Comecei a ter responsabilidade muito cedo, meu pai foi preso diversas vezes antes mesmo de eu nascer e depois de eu ter nascido, entretanto, da última vez ele não conseguiu sair mais rápido como de costume. Os dias começaram a passar, se tornando semanas, meses, até que vi pouco a pouco a esperança da minha avó se extinguir enquanto os recursos se esgotavam.
Era a única pessoa, além de nós, que ainda se importava com ele. Tentava me manter neutro em relação a condição dele, não tentar julgar ou me aprofundar no motivo pelo qual ele foi preso, mas sempre ouvia uma pessoa ou outra relembrando o quê ele havia feito.
No início não conseguia imaginar o homem que dizia ser meu pai e que cuidava de mim melhor do que a minha mãe, matando uma mulher grávida, a mulher que estava à frente do morro do Alemão. Não a conheci como algumas pessoas, haviam boatos que diziam que se existisse a versão feminina do diabo, era ela. Começando pelo fato dela gostar de vermelho e se vestir dos pés a cabeça com essa cor, depois vinha as atrocidades que ela fazia para manter todos os moradores sob seu controle e por fim a sua inteligência, que foi capaz de dobrar o ex dono do morro, Gael.
Não sabia se era verdade mas, se fosse, com certeza deviam escrever um livro ou um documentário sobre ela. Existia diversas histórias sobre ela e infelismente por causa dessas histórias que, minha irmã mudou da água para o vinho, bem diante dos meus olhos e mesmo tentando fazê-la lembrar do fim que Antônia teve, ela fazia questão de me ignorar.
Enquanto eu fazia de tudo para ficar bem longe de tudo que se referia ao tráfico, minha irmã fazia questão de entrar cada vez mais, ignorando todos os sinais que apareciam em sua frente.
A medida que o tempo passava, minha avó começou a envelhecer e já não podia cuidar do bar que tinha como antes. Ela já não era a mesma há algum tempo, era raro os momentos que ela sorria, as vezes isso acontecia, durava apenas alguns instantes e logo ela voltava para a tristeza dela sem fim. Era neste momento que eu odiava meu pai, ele não havia pensando se quer um momento em nós, na sua família, ele sabia que se voltasse para a cadeia agora com uma nova acusação de associação ao tráfico e homicídio, com tantas passagens que já tinha, as chances dele sair eram nulas.
E a juíza que o julgou, fez questão de fazer a lei funcionar e fez, diferente da minha irmã, nunca tive raiva dela por isso. Se ele havia errado, teria que pagar pelos erros dele. E só sentia muito por ele estar naquele lugar, por causa da minha avó, ela sentia a ausência dele todos os dias, ela ia o visitar toda a semana, levando sempre o quê ele gostava e voltando para casa com a esperança diminuindo cada vez mais.
Muitas vezes queria lhe dizer que era para diminuir as visitas, para começar a pensar nela mesma e no restante da vida que ela tinha pela frente.
Era o mínimo que ela poderia fazer, depois de ter cuidado dos meus tios, do meu pai e de nós. Só quem conhecia minha avó, sabia o quanto ela era teimosa e que não desistia facilmente.
Depois que provei para minha vó que conseguia lidar com o bar, eram poucas as vezes que ela me ajudava, apenas quando tinha baile funk, tirando isso, eu ficava inteiramente responsável pelo estabelecimento que tinha hora para abrir mas, não tinha para fechar.
Minha mãe não gostava disso, dizia que não havia parido um filho para ficar enfurnado dentro de um bar com cachaceiros. Só que nunca fez nada para me ajudar em relação à isso, costumava beber até não aguentar mais e só se lembrava de nós quando estava sóbria, depois de uma semana em festas e bebendo como se não houvesse o amanhã.
Preferia pensar que era o jeito dela dizer que gostava de nós.
Quando não estava no bar, trabalhando, estava atrás da minha irmã em bocas ou no alto do morro. E não, ela não é usuária de drogas, as vezes preferia que fosse, pois saberia onde encontrá-la. Poderia facilmente resolver isso, a trancando em casa, numa clínica ou em qualquer outro lugar que pudesse lidar com dependência química. Seria fácil de resolver e eu não teria que ficar quebrando a cabeça com a minha irmã mais velha, sendo que era ela que deveria estar se preocupando comigo.
