dos dois. Eu sabia que ela não tinha um preferido, mas Luan, diferente de mim, sempre se mostrou mais frágil, sempre precisou de mais atenção e idas ao médico por adoecer com uma facilidade impressionante.
Só queria que ele fosse ele mesmo, pelo menos com ela.