/0/11750/coverbig.jpg?v=c3e742d8e43736a7f52ba0234c7f414d)
Algum tempo depois...
Foram longas e exaustivas horas caminhando em cima dos meus pares de salto quinze sobre as calcadas desrregulares de Guarulhos, que feriram os meus pés, e o que me deixa ainda mais irritada além do calor.
É a difícil missão de procurar um emprego na área em que me formei.
É a péssima administração dos governantes. Me pego perguntando se o prefeito estaria contente se a sua cara fosse esburacada como as vias desta cidade?
Duvido. Ele daria um jeito.
Rio com escarnio sufocada pelo calor escaldante que me consome por baixo do conjunto surrado de calça e blazer em linho escuro.
Eu tenho que admitir, foi insano da minha parte escolher esse modelo de roupa em um dia tão quente como os que tem feito na cidade, mas o quê fazer?
Não tenho outra alternativa, é a única roupa apropriada que possuo, ela me deixa elegante e faz com que eu me sinta segura.
Para mim, não basta ter só uma ótima formação acadêmica, vestir a minha melhor roupa, isso quase nunca é relevante quando se trata de ser uma mulher preta.
O quê para mim é um grande orgulho, para algumas pessoas é um incomodo.
A disputa é acirrada.
Quando você não perde a vaga para um homem que muitas das vezes não tem nem se quer os requisitos exigidos para a vaga, mas a conseguia pelo fato de ser homem, tem também que lidar com tantas outras mulheres, loiras, lindas, cabelos lisos e longos, com os seus belissimos corpos esculturais, que são expostas como um objeto para atrair os clientes sem se importar quais são suas qualificações.
O quê faz com que muitas das vezes você duvide da sua capacidade como um profissional.
Rio enojada. O problema não está em mim, e sim em uma sociedade doente que muitos ainda não se deram conta.
Seco uma fina camada de suor que se formou em minha testa, entre os meus óculos de sol e as minhas pálpebras, me fazendo esquecer completamente da maquiagem que eu levei horas para fazer, estragando todo o trabalho que raras as vezes eu tinha êxito em executar.
Pensei em cada detalhe para estar bem apresentável caso surgisse uma entrevista de emprego de última hora, eu tinha esperança, sempre tenho, e hoje foi mais um dia em que acreditei cegamente que eu voltaria para casa com uma boa notícia, e mais uma vez eu me senti frustrada.
Nada consegui além de algumas bolhas nos pés.
Entreguei alguns currículos nas dezenas agências de emprego da cidade, sem obter sucesso. Todo o santo dia era a mesma coisa, eu batia de porta em porta em busca de uma chance, mas só o quê eu ouvia as recepcionistas dizerem eram: "Aguarde, nós vamos entrar em contato."
Mas não entravam, nunca entravam.
Rio frustrada.
Estava cada vez mais difícil ingressar no mercado de trabalho. Mas quem foi que disse que seria fácil?
Como diria a minha tia Dalva: "todo sonho para se tornar real requer esforço e dedicação."
Mas é só o quê eu venho fazendo nos últimos dias, me empenhando para encontrar um bom trabalho, para que eu possa ajudá-la nas despesas de casa.
Inspiro fundo exausta.
Passei a mão sobre meu pescoço livre dos cachos presos em um coque bem feito no alto da cabeça. Seco algumas gotas de suor que se formaram ali.
Após horas a fio andando, finalmente chego ao ponto de ônibus que de costume devido ao horário estava super lotado.
Faço uma careta ao umedecer os lábios ressecados e sinto o gosto salgado do suor resvalando em minha língua na tentativa de matar a minha sede.
No exato momento, minha atenção é roubada por uma bela senhora de aparência simpática, vestida em seu longo e elegante vestido de mangas curtas, azul escuro, coberto por estampas florais brancas, calçadas em um par de sapatos baixo também escuros, que protegia-se do sol sobre um guarda chuvas escuro.
O quê me fez pensar em minha avó paterna depois de tanto tempo. Se a tivesse conhecido, como seria a nossa relação?
Eu passaria os finais de semana em sua casa, a ajudando na cozinha enquanto preparava o almoço de domingo para a familia. Sentaria aos pés de sua poltrona enquanto fazia tricô. Me contaria sobre as muitas histórias de sua vida, nós iriamos trocar receitas, lhe contaria sobre meu relacionamento com Nando. Ela o aprovaria? Nós seríamos grandes amigas ou nada disso existiria? Se ela ainda fosse viva, nossas vidas seriam diferentes?