Assim como eu, minha avó se preocupava com ela, temia que ela seguisse os passos do nosso pai. Mesmo eu não querendo admitir, tudo indicava o quê minha avó mais temia, eu queria que não, queria que o juízo da minha irmã voltasse e ela se desse conta do que estava fazendo com a vida dela.
Ficava mais do que feliz quando chegava em casa e a encontrava. E era uma verdadeira angústia quando não a encontrava em casa e sim minha vó preocupada, tentando não esperar pelo pior.
- Mais uma aí, Lu! - diz um bêbado numa roda de amigos.
- Vou ficar devendo. Já estamos fechando - Termino de limpar e organizar tudo.
- Mais ainda é cedo.
Já passava de meia noite, alguns estabelecimentos já haviam fechados há um bom tempo e não queria incomodar os vizinhos, mesmo o som estando baixo, aquele grupo de quatro pessoas faziam muito barulho.
A contra gosto, começam a levantar e cambaleante ambos vem até o balcão, aonde tiram notas amassadas dos bolsos e colocam sobre o balcão. Conto as notas e as junto com as demais em meu bolso.
- Devia ter uma saideira - diz um deles enrolando a língua.
- Me lembre quando vim aqui de novo.
O outro aponta o dedo indicador na minha direção.
- Vai perder a freguesia assim.
Forço um sorriso, já sentindo o cansaço tomando conta do do meu corpo. Conversando e rindo, saem do bar, permitindo que eu fechasse tudo e fosse embora. Se fosse em outro lugar, temeria andar na rua naquele horário, mas era a favela que eu havia crescido, mesmo com o meu pai preso, ninguém ousava mexer com a gente e pelo menos isso era bom.
Ando em passos largos, querendo chegar logo em casa, torcendo encontrar a minha irmã cabeça dura lá. Precisava andar pelo menos quatro ruas, até chegar em casa. Não era sempre que dormia na casa da minha mãe, mas por causa da minha irmã, era praticamente obrigado, já que a minha mãe não fazia o trabalho dela como mãe.
Cumprimento algumas pessoas no caminho, soldados, sem diminuir o ritmo dos meus passos. No portão de casa, não hesito em destrancar o cadeado, a luz da televisão refletia no vidro da sala, o que me fez pensar que pelo menos parecia ter alguém acordado.
Mais alguns passos, abro a porta de casa e encontro minha mãe deitada no sofá. Havia latinhas de cerveja por toda parte, além de bitucas de cigarro por toda parte e o cheiro forte de nicotina. Soltando o ar dos pulmões, abro a janela no intuito do cheiro característico sair, no meu íntimo sabia que não iria sair. Já fazia parte daquela casa, assim como havia impregnado nos móveis e mesmo que fizesse uma faxina de uma semana, ainda voltaria, era assim a casa de um fumante quando se fumava dentro de casa. Claro que na minha casa não seria diferente.
Vou para o próximo cômodo, a cozinha, encontrando louça suja por toda parte. Costumava lavar quando tinha um tempo e deixar a casa o mais organizado possível, mesmo achando que não levava muito jeito para isso, mesmo assim tentava e ficava feliz com o resultado que conseguia.
Não ficava perfeito mas... dava para o gosto.
Meu quarto era o único lugar arrumado da casa, mesmo assim o encontrava revirado as vezes, já que quando minha mãe queria dinheiro para comprar cachaça ou cigarro, acreditava que eu escondia dinheiro em algum lugar no meu quarto, então tentando ser mais sutil possível, ela vasculhava todos os lugares que achava que poderia esconder alguma coisa.
Uma hora ela se daria conta de que eu não era burro o suficiente para deixar dinheiro ali.
Minha irmã costumava dormir no mesmo quarto que a minha mãe, era raro as duas dormirem ao mesmo tempo. Sempre uma ou a outra não estava em casa, então tinham alguma privacidade na ausência da outra.
