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Capítulo 6 CADEIRA DE MADEIRA [ou Pergunte ao Oráculo como podemos ser felizes]


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LEMBRANÇAS
Nem sei porque
Escrevo isso,
Nem jeito tem
De compromisso,
Verdade, imposição ou lei.
Mas como doem as lembranças,
De um tempo terno e doce
Que sempre pensei que fosse
Tudo o que vivi e sonhei
Que saudade das auroras
Singelas – belas – amarelas
Quando acordava de um sonho
Para em outro adentrar.
Eram dias de bonança
Onde festiva
Dançava a esperança
Ao ritmo das horas mais belas
De um mais dolente sonhar.
SÓ SAUDADE
"O passado não é aquilo que passa, mas o que fica do que passou."
FOI NA OCASIÃO em que lecionava na Fazenda São José, no município de Ipuã, minha querida terra natal, no Estado de São Paulo, mais exatamente no ano de 1967, que tive o primeiro contato com a música "Três Boiadeiros", cantada pelo inesquecível Moacir de Oliveira e seu irmão Totonho. Era uma canção de rica musicalidade e ritmo e que cantava as desventuras de um boiadeiro pelas estradas da vida.
NAQUELE TEMPO, nós vivíamos e ouvíamos intensamente a música dos Beatles e dos Rolling Stones, e não importávamos em nada com músicas sertanejas, mas, não sei porque, aquela música gravou fundo em minha memória e em meu coração.
AS DESVENTURAS de "Chico Mineiro" me trazem doces e longínquas lembranças, lá pelos idos dos anos 50, quando viajando para o Estado do Paraná com meus pais, ouvi essa música pela primeira vez, no rádio do Ford 'Coupé', não sei, se em alguma estrada de terra ladeada de cafezais ou numa balsa na travessia de um dos muitos rios que havia no longo percurso.
É NESSE MESMO TEMPO, tempo de uma infância feliz, que eu acordava ao som do programa "Na Beira da Tuia", e ouvia envolto em sonhos e ternuras, músicas que contavam as mágoas e tristezas de um caboclo que falava de haver nascido "num ranchinho beira-chão, todo cheio de buraco adonde a lua faz clarão" e, que logo depois outros versos afirmavam a certeza do caboclo de não trocar seu "ranchinho amarradinho de cipó, por uma casa na cidade, nem que seja bangaló."
EU ACORDAVA, em meio a esse clima de magia, embalado com essas dolentes músicas que eram, quase sempre acompanhadas pela doce voz de minha querida Mamãe, ao sabor agradabilíssimo do café, que ela, com muito amor, preparava para todos nós.
LEMBRO-ME DE PAPAI, impecável com sua vestimenta de boiadeiro, com suas grandes e longas botas, seu chapéu Prada e seu imenso carinho que me envolvia quando chegava em casa, depois de uma longa e dura jornada. Ele sempre me trazia alguma coisa e, me pegando ao colo, dava-me balas, doces, beijos e muito amor. Quando anoitecia e chegava a hora de dormir, eu era embalado por Mamãe a cantar "Vai boiadeiro que a noite já vem, traz o seu gado e vai pra junto do seu bem". E a gente dormia feliz.
E HAVIA OS MOMENTOS FELIZES de ouvir músicas no "picape" movido à corda e que a todo momento ou quase sempre se trocava a agulha. Os discos, eram aqueles pesadíssimos 78 rotações, com músicas de Catulo da Paixão Cearense, Torres, Florêncio e Serrinha, Alvarenga e Ranchinho, Palmeira e Biá, Zico e Zeca, Tonico e Tinoco, Tião Carreiro e Carreirinho e uma infinidade de outros mais, que nos enchiam de alegria e encantavam o nosso viver.
COM O PASSAR DO TEMPO, com a vinda da eletricidade, Papai comprou um rádio-vitrola, que, por muitos e muitos anos, nos proporcionou momentos de infinitas alegrias.
