Por que Kate - uma mulher que Sam admirava por sua coragem e visão clara - achou melhor deixar a fazenda para ele quando tinha mais de uma dúzia de descendentes para escolher? Kyle era o menos apropriado para administrar a fazenda, o candidato menos provável a adotar Wyoming como seu lar. Por que não Grant, que nunca deixara Clear Springs? Ou Rachel, que tantos na cidade achavam tão parecida com a avó? Rocky, prima de Kyle, era aventureira, uma piloto, e sempre amara Clear Springs. Mas não, Kate escolhera Kyle e depois o prendeu aqui por seis longos meses - tão perto de Sam.
Andando silenciosamente até a pia, suspirou baixinho, abriu a torneira e jogou água fria no rosto, deixando escorrer para a blusa.
- Cristo! - ela sussurrou antes de tomar um longo gole de água da torneira. Se tivesse alguma coisa na cabeça, chamaria Kyle, diria que precisavam conversar e, quando estivesse cara a cara com ele de novo, admitiria que tinham uma filha, uma linda menina sapeca.
- Certo. Agora, fazer o quê? - pensou alto enquanto enxugava a boca na manga. Ou Kyle daria no pé - se a história se repetisse - ou exigiria prova da paternidade e, quando os exames de sangue estivessem prontos, pediria custódia compartilhada. - Dane-se... - ela parou quando viu o reflexo de Caitlyn na janela atrás da pia. - O que você está fazendo acordada?
- O que você está fazendo falando sozinha?
Sam suspirou e endireitou as mangas arregaçadas até os cotovelos. Com o sorriso especial reservado só para a filha, levantou um ombro.
- Tá certo. Você me pegou... Acho que estou chateada.
- Por causa do seu amigo? - Caitlyn a olhava de um jeito estranho. Franzia o rostinho de nove anos com preocupação, os olhos azuis dos Fortune acusando-a silenciosamente.
- É, por causa dele.
- Você sempre me diz para não deixar que outras pessoas me aborreçam.
- É um bom conselho. Acho que vou segui-lo. Agora, por que você não explica por que está acordada tão tarde? Achei que tivesse ido para cama uma hora atrás.
- Não consegui dormir - disse Caitlyn encolhendo os ombros, mas as linhas de preocupação não suavizaram em sua testa.
- Por que não?
- Está calor.
- E...? - Sam a encorajou, se aproximando da filha e gentilmente a conduzindo para as escadas que levavam ao quarto.
- E... - Caitlyn mordeu o lábio.
- O que é?
- É Jenny Peterkin - Caitlyn finalmente admitiu juntando as sobrancelhas.
- O que tem a Jenny? - Samantha não estava gostando do rumo da conversa. Jenny era uma menina mimada de dez anos que era o carma da vida de Caitlyn desde a segunda série.
- Acho que ela me xingou.
- Você acha?
- Acho. Enquanto você estava na cocheira, o telefone tocou e alguém me chamou e disse que era Tommy Wilkins, mas não parecia ele e eu ouvi risos. - Ela engoliu em seco e olhou para o chão.
- O que o Tommy, a Jenny ou seja lá quem for disse?
- Que eu sou... sou uma bastarda.
Meu Deus, dai-me forças.
- Você sabe muito bem, minha querida Caitie, essas pessoas do telefone são crianças malvadas - disse Sam, se corroendo por dentro por causa da filha. - Eles não sabem nada sobre você. - Ela abaixou e passou os braços em volta dos ombros de Caitlyn. Não era a primeira vez que ela sentia a falta de um pai, e provavelmente não seria a última, mas cada vez doía um pouco mais.
- É verdade?
- O quê?
- Procurei a palavra no dicionário e... e eu sou. Não tenho pai.
- É verdade que eu não me casei com seu pai, mas você tem um. Todos têm um pai.
- Onde está o meu? Quem é ele? - O lábio inferior de Caitlyn tremia e os olhos estavam marejados de lágrimas.
- Ele é um homem que mora muito longe. Já disse isso. - Por que agora? Com Kyle tão perto, por que aqueles pirralhos tinham de lembrar que Caitlyn não tinha um pai agora?
- Você disse que um dia eu iria encontrá-lo.
- E vai.
- Quando?
Com um sorriso triste, Sam disse:
- Acho que mais cedo do que eu queria.
- Vou gostar dele? Sam assentiu.