Suspiro quando paro na porta do quarto, o encontrando vazio. Automáticamente minha mente começava a listar todos os lugares que ela poderia estar, não era uma lista muito grande, se não fosse o cansaço que estava me dominando, iria ver aquilo como uma tarefa fácil.
Volto para a sala, com minhas pálpebras pesadas, quando se fechando.
- Mãe - Chamo, sacudindo o ombro dela, não obtendo resposta de imediato - Mãe - Insisto, a balançando com mais força - Mãe!
- O quê é porra?! - Ela rosna, abrindo os olhos vermelhos e me encarando.
Apesar da idade, minha mãe ainda achava que tinha a idade de quase vinte anos atrás e se vestia da mesma forma como antes. Short curto, top e piercing no nariz e na boca. Além da juliete e do cabelo preto de mega hair. Nada contra quem se vestia dessa forma, mas minha mãe não se dava conta que já não tinha mais o corpo de antes e que isso não a favorecia nem um pouco.
Por causa disso, ao ouvir piadas sobre isso, ela já havia entrado em diversas brigas, sempre defendendo que não estava tão velha assim e que roupas não diziam nada.
Inspiro profundamente, tentando manter a calma.
- Cadê a Larissa?
Ela revira os olhos sentando, pegando uma latinha no chão com resto de cerveja quente. Em um gole ela bebe o líquido que havia ali, depois disso ela pega a carteira de cigarro, acendendo o último que havia.
Seu olhar me encontra novamente, antes de se fixar na televisão.
- Vai ficar aí parado?
- Quero saber se sabe da Larissa.
- Eu lá sei da sua irmã, Lucas. Ela já é bem grandinha, pode fazer o quê ela quiser da vida dela, não voltando grávida e me deixando pra criar uma criança, tá tudo bem.
Não seria bem isto que aconteceria. Larissa não iria deixar com a nossa mãe, era capaz de deixar com a nossa vó e eu temendo que minha vó se sobrecarregasse ainda mais, acabaria pegando mais uma responsabilidade para mim.
- A senhora sabe que é quase impossível disso acontecer.
- Impossível ou não, não vou cuidar de neto algum!
Me afasto dela, indo para a porta.
- Devia estar preocupada onde ela está e não com um neto que não existe! - Irritado saio de casa, começando a descer a rua de casa.
O sono e o cansaço já se dissipava de dentro de mim, a medida que andava. Esperava encontrar Larissa no primeiro lugar que vinha à minha mente e poder me deitar depois de um dia mais que cansativo.
Quando me dou conta, já estou no final da rua, entrando em uma e saindo em outra. Logo a frente havia um grupo, conversavam e riam alto, como se ainda fosse cedo. Nenhum deles ali me interessava, apenas uma pessoa em questão que se destacava facilmente.
Continuo me aproximando com passos firmes e decididos. A conversa continua, cada vez mais alto com cada passo que eu dava.
- Larissa - digo quando já estou perto o bastante.
Ela para de conversar com uns soldados e olha para mim ainda sorrindo.
- Tá fazendo o quê aqui?
Paciência. Só precisava ter mais um pouco de paciência e logo iria estar dormindo em minha cama.
- Vamos pra casa.
Ela franze o cenho, erguendo um dos cantos da boca, balançando a cabeça de um lado para o outro.
- Não.
Os soldados dão risada baixo, evitando de me olhar.
Massageio minhas têmporas, me segurando no fio de paciência que ainda me restava.
- Já tá tarde, Larissa. E não é bom você ficar na rua até tarde.
- Essa favela é nossa, Lucas. Do nosso pai. Nossa!
- Não é mais já um bom tempo - Tento lembrar ela, talvez se fizesse isso, iria perceber a merda que estava fazendo naquele momento - Ele já não manda em mais nada aqui, já tem outra pessoa no comando.
Ela ergue o queixo de modo desafiador.
- Só é questão de tempo pra ele sair.
- Já ouço isso há tanto tempo que nem acredito mais - Resmungo baixo - Agora vamos.
Ela cruza os braços sob o peito.
- Já disse que não vou, Lucas. Vai você.