Fiquei por alguns minutos com os pensamentos fervilhando na cabeça. Os afastei para longe e me aproximei da senhorinha de rosto amável.
- Oi, boa tarde.
Ela se vira para mim e sorri gentil.
- Boa tarde, minha filha. Em que posso lhe ajudar?
- Desculpe incomodar, mas faz muito tempo em que a senhora está aqui no ponto de ônibus? - ela me fita com o cenho franzido, cismada, mas ainda assim mantém a sua finesse.
- Há alguns minutos, minha filha, porquê?
- A senhora sabe me dizer se o ônibus Continental já passou? Vim depressa para não correr o risco de perde-lo.
- Até o momento em que estou aqui, não o vi. - dá de ombros. - Ah, querida, esta linha leva uma vida para passar, é bom que tenha paciência.
Sorrio divertida com o seu comentário, afinal ela tinha razão.
- Verdade, mas tenho que esperar, não tenho outra opção. - dou de ombros conformada.
- Neste caso, boa sorte.
- Obrigada. - agradeço e me afasto em busca de um lugar para me abrigar do sol.
(...)
Uma hora de espera, e mais alguns minutos dentro do ônibus quando por fim ele se aproxima do meu destino.
Dei sinal, mas já era tarde demais, o motorista só parou no ponto seguinte.
Como dizia Ana: "o quê é um peido para quem está cágado?"
Rio alto, mas de nervoso chamando a atenção de algumas pessoas que passavam por mim.
Definitivamente hoje não é o meu dia,
e a vontade de chorar por ter que andar alguns metros a mais não me faltou. Estava suada, pés com bolhas, sede, fome e dezenas de sentimentos pesando dentro de mim só fez com que eu me sentisse ainda mais frustrada. Mas eu me mantive de pé, de nada adiantaria murmurar, aquela velha história de pior do que está não dá pra ficar é balela, murmura pra vê.
Em volto dos meus pensamentos, desço a longa avenida Suplicy até chegar a rua paralela que dá acesso ao pequeno corrego de um mau cheiro terrível. Mas valia o esforço, só para chegar em casa mais rápido.
- Oi, Malu. - ao adentrar na rua de casa, sou desperta do meu devaneio por Flávia, que saindo do carro estacionado em frente ao seu sobrado, vestida em seu uniforme branco de enfermeira, acena pra mim com sua costumeira simpatia.
- Oi, Flavinha. - digo enquanto nós nos aproximamos. Ela me cumprimenta com um beijo no rosto em seguido de um abraço amistoso.
- Não basta ser bonita, tem que ser cheirosa também. - diz ao se afastar do abraço. Revira os olhos acompanhado de um sorriso divertido.
Flávia e eu nos conhecemos desde que eramos pequenas, das poucas vezes em que vinha para casa da minha tia.
Nós brincávamos com outras crianças da vizinhaca de: queimada, taco, esconde esconde, policia e ladrão, pula corda.
Com o tempo, nos afastamos pelo fato de não frequentar tanto a casa da minha tia.
Tinha a responsabilidade com meu pai, o quê dificultava a minha vinda para cá. Mas a nossa reaproximação se dera após a tragédia que se instalou em minha vida.
Foi quando me mudei de vez para a casa da minha tia, e desde então não nos afastamos mais.
Naquele momento em que minha vida era só perda, ela foi a melhor coisa que havia acontecido. Amigos são anjos que Deus nos envia para aliviar um pouco o fardo um do outro.
- Olha só quem fala. - seus olhos azuis que tanto amo percorrem o meu corpo em seguida volta a me fitar. - Como você está, loirão?
- Eu estou bem, dividida entre o trabalho no hospital, e a correria dos preparativos do casamento e chá de cozinha de Sandra. Morri, mas passo bem. - rio.
- Vocês vão, não é? Sandra e mamãe não abrem mão da sua presença e da tia Dalva.
- Claro! Não poderíamos deixar de estar com ela em um momento tão importante.- digo feliz por ver que Sandra após tanto tempo estava realizando um sonho.
- Você sabe o quanto eu e a minha família gostamos de vocês.
- Eu sei, e a recíproca é a mesma amiga. Nós amamos a sua família também.
- Eu sei que sim. - encostamos no seu carro.
Realmente tínhamos muito apreço não só pela família da Flávia, como de todos os vizinhos da rua no qual cresci na minha adolescência.
Não se comparava à família na qual eu tinha em Osasco, mas todos eram amistosos, solícitos. Uma fofoqueira aqui, uma fofoqueira ali, mas nada com que não pudéssemos lidar.