- Acho que sim. A maioria das pessoas gosta.
- Mas você não.
- É mais complicado do que gostar dele ou não. Você vai ver. Então, gostaria de um lanchinho antes de voltar para cama?
Caitlyn estreitou os olhos como se soubesse que estava sendo manipulada. Aos nove anos, não era mais tão fácil distraí-la quanto antes.
- Mas, mãe...
- Da próxima vez que Jenny, Tommy ou seja lá quem for ligar, diga para eles deixarem você em paz. Melhor, não diga nada, só me dê o telefone. Falarei com eles. Agora você está melhor?
- Acho que sim. - Ela enxugou as lágrimas e o trauma, pelo menos neste momento, parecia ter passado. Suspirando alto, Caitlyn foi até a janela e olhou em direção à cocheira. Passou os dedos pelo peitoril. - Estive pensando. - Lançou um olhar astuto para a mãe.
- Sobre?
- Você me prometeu um cavalo de aniversário, lembra?
- Prometi, mas seu aniversário é só na primavera.
- Eu sei, mas o Natal é antes disso.
- Ainda falta meio ano. - Seis meses, o mesmo tempo que Kyle teria de ficar em Wyoming.
Juntas, mãe e filha subiram as escadas estreitas de madeira até o pequenino quarto de Caitlyn, o mesmo quarto que Sam passara sua infância. Ela abriu a janela. Uma brisa leve fez as cortinas desbotadas voarem, trazendo consigo o aroma de terra seca e rosas do jardim. Grilos cantavam, seu coro suave às vezes interrompido pelo gemido de um bezerro ou pelo uivo de um coiote no alto das montanhas.
Caitlyn se jogou na cama - a mesma cama com dossel duplo em que Sam dormira - e tentou encobrir um bocejo.
- Eu amo você - ela murmurou no travesseiro, naquele momento parecendo tanto com Kyle que o coração de Sam até doeu.
- Eu também. - Sam beijou a bochecha rosada da filha, mas antes que pudesse pegar a empoeirada calça jeans e a camiseta do chão, Caitlyn se agitou.
- Deixe a luz acesa.
Sam juntou as roupas sujas mas não saiu do quarto.
- Por quê?
Levantando os ombros, Caitlyn suspirou:
- Não sei.
- Claro que sabe. Você dorme no escuro desde os dois anos. - Os cabelos da nuca de Sam se arrepiaram. - Tem alguma coisa errada? - ela perguntou. - Alguma coisa além das ligações de Jenny Peterkin?
Caitlyn mordeu o lábio, um sinal claro de que mais alguma coisa a perturbava.
Ainda segurando a roupa suja, Sam abaixou-se no pé da cama de Caitlyn.
- Tá bom, querida, pare de enrolar. O que é?
- Eu... não sei - admitiu Caitlyn, fazendo um beicinho de preocupação. - Só uma sensação.
A garganta de Sam ficou seca.
- Uma sensação? De quê?
- Como... como se alguém estivesse me observando.
- Alguém? Quem?
- Não sei! - disse Caitlyn, puxando a colcha até o pescoço, apesar de estar uns trinta graus no pequeno quarto.
- Você viu alguém? - Meu Deus, será que tinha alguém seguindo sua filha? Isso acontecia com pessoas famosas na cidade, mas às vezes alguns pervertidos seguiam crianças... Por favor, Deus, não!
- Não vi ninguém mas... é como se, você sabe, quando você sente que tem alguém olhando. Às vezes, Zach Bellown me olha engraçado, e mesmo a carteira dele sendo atrás da minha e não podendo ver, eu sei que ele está me olhando. É estranho.
- É claro que é - disse Sam com o coração palpitando. - Mas se você não viu ninguém... Quando isso aconteceu?
- Umas duas vezes na escola e depois uma vez na loja.
- Alguém estava com você quando isso aconteceu? Uma coleguinha, uma professora ou alguém que possa ter visto quem estava observando você? - perguntou Sam, tentando loucamente não entrar em pânico, sentindo o estômago revirar.
Caitlyn negou com a cabeça.
- Então por que você está... preocupada hoje? Caitlyn mordeu o lábio de novo.
- Só me sinto estranha.
- Bem, isso acontece! - Sam colocou um sorriso no rosto, mas estava se contorcendo por dentro. - Você vai dormir comigo. E não se preocupe com ninguém observando você. Temos o melhor cão de guarda do mundo...
