Durante dois dias fui às amostras pela manhã e segui o conselho dele no restante do dia, aproveitei e fiz alguns passeios pela cidade.
Não entendi muito bem o porquê, mas estava me sentindo calmo e tranquilo nos passeios. Acho que toda a turbulência pela qual passei antes dessa viagem me deixou muito agitado, e estar longe de tudo tem me feito bem.
Ainda mais agora, que estou prestes a dar um passo importante e definitivo na minha vida. Por mais doloroso que possa ser, preciso esquecer de uma vez a Alison e seguir em frente. Assim como ela tem feito.
Caminhei por um parque natural, um pouco mais afastado do centro, e confesso que aqui minha calmaria foi interrompida.
A cada passo, cada árvore que eu contemplava, cada pétala das flores dos ipês que caim, me fazia lembrar dela.
No intervalo em que eu anunciei nosso namoro até ela revelar sobre a gravidez, nós passamos por um período bem clichê em relacionamentos. Saímos para o cinema, passeamos de mãos dadas e fizemos piquenique no parque próximo de onde ela morava. Na época eu achava aquilo muito "comum", não era meu forte fazer esse tipo de programa. Mas, era a Alison comigo, tudo era novidade e as coisas mais bobas que não me pareciam nada atraentes, se tornaram únicas.
Em um desses passeios, um piquenique que fizemos, enquanto eu estava deitado com a cabeça sobre seu colo, ele falava com entusiasmo sobre como queria ter uma família. Aquele assunto não era o que eu queria discutir na época, não estava pronto para coisas assim, e não tinha ideia de que um dia estaria.
O jeito como os olhos dela brilhavam, como seu sorriso era empolgante e o jeito meigo e carinhoso com que ela se referia a seus futuros filhos, me deixaram desconcertado.
Eu era um babaca insensível. Não posso ser descrito de outra forma. Achava aqueles sonhos muito infantil e imaturo para alguém como ela. Hoje, recordar daquela tarde dói. Ainda não consigo entender meu eu do passado que a tratou de forma tão rude e insensível. Como pude pensar que ela estava tentando me dar um golpe da barriga? Logo ela, tão meiga, carinhosa e sempre muito atenciosa comigo. Alguém que nunca havia me pedido nada em troca de tudo o que me dava. Alguém que, mesmo depois da maneira inusitada em que nos conhecemos, sabendo o tipo de homem que eu era, me deu um lugar em seu coração.
Cada vez que ela dizia que me amava, o mundo passava a ter um colorido diferente. Era uma fantasia que se tornava realidade bem na minha frente. Ela foi única na minha vida. Ela ainda é.
Mas eu a perdi.
Eu a perdi por não saber como tratar alguém que não queria nada de mim, que não fosse meu amor. A perdi por pura ignorância, imaturidade e covardia. Eu entendo bem que ela me despreze agora, pois até eu desprezo o homem que já fui.
Talvez, eu não seja mais aquele Mark de 8 anos atrás, justamente por tê-la perdido. Por ter sentido a cada dia, essa dor insuportável que é viver sem ela.
Eu fui ainda mais burro ao pensar que ela estava se casando por estar grávida. Eu tirei esse sonho dela no passado. Mesmo depois de anos casada, ela ainda não tem filhos com o marido, o que significa que a minha marca ainda está em sua vida, tirando a felicidade que ela teria se fosse mãe.
Não é só a dor de não tê-la ao meu lado que não me deixa esquecer o que vivemos, é o remorso por ter causado o motivo de sua "meia felicidade" em seu atual presente. Sei que isso deve ser torturante para ela, que era cheia de sonhos por uma família grande e feliz.
Cheguei a uma ponte sobre um pequeno lago, parei e observei os peixinhos sob a água. Segurei forte os lastros de madeira da ponte artesanal e evitei o máximo que as lágrimas rompemssem meu olhos. De nada adiantava chorar pelo que não podia ser mudado. Ainda assim, meu coração doía.
- Eu sinto muito, Alison, sinto muito mesmo. Se eu pudesse mudar tudo isso, sem hesitar, eu mudaria. - uma lágrima quente e pesada marcou meu rosto antes de se tornar fria e inútil.
Chorar nunca foi algo que eu deixasse que acontecesse, mas quando se tratava dela, eu não tinha como evitar.
As pessoas conseguem seguir em frente depois de se perdoarem pelos erros que cometeram e aliviar o peso da culpa que carregam, mas não creio que eu possa fazer isso. Não quando foi a vida dela que tomou um rumo tão diferente do esperado, da tão sonhada felicidade.
Eu preciso pedir perdão a ela, mesmo que ela não me perdoe, preciso que saiba que não estou mais feliz do que ela depois do que fiz.
- Me desculpe, Alison, mas preciso te ver de novo. - engoli seco com o bolo em minha garganta. - Nem que seja pela última vez na minha existência, eu preciso dizer o quanto eu sinto muito por tudo.
Alison
As minhas consultas com a Dra Kall sempre foram sinônimo de muita ansiedade pra mim, mas hoje sinto que estou prestes a ter um treco de tão nervosa. Faz algumas semanas que estamos tentando um método diferente, um medicamento novo que me encheu de esperanças assim que ela me falou sobre ele e os progressos esperados com seu uso.
No entanto, acho que perdemos muito tempo com os diversos tratamentos que fizemos, já que é possível que o problema desde o início, não tenha sido eu.
- Bom dia, Alison! - a Dra Kall entra no consultório com um grande sorriso no rosto.
- Bom dia, Gail! - eu mal consigo me manter de pé para cumprimenta-lá, minhas pernas tremem de ansiedade.