- O quê me conta de novo? Tem falado com Ana?
- Nós nos falamos todos os dias, está bem na medida do possível. Augusto ainda desempregado, vivem como podem. E se segure para não cair. - ela me fita com o cenho franzido. - Ela está esperando o terceiro bebê.
- Uau! Eles não brincam mesmo em serviço. - rimos.
- Mais uma pobre criança para vir ao mundo e viver as tantas injustiças que nele há. - rio com escárnio - Eu não sei o quê ela tem na cabeça, três filhos em um cômodo que mal cabem eles.
- Alguma coisa precisa ser feita.
- Amarrar o pinto do Augusto. -ela gargalha seguido de jogar a sua cabeça para trás.
- Me desculpa, amiga, eu não consegui segurar.
Dei de ombros.
- Eu não sei em que momento a minha amiga se perdeu, ela tinha tantos planos, sonhos. - suspirei cansada.
- Mas nunca é tarde para se dar uma chance e recomeçar, ela só precisa querer.
- Essa é a questão. - ri em desânimo.
- Eu não sei o quê dizer, Malu.
- Poupe sua saliva, amiga, não há palavras que sejam ditas que possam reverter a vida que ela escolheu para si. Sei que ninguém tem nada haver com isso, mas eles não pode colocar seus filhos a esta situação. - digo com uma certa mágoa na voz. Mágoa por vê-los mesmo que sem nenhuma intenção expondo os seus filhos a viver uma vida precária.
- Fernando fica puto quando vou até lá e a ajudo como posso, ele vive me dizendo que é por isso que ela vive colocando filho no mundo, que eu sou a culpada. - eu a fito com desdém. - Você acredita que ele vive jogando na minha cara que sou culpada? Como se eu fosse a cama deles.
- Não me surpreende, Fernando é so mais um idiota que não sabe o quê diz.
- Ele não entende e acha que estou aqui para passar mão na sua cabeça, que sempre levo as coisas para eles. Mas o quê eu posso fazer? Deixar que passem fome? Eu não consigo, Flávia, eu não consigo deitar a minha cabeça no travesseiro e dormir em paz sabendo que as pessoas que eu amo estão passando dificuldades. Ou ir até lá e levar as coisas apenas para Mel, que é a minha afilhada.
- Eu sei que você não seria capaz.
- Eu não consigo. Além de que o dinheiro é meu e de minha tia, ele não ajuda com nada e nem quero, ou vai passar o resto da vida dizendo que está matando a fome deles.
- Você não existe amiga.
- Não seja exagerada. - bufo. - Penso que se cada um se colocasse um pouco no lugar do outro... Mesmo que eu tente, ainda assim não conseguirei sentir tudo, mas o pouco que sinto faz com que eu queira ver mudança e faça a minha parte.
- Voce têm tazao. Estava pensando em conversar com a assistência social do hospital e contar o caso dela. Quem sabe não conseguimos uma cirurgia de laqueadura, sei lá, algo que possa ajudar. - dá de ombros.
- Ai, Flávia, seria ótimo. - fico animada.
- E para ajudar, pensei em fazer uma campanha de arrecadação de roupas e alimentos para eles, e podemos marcar para levarmos juntas.
- Uma ótima ideia. Obrigada, amiga, você é um anjo.
- Você é quem me inspira. - me dá uma piscadela. Agradeço a Deus pelas boas pessoas que tem colocado na história do meu livro da vida.
- Mudando de assunto. Você e Nando já marcaram a data do casamento?
Suspiro.
Não quero contar, não agora que Nando tem me cobrado sobre a escolha da data e que me entrou a dúvida se é realmente isso que quero para a minha vida.
Estou confusa entre o amor que sinto por ele, e a maneira com que a nossa relação tem se desgastado.
Fernando vem tendo alguns comportamentos dos quais desconheço, não parece o mesmo homem romantico, apaixonado que conheci na faculdade.
- Sem previsão, amiga, estou desempregada. - desconverso.
- Mas você sabe que ele está contando com a ajuda dos pais dele, e não vai aceitar adiar para marcar. - arqueia rapidamente uma sobrancelha.
- Essa é a questão, não tenho nada contra a quem recebe ajuda da família, mas não acho certo. Eu acho que nós temos que conseguir as nossas coisas através dos nossos esforços.
- Entendo e concordo com você, mas você sabe que não irá ser fácil e conhece muito bem o namorado que você tem.