- Fang? - Caitlyn riu, a preocupação desaparecendo de seus olhos.
- É, e eu tranco todas as portas e janelas à noite. De qualquer forma, isso provavelmente é só sua imaginação. Vamos lá.
Arrastando a colcha com ela, Caitlyn saiu correndo do quarto pelo corredor e pulou na cama de casal de Sam. Escondeu-se toda embaixo das cobertas.
- Podemos ver televisão? - ela perguntou com um brilho nos olhos.
- Achei que você estivesse cansada.
- Por favor...
Sam concordou, imaginando se não teria sido enrolada pela mais jovem atriz do planeta. Verificou duas vezes as fechaduras das portas, certificou-se de que Fang estava em sua posição favorita perto da base das escadas, depois lançou um olhar pela janela da cozinha para a Fazenda Fortune. A noite, iluminada pela lua crescente, estava serena. O único problema imediato que surgia em seu futuro era Kyle Fortune. Sam subiu as escadas, escutou o estalido que o terceiro degrau sempre fazia, mas sabia que sua vida e a de Caitlyn nunca mais seriam as mesmas.
Kyle bateu em um mosquito com a prancheta enquanto andava pelos estábulos e olhava barris de grãos, equipamentos, suprimentos veterinários, ferramentas e fardos de feno. Embora ainda fosse cedo, quase nove horas, ele já estivera na cocheira, no alpendre, na casa de máquinas e na casa da bomba. Queria comparar com as notas e gráficos que estavam no livro-caixa e depois passar os dados para o computador que encomendara por telefone. Laptop, modem, software, impressora já estavam a caminho. A Fazenda Fortune finalmente entraria no século vinte e um.
Os estábulos pareciam mofados e fechados, o ar denso já estava esquentando. Um cheiro forte de estrume, couro, suor e urina de cavalo se misturavam ao familiar odor que sempre associara a este lugar. Baldes, forcados, pás e ancinhos pendiam de ganchos nas paredes. Perto do extintor de incêndio estava um lampião a querosene pronto para ser aceso caso faltasse eletricidade.
Escutou Curinga, o único garanhão que ficava perto dos prédios, soltar um relincho penetrante. Kyle concluíra que o garanhão era um problema, mas sentiria falta do animal manchado quando Grant decidisse levá-lo embora. Kyle sempre associaria o Appaloosa ao reencontro com Sam.
Com a imagem do cavalo bloqueando seus pensamentos, tirou os óculos do bolso e colocou-os enquanto saía. Raios de sol refletiam no metal do telhado da casa de máquinas.
O garanhão relinchou de novo.
- Tudo bem, garoto - entoou uma voz de criança. Kyle parou mortificado. Sentada no parapeito mais alto da cerca estava uma menina - que devia ter entre oito e doze anos, ele supunha - falando com o maldito cavalo. Cabelos louros avermelhados saíam do que já fora um rabo de cavalo, os braços e pernas que se estendiam da calça jeans e da camiseta amarela eram longos e bronzeados. Calçava botas e tinha poeira e fuligem espalhadas pela roupa. Ele não conseguia ver o rosto quando ela virou para o outro lado, concentrada no cavalo.
- O que você está fazendo aqui? - A menina se assustou e quase caiu da cerca ao olhar por cima dos ombros.
- Quem é você? - Os olhos azuis que sobressaíam entre as sardas estavam indignados.
- Opa! Essa fala é minha! - Ele foi adiante e percebeu em um instante que ela era filha de Samantha. Tinha a mesma postura orgulhosa do queixo, os mesmos lábios carnudos e o nariz reto levemente arrebitado.
- Eu sou Caitlyn - ela disse com um tom de provocação, para ver se ele o desafiaria. Tal mãe, tal filha. - Caitlyn Rawlings.
- Prazer em conhecê-la. Sou Kyle Fortune. - Ela o encarou sem se esquivar, mantendo o olhar, diferente da maioria das crianças que ele conhecia. - Conheço sua mãe. Ela está aqui?
- Não. - A menina ficou um pouco embaraçada ou porque não confiava nele ou porque sabia que estava onde não deveria estar.
Ele se inclinou sobre a cerca, observando a criança que se parecia tanto com a mãe.
- Mas ela sabe que você está aqui?
Caitlyn mordeu o lábio inferior, como se imaginando uma mentira. Em vez disso, tentou enrolar.