Gail e eu passamos a nos tratar pelo primeiro nome. Já são anos de consultas e várias opções de tratamento que nos fizeram ficar cada vez mais próximas. Gail é mais do que minha médica, ela é uma amiga.
- Eu tenho ótimas notícias! - ela senta atrás da cadeira, fazendo meu coração pular com essa frase.
- Pelo amor de Deus, Gail, isso é tudo o que eu preciso agora. - fico afoita para saber o que ela tem a me dizer.
- Seu organismo se deu muito bem com a medicação e os resultados são os melhores. - ela me entrega uma pasta com os resultados dos últimos exames, mesmo eu não entendendo nada do que está ali, olho cuidadosamente para cada parágrafo.
A primeira vez que estive no consultório da Dra Kall, expliquei o que tinha acontecido comigo, sobre o acidente e o diagnóstico preliminar do meu cirurgião. Gail pediu uma série de exames e foram semanas até conseguirmos ter todos em mãos e ela me explicar um por um.
No meu acidente, tive a região abdominal inferior perfurada, causando a perda do bebê que eu esperava, no entanto, essa não havia sido a única parte ruim disso tudo. O objeto me perfurou da esquerda para direita, lesionando minhas trompas e meu útero.
Na cirurgia de emergência, eles tiveram que remover uma das minhas trompas, e a outra, bem, nunca mais funcionaria do mesmo jeito. A cada vez que eu ovulava, sentia uma dor intensa, ainda assim, eu já não tinha mais hormônios suficientes para gerar um óvulo saudável. Assim que ele deixava a trompa e seguia para o útero, não se fixava na parede uterina e, simplesmente, ia embora. Ele não passava pelo processo de aguardar no útero para ser fecundado, e por isso, eu não tinha chances de engravidar.
Mesmo que eu optasse por uma fertilização em vitro, as chances eram mínimas, já que o óvulo não era saudável o suficiente para suportar a fecundação. Daí, vieram as tentativas com diversos medicamentos à base de hormônios para tentar deixá-lo mais forte e saudável para uma possível fecundação.
Nos últimos 3 anos, tentamos alguns remédios que já havia no mercado, mas toda vez que eu ovulava e a Dra Kall extraia um para estudos, parecia faltar alguma coisa para que ele resistisse tempo suficiente.
Há cerca de dois meses, um desses medicamentos que ainda estava em fase de estudo e desenvolvimento me foi apresentado pela Gail, eu não pensei duas vezes antes de aceitar. Ela me alertou sobre os possíveis efeitos colaterais, mas eu estava muito desesperada para engravidar, então, não pensei muito a respeito e aceitei imediatamente. Agora, mesmo sabendo que Harold mentiu pra mim durante todo esse tempo, tenho esperanças de que posso alcançar meu tão desejado sonho de ser mãe.
- Eu não entendo nada do que diz aqui, Gail.
- Simplificando todas essas páginas que você tem aí, os novos hormônios que você está usando garantiram a formação perfeita de um óvulo. - olhei para ela piscando compulsivamente ao tentar conter as lágrimas. - Isso significa que...
- Eu posso ser mãe! - minhas palavras são apenas um sussurro em meio ao turbilhão de sentimentos que me tomam completamente por dentro.
- Sim! - ela abre o mais largo sorriso que consegue. - Você agora produz um óvulo completamente saudável. E tem as chances de engravidar como qualquer mulher normal que nunca passou por algum tipo de problema fértil.
Eu solto a pasta em cima da mesa e cubro a boca com as mãos. Estou tentando conter a euforia crescente dentro de mim. Não consegui acreditar que depois de tanto tempo, finalmente consegui ser capaz de ser mãe.
- Gail... - as lágrimas tomam meu rosto e eu soluço a cada nova sensação de alívio e dor.
- Alison...- ela levanta e pega uma caixinha de lenços de papel, destaca um e me entrega, ao sentar ao meu lado. - Sei que isso é algo que você deseja mais do que tudo, mas por quê me parece que suas lágrimas não são apenas de alegria?
- Ah, Gail...- seco o nariz com o lenço antes de receber seu abraço reconfortante.
Por alguns instantes, eu não consigo dizer nada, apenas chorar. Ela não me faz mais perguntas, permite que use de seu acalento para expelir toda a minha agonia.
É tão frustrante e triste saber que não terei mais uma família ao lado do Harold. É doloroso saber que a família que eu tanto sonhava em termos não se tornará realidade.
- Eu vou me divorciar do Harold. - finalmente me acalmo o suficiente para declarar o motivo da minha tristeza.
- O que houve, Alison?
- Ele mentiu pra mim, Gail. Ele não pode ter filhos. Todos esses anos, lutando para chegar a este momento, e agora eu não posso ter a família que tanto planejei para nós.
- Ah, Alison, sinto muito. - ela me abraça novamente, eu não choro mais. Apesar desse assunto me deixar triste, também me deixa furiosa.
- Mas eu não quero ficar pensando muito sobre isso. Agora eu preciso de você, Gail.
- Claro, querida, o que estiver ao meu alcance, eu farei por você.
- Gail, eu sei que você tem contato com vários geneticistas, então preciso que você consiga uma inseminação artificial!
- Certo, sem problemas. Se você está certa de que quer dar esse passo, eu te ajudarei com isso. - ela volta para a mesa dela e abre sua agenda. - Eu vou marcar uma consulta com uma psicóloga, com o geneticista sênior do hospital onde faço trabalho voluntário e tenho certeza que no próximo mês, na sua próxima ovulação, podemos iniciar o procedimento.
- Não, Gail...- ela me encara por cima dos óculos. - Eu preciso disso para agora, enquanto ainda estou ovulando.
- O quê?