Capítulo 3 Lobos e ursos

Engoli em seco ao ver a faca em sua mão enquanto ele me encarava, um filme sangrento passou pela minha mente.

- Eu não tenho medo de você. - Falei - Só não confio em você, mas é porque não te conheço.

Ele deu as costas indo para a geladeira pegando pasta de amendoim.

- Então me conheça enquanto faço o seu lanche.

Porque sempre parecia que ele estava debochando de mim?

- E o que te faz pensar que eu quero conhecer você? - Cruzei os braços.

- E ainda assim você atrai as pessoas... - murmurou para si mesmo, mas ainda assim fazendo eu ouvir - Você deve querer saber algo sobre o seu salvador.

Então eu tinha um passe livre para saber o que eu quisesse do William, qualquer coisa.

- Porque você me tratou mal?

- Eu não te tratei mal.

- Ah é? Se você diz... então porque você me tratou "bem"? - Fiz aspas com os dedos.

Ele sorriu enquanto passava a pasta de amendoim nas torradas que tirou da torradeira.

- Você tem senso de humor. - Falou, permaneci calada - Eu sou assim Melanie.

- Porquê?

- É melhor que as pessoas fiquem longe de mim. - Empurrou o prato de torradas e pasta de amendoim até mim - inclusive você... ou principalmente você.

- Porque eu ficaria longe de você? - Peguei o prato.

- Agora estou curioso - sorriu cruzando os braços, vi a manga cumprida da blusa delineando os músculos dos braços - Porque você não quer ficar longe de mim?

Se escorou as costas no balcão com a ilha da cozinha ente nós.

- Eu não disse isso. O que eu quis dizer é que vai ser difícil ficar longe já que fazemos biologia juntos.

- Isso é uma verdade perigosa.

- Então porque é melhor ficar longe de você? - Não toquei na comida.

- Muitos porquês...

- Só quero conhecer meu salvador, como você mesmo disse. - Falei largando o prato na ilha.

- Você só precisa saber que deve ficar longe de mim.

- Porque você é melhor do que todo mundo? - Cruzei os braços.

- Não escuta o que aqueles seus amigos dizem, nada que sai da boca deles faz sentido. - Andou de um lado para o outro.

- Eles são os únicos que parecem... - me calei - Espera... não tinha como você escutar... você estava sentado do outro do refeitório!

- Eu estava, mas seus amigos fazem questão de que todos escutem o que fofocam.

Não lembrava de termos falado alto o bastante. Mas ele tem razão, do contrário não teria escutado.

- Agora é minha vez. - Anunciou - Quando veio para Seattle e porquê? Onde estava antes disso?

- Muitas perguntas para quem você quer que fique longe.

- Não disse que quero que fique longe... disse que seria o melhor a se fazer.

Revirei os olhos, tudo era um tipo de jogo para ele.

- Vim no início desse mês para Seattle porque minha madrinha se casou com o Harry que mora aqui. Antes morávamos em Miami.

- Miami. - Repetiu como se fosse o nome de um Santo - Por quanto tempo ficou morando em Miami?

Franzi o cenho. Porque ele queria tanto saber? E pelo visto não era para debochar de mim, ele falava sério. Ele queria mesmo saber.

- Desde os sete anos.

- E seus pais?

Pais.

Então essa pequena palavra, mas importante me trouxe péssimas memórias.

Memórias dolorosas de feridas mal cicatrizadas.

Lembro que eles eram importantes para mim.

Lembro que eles eram tudo para mim.

Mas então se foram, nem se despediram.

Não puderam.

Suas vidas foram tomadas de si, de mim.

Por um "acidente" ou maldição, não importa, só importa que isso me feriu... me fere... tanto.

Então eu também lembro dos aniversários solitários, do dia das mães ou dos pais na escola quando todas as crianças tinham uma mão para segurar, menos eu... lembro quando aprendi a andar de bicicleta sozinha, mas as vezes quando sentia o vendo no rosto eu sonhava... sonhava que meu pai estava atrás de mim segurando a bicicleta e soltando quando eu mal percebia... mas ele não estava lá... minha mãe não estava lá quando eu chorava por não ter amigos, por não poder ter amigos... eles não estavam lá quando era importante estar... porque eles não podiam...

Eu não lembro mais de seus sorrisos e suas vozes agora eram apenas ecos distantes...

Abaixei a cabeça quando uma lágrima fugiu.