- Mais ou menos.
- Bem, ou sabe ou não sabe.
Os olhos da menina, de um tom de azul como o céu de verão, abaixaram.
- Ela acha que fui para a casa de Tommy. Ele mora lá... - Ela apontou o dedo para o oeste. - Mas peguei um atalho pelo campo e...
- Acabou aqui conversando com Curinga.
- Isso. Acho melhor correr - ela falou como se de repente percebesse que teria problemas. Pulou para o chão e limpou a poeira das mãos, então hesitou. - Fortune. Como a dona Kate?
- Ela era minha avó.
- Você é sortudo - ela disse sorrindo. Isso ele não poderia discutir.
- Ela me deixou esta fazenda.
- Então você mora aqui agora? - Ela abriu a boca em admiração e os olhos azuis brilharam como o sol em um lago na montanha. - Uau, você é mesmo sortudo.
- Também acho. De qualquer modo, ficarei aqui por um tempo. Até o Natal. - Por que ele se sentia obrigado a contar sua história? Provavelmente a clareza de seus olhos. E no fundo, sempre gostara de crianças.
- E depois?
- Provavelmente venderei a fazenda.
- Por quê?
- Estará na hora.
- Se eu fosse a dona, nunca venderia. Minha mãe diz que é a melhor fazenda do vale.
- Ela diz? - Kyle não conseguiu evitar um sorriso. Essa Caitlyn Rawlings era uma criança interessante. Precoce, esperta, e ele suspeitava, bem astuta.
Ela já estava descendo a alameda.
- Tenho de ir. Mamãe vai ligar para a casa do Tommy se eu não ligar primeiro para avisar que já cheguei.
Por instinto, ele sabia que ela era levada, apanhava gafanhotos, mergulhava nos riachos e provavelmente atirava com uma 22 e construía fortes com os fardos de feno. Ele tinha dúvidas se ela alguma vez brincara de boneca, vestira as roupas velhas da mãe ou brincara de panelinha. É, ele pensou, a olhando passar entre o arame farpado e começar a correr pelos campos, com certeza ela é filha de Sam.
- Olha só você - disse Grant ao entrar pela porta de tela e ver o meio-irmão logo depois de ter encontrado Caitlyn. - Se não o conhecesse tão bem, diria que é um autêntico cowboy.
- Claro - Kyle falou cheio de sarcasmo.
- Tem café?
- Instantâneo.
O sorriso de Grant ficou ainda maior.
- O quê? Nada de expresso ou cappuccino, ou seja lá o que for, que vocês tomam na cidade?
Kyle bufou. Não podia discutir. Seu dia em Minneapolis geralmente começava com um latte duplo, embora não quisesse admitir aqui. Mas tinha de reconhecer que as malditas botas de cowboy machucavam um pouco e o jeans, recém-comprado no armazém local, ainda estava apertado.
- Olha, pode me insultar o quanto quiser, estou apenas enrolando até poder vender a fazenda e me mudar.
- Muito nobre - observou Grant.
- Quem disse que era nobre?
- Ninguém. Pode acreditar.
- Foi o que pensei.
Nunca fora o tipo de pessoa que se engaja em causas nobres, não sabia por que algumas pessoas se importavam. Ah, claro, mantinha um respeito ressentido pelas pessoas que lutavam pelo que acreditavam, mas não ficava surpreso quando a luta virava e os antigos heróis quebravam a cara. Kyle acreditava que se não infringisse nenhuma lei e não pisasse nos calos de ninguém, nada mais importaria. Seu único arrependimento, que ele enterrara mais fundo do que admitiria, era Sam. Revê-la apenas fez com que se lembrasse de como eram próximos. Mas isso foi há muito tempo. Eram crianças. Eram tão errados um para o outro como agora.
Grant pendurou o chapéu em um gancho atrás da porta, depois se sentou em uma cadeira perto da velha mesa, a mesma cadeira com ripas horizontais que gostava quando criança, enquanto Kyle servia para os dois uma xícara de algo que chamava de café.
- Então, você viu Sam de novo? - disse Grant enquanto Kyle lhe entregava uma caneca muito quente.
- Ontem, ela estava trabalhando com o demônio que você herdou.
- A única que consegue tratar dele.
- É mesmo?
- Sam se transformou em uma excelente amazona. Havia um tom de admiração na voz do meioirmão?