- Eu sei. - suspiro cansada. - Mas eu não abro mão de me casar sem antes conseguir uma vaga de emprego. - digo incisiva, acompanhada de uma piscadela.
- Não encontrou nada ainda?
- Nada. - faço uma careta em frustração.
- Hey, não fique assim. - deita sua cabeça sobre meu ombro. - logo você vai encontrar algo.
- Deus te ouça. - deito minha cabeça sobre a sua.
- Vamos lá, se anima. - se afasta e me fita esperançosa. - Eu estava pensando em ir ao cinema hoje, amanhã estou de folga, o quê acha?
- Eu adoraria, amiga, mas já combinei de sair com o nando, estamos mal das pernas, vamos tentar colocar as coisas no lugar.
- Hum! Quer conversar?
- Não quero te incomodar com os meus problemas.
- Que história é essa? Voce não me incomoda em nada, mas quando se sentir a vontade de desabafar, saiba que eu estarei sempre aqui.
- Eu sei, amiga. Obrigada. - sorrio agradecida.
- Bom, eu tenho que ir agora. Nos falamos amanhã? - eu a cumprimento com um beijo rápido no rosto.
- Vai rolar um churras sábado na casa do Edu. Vamos?
- Eu não sei. Estou sem dinheiro e estou economizando para ajudar a minha tia com as despesas.
- Não se preocupe, deixe por minha conta.
- Eu não quero abusar.
- Não é abuso, afinal amigas são para essas coisas. Uma pela outra lembra? - assinto com a cabeça.
- Eu amo você, amiga.
- Eu também amo você.
Me despeço de Flavia e desço a rua a caminho de casa.
- Tia? - passo pela porta chamando por ela, que cantarola uma das músicas de sua dupla sertaneja favorita, Milionário e José Rico.
- Aqui na lavanderia, querida. - deixo minha bolsa sobre o sofá da sala, passo pela cozinha e vou ao seu encontro.
- O quê está fazendo aí?
- Deixando a toalhas lavadas. a próxima semana eu volto ao trabalho, quero deixar tudo organizado.
- Porque não deixou isso aí que eu mesma cuidava? - me aproximo dela que está retirando algumas toalhas de banho para estender. Beijo sua testa. - Benção, tia.
- Deus abençoe, querida. Você sabe que gosto de ocupar o meu tempo, além do mais que não tive trabalho nenhum, a máquina lavou tudo. - rimos.
- Chegou agora?
- Faz um tempinho, eu estava na Flávia.
- Na Flavinha? Como ela está?
- Bem, me lembrou do casamento de Sandra.
- Claro! Nós vamos. Sandrinha, assim como toda família, são muito queridos. - assinto com a cabeça em concordância. - Qual é o motivo dessa carinha tristonha?
- Estou cansada, os meus pés estão me mantando.
- Tem certeza que é só isso?
-Claro que não é só isso. Hoje foi mais um dia em que caminhei em vão, não consegui encontrar nada. - encosto na parede enquanto ela estende as roupas.
- Nada é em vão, querida. Deus está vendo todo o seu esforço, e muitas das vezes Deus testa nossa fé, não fique triste por isso, não tem faltado nada para você.
- Eu não estou reclamando, tia, só não acho justo ficar as suas custas.
- E desde quando ajudar a uma familiar é ficar nas custas? Você só está passando um mal momento. Nunca ficou encostada, sempre foi a luta em busca dos seus sonhos, se formou na faculdade com muito esforço. - diz com orgulho visivel em seu semblante. - A hora certa você vai encontrar seu trabalho.
- Eu entreguei para qualquer cargo que aparecer.
- Mas filha, você não pode baixar sua carteira. - descansa as suas mãos uma de cada lado da cintura.
- O quê eu não posso tia é ficar dependendo da senhora e do Nando ainda mais agora.
- Falando nele, como vocês estão?
Encosto meu quadril na máquina, tiro um sapato, em seguida do outro.
- Hoje vamos sair para conversar, eu espero que tudo se resolva, não sei mais o quê fazer com tantas brigas, os seus ciúmes tem me sufocado.
- Espero que tudo se resolva entre vocês.
- Eu também tia, eu também. - respirei fundo. - Precisa de ajuda?
- Não, querida, está tudo sobre controle.
- Eu vou tomar um banho.
- Está bem, vou esquentar o nosso almoço.
- Eu já desço para arrumar a mesa.
- Não se preocupe.
- Eu me preocupo sim. - rimos. Eu beijo a sua testa e saio a caminho do meu quarto.