Sabia que não iria conseguir dormir sabendo que ela estava na rua, correndo diversos riscos, inclusive de ser morta. Nosso pai, como ela gostava de ressaltar, também tinha inimigos, estavam por aí, esperando apenas uma chance para se vingar das inúmeras coisas que ele fez. Eu tinha consciência disso, mas Larissa parecia que não enxergava todos estes riscos que corríamos diariamente. Ela fechava os olhos para todos os erros que ele já havia cometido.
Sentindo que minha paciência havia ido para o espaço, encurto o espaço que nos separava e seguro o braço dela, a puxando dali. Como cães ou seja lá o que for, os soldados levantam, segurando suas armas, tentando me intimidar.
- É melhor não se meterem nisso - digo segurando com força o braço dela - Ela é minha irmã e se fosse a irmã de vocês, também iriam tá fazendo isso.
- Lucas, me solta - Larissa começa a puxar o braço com força, apenas estreito mais a minha mão em seu braço, começando a andar de volta para casa - Me solta!
- Cala a boca, Larissa.
- Ou o quê? Vai me bater também?
Ela sabe que eu nunca iria bater nela. Nunca fiz isso, nem quando éramos crianças, era a minha irmã e eu só estava tentando proteger ela.
- Estou fazendo um favor pra você.
- Me fazendo passar vergonha e me arrastando pra casa?! Eu já ia pra casa, não precisava fazer isso!
- Eu sei muito bem que não ia - Continuamos a andar, Larissa tentava se soltar a todo tempo, até me ameaçando me morder e mordendo em certos instantes, aguento as mordidas e os arranhões como uma rocha, podendo voltar a respirar normalmente quando passamos pelo portão de casa e a coloco em segurança dentro de casa.
- Que merda! - Ela grita enfurecida, parada no meio da sala - Para de se meter na minha vida!
- Eeeei! - diz minha mãe, ainda sentada no sofá. As vezes eu acreditava que o sofá já fazia parte dela, pois boa parte do tempo, quando estava em casa, era ali que ela permanecia - Tem como parar com toda essa gritaria?!
- Então manda seu filho parar de tentar ser meu pai! - Ela esbraveja se virando para ela.
Minha mãe fixa o olhar em mim.
- O quê foi que você fez agora?
- Fiz o quê a senhora devia fazer.
Ela estreita os olhos incrédula.
- O quê tá querendo dizer? - Queria poder dizer para minha mãe, o quanto ela sempre deixou a desejar em nossa criança. O quanto havia sido omissa, nos largando sozinhos na casa, quando podia muito bem ser mãe. Alegava como sempre que não iria parar sua vida por causa dos filhos, enquanto nosso pai tinha uma vida quase boa na cadeia, deixando para ela toda a responsabilidade de nos criar. Se não fosse nossa avó, não conseguia nem imaginar o quê poderia ter acontecido com a gente, duas crianças tendo que se cuidar sozinhas.
Era muito fácil para ela agora dizer que era nossa mãe, depois de já estarmos crescidos e com a nossa mente formada.
- Quer saber de uma mãe? - digo calmamente, minhas pálpebras pesadas novamente e meu corpo dando sinais que iria desligar a qualquer momento - Entenda como quiser - Dito isto, vou para meu quarto, ouvindo minha irmã gritar e xingar, dizendo que um dia se livraria de mim e de toda aquela merda, que se nosso pai estivesse ali, ela não estaria passando nem pela metade.
Como sempre em situações como essa, onde minha irmã defendia cegamente nosso pai, minha mãe pelo menos fazia algo de bom e ia contra ele, lembrando que era melhor ele estar atrás das grades. E era quando a situação piorava ainda mais, chegando até em agressão física.
Eu não gostava da família que havia nascido, muito menos do fardo que tinha que carregar diariamente por causa das decisões erradas que meu pai havia tomado. Odiava quando diziam que eu lembrava ele de alguma forma ou faziam questão de lembrar tudo de bom ou ruim que ele havia feito naquela favela. Mas infelismente, não pude escolher em qual família queria crescer, se pudesse, teria escolhido sem pensar duas vezes, agora a única coisa que poderia fazer, era negar qualquer vínculo com ele e tentar ser alguém completamente diferente da pessoa que um dia ele foi.