Por alguma razão, Kyle sentiu uma pontada de ciúme.
- Acho que sim.
Talvez Kyle consiga domá-lo.
- Só se for em sonho - respondeu Grant.
- De jeito nenhum. - Kyle levantou as mãos. - Não tenho nada a ver com essa fera.
Ela murmurou alguma coisa que tinha a ver com pirralhos mimados e colheres de prata.
- Temos um trato - Grant lembrou a ela.
- Cancelado quando Kate deixou a fazenda para seu irmão.
- Ei, esta briga não é minha - disse Kyle.
Sam passou os dedos pelo cabelo que estava bem puxado para longe do rosto. Algumas nuvens encobriram seus olhos.
- Tudo bem - ela disse para Grant. -Vou cuidar de Curinga por alguns dias, depois vou embora daqui.
- Qual é o problema? - Grant olhou de Kyle para Sam. - Briga de namorados?
A cor sumiu do rosto dela.
- Apenas tenho bastante coisa para fazer na minha fazenda.
- Justo. - Não parecia que Grant acreditara completamente no que ela dissera, mas não queria pressionar. - Só preciso poder pegar Curinga antes de a égua de Clen James entrar no cio.
- Sem promessas. Farei o meu melhor.
- É tudo que peço. - Grant colocou o chapéu. - Tenho de ir à cidade comprar uma peça para meu maldito trator. Até mais. Bateu com a palma da mão no portal enquanto saía, depois hesitou na varanda, a porta de tela ainda aberta, encostada em seu ombro.
- Kyle, mamãe ligou hoje de manhã e disse que Rebecca andou dizendo que contratou um detetive particular para investigar a causa do acidente de Kate.
- Achei que tivesse sido apenas um acidente, falta de equipamento ou coisa assim.
- É, isso foi o que todo mundo pensou, mas você conhece nossa tia. Ela gosta de mexer em casa de marimbondos.
Kyle teve uma sensação parecida com pavor. Rebecca era a filha mais nova de Kate e Ben, e apesar de tecnicamente ser sua tia, era apenas alguns anos mais velha. Uma escritora de mistério, Rebecca era conhecida por ter uma imaginação fértil.
- Então, o que ela acha?
- Quem sabe? Por mim, ela deveria parar de trabalhar e sossegar.
- Ah, como você?
Grant lançou-lhe um olhar misterioso.
- Só não se surpreenda se ela ligar. Até mais, Kyle. Sam. Samantha observou enquanto ele se afastava e hesitou
por um momento. Estava sozinha com Kyle. De novo. Era o que ela queria. Era mesmo? Ao ver Grant indo embora, tomou consciência de que o ar na casa parecia mais pesado, denso com emoções silenciosas, e não conseguiu respirar direito. Estar tão perto do homem que um dia quebrou seu coração era surreal.
- Por Deus, não entendo por que Kate deixou a fazenda para você - ela disse, desatando os nós que de repente prenderam sua língua. - Grant ou Rocky...
- Eu sei, eu sei. Você já disse que praticamente qualquer um da família teria sido uma escolha melhor.
Ela levantou o queixo e seus olhares se encontraram.
- É exatamente o que eu penso.
- Até Alisson?
Seus lábios se contraíram na menção da prima de Kyle, tão bonita e sofisticada, feita para o brilho e o ritmo acelerado da cidade.
- Até a Kristina.
- Não a Kris - implicou ele.
- Absolutamente! Sua irmã pode ser mimada mas pelo menos sabe o que quer da vida! - Sam nunca conseguira guardar sua opinião para si mesma, especialmente com Kyle. - Acho que sua avó não estava com a cabeça no lugar quando deixou este lugar para você.
- Eu não poderia adivinhar.
Dane-se sua maldita fala e seu sorriso sensual.
- O que mais você sabe? - ela perguntou.
- Tenho o pressentimento de que você vai me contar, mesmo que eu não queira saber, então é melhor ouvir. - Ele abriu um sorriso malicioso e ela teve vontade de esbofeteá-lo. Ele a estava irritando, conscientemente ou não. Bem, ele perguntou. Ela com prazer diria a ele.