- Se quiser coma alguma coisa antes de ir embora. - Falei quase correndo escada acima e me trancando em meu quarto.

- Como foi seu primeiro dia de aula? - Indagou Harry na hora do jantar.

Quando estávamos sozinhos sem a Lucy por perto, jantávamos no sofá assistindo noticiário ou o canal de esportes.

- Foi bom. Posso ficar em casa amanhã?

Ele sorriu.

- Sabe que a Lucy não vai deixar. Vai se acostumar logo, tenha paciência. Aliás, você viu o Christian? - Perguntou.

- Ele faz matemática comigo.

- Ele é terrível em matemática.

- Eu percebi...

Rimos.

- Ah! Antes que me esqueça, tem umas caixas que trouxeram da mudança lá no sótão, ninguém mexeu ainda, talvez você encontre o diário do Nicolas lá, você estava procurando, não estava?

- Estava. - Me levantei - Vou procurar, já terminei aqui.

Peguei o prato e levei até o lava-louças.

O sótão ficava em um pequeno cômodo em cima do segundo andar, era só puxar a escada dobrável para subir e abrir o alçapão.

No sótão enquanto procurava em uma das caixas, ouvi barulhos no telhado, lembro que em Miami os barulhos significavam gatos encima de casa, mas hoje do lado de fora estava frio demais por causa da geada, não tinha como ser um gato.

Fui até a janelinha do sótão para ver se tinha sorte de descobrir o que era, fiquei observando por um tempo até o barulho sumir, mas então o barulho voltou e horrorizada percebi que eram passos, então vi um vulto de alguma coisa... de alguém. E então pulou do segundo andar. Engasguei um grito.

Corri pelas escadas, e parei na sala onde Harry assistia basquete.

- Tem alguém lá fora - apontei afobada para fora de casa - Estava em cima da casa, eu vi! E pulou!

- Tem certeza? - Perguntou Harry se levantando.

- Sim, sim! - Continuei afobada.

Ele correu até a prateleira de livros que ficava acima da lareira, atirou livros de lá e sacou uma arma.

- Fica aqui dentro! Não saia por nada!

Concordei com a cabeça.

Ele saiu com passos cautelosos e firmes que a profissão o ensinou.

- Toma cuidado! - Falei antes dele sumir fechando a porta atrás de si.

O que pareceu uma eternidade a porta se abriu com o Harry entrando por ela.

- Nada.

- Mas eu juro que vi alguém pulando do segundo andar!

- Eu sei. Quem quer que estivesse rondando a casa sumiu mas deixou pegadas na neve. Você não pode ficar sozinha aqui, vou pedir para o Chris te acompanhar da escola e passar a tarde, amanhã Lucy também estará em casa.

Concordei com a cabeça.

- Acho melhor você subir para o quarto.

Concordei mais uma vez indo em direção a escada.

Mas então Harry me chamou.

- Mell, têm certeza que ele pulou do segundo andar?

- Tenho.

Ele concordou com os lábios em uma linha fina.

- Se eu não tivesse visto com meus próprios olhos as pegadas lá fora não acreditaria. Quem pula do segundo andar e sai ileso?

Acho que não era uma pergunta retórica, mas de qualquer forma era uma pergunta que não havia resposta para ela.

Depois de dar boa noite fui até meu quarto. Liguei o aquecedor.

Vesti um casaco grosso sentindo meu corpo tremer, mas algo dentro de mim sabia que não era por causa do frio. Saí para a sacada do quarto, e fiquei olhando a floresta, quem sabe visse o sujeito andando por aí de novo.

O que achei mais estranho e sei que o Harry pensa a mesma coisa é que não tem ninguém morando perto o suficiente para ser um passeio casual de quem quer que estivesse andando pela floresta a noite e no meio de uma geada, e pior, que cidadão civilizado andaria em cima da casa de alguém? E pior ainda, quem pularia do segundo andar e fugiria com um arranhão sequer?

Apertei o casaco em torno de mim e abracei meu corpo.

Forcei os olhos quando achei ter visto duas figuras se mexerem na escuridão e sumir.

Mais lobos ou um urso?

Falando de lobos, preferi não contar para o Harry sobre o lobo, não quero colocar mais uma preocupação na sua cabeça ainda mais que o lobo já está morto o que me poupa também de não precisar contar como ele morreu. Quem o matou.

Entrei para o quarto e fechei a porta da pequena sacada.

            
            

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