- Você não vai conseguir ficar aqui por seis meses, Kyle. Vai dar no pé antes de completar o que veio fazer. Nunca passou um inverno aqui, passou? Às vezes a eletricidade acaba e se você não conseguir ligar o gerador, tem de confiar na lareira para se aquecer. Tem de abrir caminho para os estábulos através da neve profunda, derreter água para provisão e viver com mingau de aveia, feijão em lata, batatas e maçãs guardadas na despensa. Não há televisão nem rádio, exceto um transistor, se as baterias não estiverem baixas, e nenhum carro com tração nas quatro rodas vai conseguir atravessar. Será apenas você e sua inteligência, tentando sobreviver contra a Mãe Natureza e, no seu caso, aposto que ela ganha de mãos amarradas.
- Quanto?
- O quê?
Quanto você quer apostar? - ele perguntou, os olhos repentinamente perigosos. Ele cruzou a pequena distância que os separava e a encarou com uma expressão tão turbulenta quanto uma nuvem trazendo tempestade. Ela sentiu o hálito quente em seu rosto.
- Não preciso fazer uma aposta por que você já perdeu. Você não vai herdar este lugar porque você, Kyle Fortune, nunca perseverou em nada por tempo suficiente para ver acontecer. Foi por isso que Kate colocou aquelas cláusulas em seu legado, e é bom que ela esteja morta porque você a desapontaria no dia em que as coisa ficassem feias e você desistisse.
Ela o encarou em desafio e então ele viu: uma nuvem cruzando seus olhos, um tremor nos cantos de seus lábios, um sentimento que ela tentava desesperadamente esconder.
- Foi isso que você veio aqui me dizer?
- Só vim pegar as minhas coisas. - Ela partiu para o escritório, mas ele agarrou seu braço, os dedos apertando o cotovelo.
- Não acredito nisso.
- Kyle, me deixa em paz.
- Tem mais alguma coisa, Sam. Alguma coisa que está aborrecendo você.
O mais importante. Ninguém jamais mexera com ele como Samantha Rawlings. Um olhar dela e ele derretia; um leve movimento de sua boca, e ele ia à estratosfera; ver dor em seus olhos o faria querer matar o bastardo que a machucasse.
Um lado do lábio dela estava levantado com um sorriso sarcástico.
- Certo, Kyle, como você é perceptivo. Poderia ser... deixe-me ver... o fato de você ter ido embora dez anos atrás sem me dizer adeus, não ligar, não escrever, apenas mandar um convite formal do seu casamento para minha família?
Ele soltou um som por entre os dentes.
- Deus, Sam.
- Você pediu. - Ela soltou o braço de seus dedos e avançou pela cozinha até o corredor. Ele a alcançou quando ela já estava saindo, a jaqueta embaixo do braço, um caderno de endereços e uma caneca de café na mão.
- Acho que devíamos conversar.
- Tarde demais. - Outra nuvem passou por seu olhar, e ela sentiu o chão faltar por um instante.
- Nunca é tarde demais.
Ela soltou um leve grunhido de defesa.
- Ah, Kyle, se você soubesse.
- Soubesse o quê?
Girou para encará-lo e largou a caneca, que caiu no chão e se quebrou em mil pedaços.
- Ah, pelo amor de...
Esqueça isso. - Os dedos dele mais uma vez apertaram seu braço.
- O quê?
- Limparei isso mais tarde. - Ele sentiu uma premonição de um segundo, como se estivesse na beira de um abismo emocional sem fundo e o chão em que estava pisando estivesse desmoronando embaixo de suas botas. - Você estava quase confiando em mim.
Ela engoliu em seco.
- Esta... esta não é a hora. Há muito o que dizer. A maioria não tem muita importância, mas... bem, algumas coisas são importantes.
- Que coisas?
Ah, Deus, ela conseguiria dizer? Contar a ele que ele era pai? Vamos lá, Sam, agora é a hora. Deixe de ser tão covarde.
Ele a estava encarando, esperando, com seus olhos azuis glaciais. Ela conseguia escutar o coração batendo. Quantas vezes imaginara este momento, sonhara em contar-lhe toda a verdade, mesmo só tendo segurado o telefone ou começado uma carta para depois soltar o gancho ou abandonar a página não acabada?
- Sei que fui embora de repente... Ela soltou um som sarcástico.
- Você provavelmente pensou que teríamos um futuro, e poderíamos ter tido, mas...
- Não! - Ela se afastou da verdade mais uma vez e se esquivou dele até a porta.
- Sam...
- Outra hora, ok? Podemos relembrar o passado uma outra hora, agora não tenho tempo a perder.
Tenho de pegar Caitlyn e... voltarei mais tarde para trabalhar com o cavalo.
- Conheci Caitlyn esta manhã.
- Você o quê? - Ela sentiu o rosto perder toda a cor. Ele conhecera Caitlyn? Ah, meu Deus.
- Ela parou por aqui a caminho da...
- Casa de Tommy Wilkins?
- Isso mesmo. Parece uma ótima menina. Você fez um trabalho maravilhoso com ela.
- Ah, obrigada. - Ela mal conseguia respirar. Molhando os lábios, silenciosamente se chamou de covarde, mas não conseguia se acalmar para contar a verdade a ele. - Olha, tenho de correr. Foi para a porta de novo.
- Você sabe, Samantha, que eu não quis machucá-la.
Essas palavras esmagaram sua alma. Os passos vacilaram e sentiu o coração em retalhos. Um bolo se formou na garganta.
- Não se preocupe com isso... Você não me machucou. Sam ouviu as botas dele no assoalho atrás dela. Bateu a porta dos fundos, passou pela varanda e desceu correndo os dois degraus empoeirados antes que ele a alcançasse. Ele a segurou pelo ombro.
Samantha. Deus me ajude.
- Por favor, me ajude aqui.
- Não posso. - Ela estava morrendo por dentro, desejando contar para ele, feri-lo, machucá-lo, mas não conseguia, não desta maneira, não até que soubesse que ambas, ela e Caitlyn, estavam preparadas. Ah, meu Deus, que confusão!
- Você está fugindo de mim.
- Acho que aprendi a lição. Tive um bom professor. Ele parou em frente a ela, sua sombra caindo sobre o rosto dela.
- O que está acontecendo?
- Só acho que é um pecado uma mulher tão esperta como a Kate deixar esta fazenda para um playboy urbano que não sabe diferenciar a parte da frente de um cavalo da parte traseira.
- Você é uma mentirosa nojenta.
- E você é um amante nojento!
Ele a fitou boquiaberto e ela mordeu a língua. Isso não era o que ela queria dizer, mas não retiraria as palavras. Apesar de rápido, o relacionamento que tiveram fora quente, selvagem, de tirar o fôlego. Ela era virgem e ele tinha dezoito anos, excitado como um potro. Ela lutou contra as lembranças e o formigamento na pele.
- Apenas me deixe em paz, Kyle.
- De jeito nenhum.
- É isso que quero. Não sou mais uma menina ingênua de dezessete anos que beija o chão que você pisa.
Ele contraiu o maxilar.
- Você queria a verdade? Conseguiu. - Dez anos de fúria tomaram conta da língua dela. - Eu achava que te amava, mas você não se importou comigo. Ah, claro, eu era diversão garantida na hora que você queria uma rapidinha no celeiro ou no riacho, mas certamente não uma pessoa para se casar e se importar.
- Deus - ele murmurou.
- Eu não teria me importado, Kyle, não teria dado a mínima, mas três ou quatro meses depois, você se casou. Assim! - Ela estalou os dedos no rosto dele. - Você nem teve a coragem de ligar.
Porque eu signifiquei muito pouco.
Um músculo tremeu no canto do olho dele.
- Apenas uma menina do campo que era boa para satisfazer seus desejos, mas não boa o suficiente para... para...
- Para o quê? Casar? - Ele colocou seu rosto perto do dela. - Era isso que você queria?
Só queria que você me amasse.
Acho que na época eu queria. Acreditava em compromisso. Sorte minha você ser tão volúvel.
Senão teria cometido o maior erro da minha vida.
- Se você estava tão interessada em compromisso, o que aconteceu com o pai de Caitlyn?
- Nem pergunte - ela avisou, recuando.
- Você começou.
- Acho que seria melhor mantermos minha filha fora dessa conversa. - Ela não esperou uma resposta, apenas passou por ele e subiu na cabine da caminhonete.
Sam sentiu as bochechas quentes e o pulso latejava com força ao olhar pelo espelho retrovisor. Kyle não se mexera. Ficou parado, as pernas plantadas mais abertas do que os ombros, o cabelo liso voando ao vento enquanto olhava para ela.
O coração dela deu um salto doloroso. Lágrimas ameaçaram mas ela se recusou a deixá-las cair. Os dedos apertando o volante enquanto silenciosamente amaldiçoava o dia em que conhecera Kyle Fortune e se encantara com seu sorriso tão sensual.