FORAM MUITAS AS VEZES que vi Papai dedilhando uma viola e também não foram poucas as vezes que o acompanhei numa roda de catira, que naquele tempo acontecia amiúde em nosso pequeno e querido mundo de Sant'Anna dos Olhos d'Água.
E HOUVE TAMBÉM UMA ÉPOCA que, menino, andava grudado no lombo de um cavalo, de nome 'Balaio' ou coisa assim, tocando boiada, pela estrada quase sempre empoeirada que nos levava até a vizinha cidade de Guaíra, com Papai e outros peões. Foi um tempo, fugaz e efêmero, do qual tenho ínfimas e queridas lembranças, mas que se vivificam fortalecidas quando ouço, extasiado, em qualquer festa ou local que esteja, uma canção que conta a estória ou história de um menino "que vinha correndo abrir a porteira" só pra "ouvir o som manhoso de um berrante preguiçoso nos confins do meu sertão."
... E ENTÃO, O TEMPO PASSOU, eu cresci, estudei e me formei Professor. Década de 60, anos de revoluções, de conquistas espaciais, anos dos Beatles e dos Rolling Stones, dos hippies, de Bob Dylan, Jane Joplin, Jimmy Hendrix, de Woodstock, época de contestações, da guerra fria, de dúvidas, de incertezas.
COMO ERA NATURAL, meus pais ficaram arraigados nos bons tempos e dificilmente aceitavam os novos costumes que o mundo inteiro passava a adotar e, não foram poucas as vezes que ocorreram desentendimentos entre nós.
MÚSICA SERTANEJA, para nós, jovens, era coisa de caipira, assim como samba era música de malandro.
O SOM QUE DOMINAVA era o do Rock 'n Roll, dos Beatles, dos Rollings, das orquestras de Ray Conniff e de Billy Vaughn, das músicas italianas de Endrigo, Donaggio, Fidenco e Bobby Solo e dos conjuntos dos Incríveis, The Jordans e Renato e seus Blue Caps.
TÍNHAMOS VERGONHA de ouvir música sertaneja, que era coisa de pessoas iletradas, ignorantes, de palavreado errado, de viver simples e humilde.
COMO VIVIA ENGANADO naquela época! Hoje, tudo faria para resgatar aquela infância dourada, de doces recordações, que agora enchem de saudade alma e coração, e rever meu pai sentado na sala de nossa casa, a ouvir os anos de glória de Tonico e Tinoco, ao som de "Saudade" e "Alembrando de Você" .
NO ANO DE 1975, num fim de semana, em casa de um amigo, administrador da fazenda Milho Vermelho, no município vizinho de São Joaquim da Barra, conheci uma música que começou a mudar o meu modo de pensar em relação à música sertaneja. Ao ouvir "Mágoa de Boiadeiro", cantada por uma dupla que morava nas cercanias da fazenda, comecei a lembrar dos tempos de menino, quando Papai era um boiadeiro imponente, que tinha muito orgulho e prazer naquilo que fazia. Comecei a pensar em Papai, que ora nem era mais boiadeiro, nem mais boi tinha e nem cavalo. Mas na garagem lá de casa, ainda havia, uma tralha (de) pendurada, uma "capa", um laço de couro, pares de esporas e outros apetrechos mais, marcas de um passado de glórias, de lutas, de sofrimentos, mas também de muitas alegrias. Fiquei muito emocionado e, por muitas vezes solicitei que eles cantassem essa canção que dizia sobre a vida triste de um boiadeiro aposentado, relegado no tempo e no espaço. Pensava em Papai, naquele pai de minha infância, boiadeiro garboso, valente, sério, austero, mas honesto, trabalhador, bondoso e dono de um coração do tamanho do mundo!
O TEMPO PASSOU e levou meu pai e minha mãe para morarem com Deus. Tudo daria, se tudo tivesse, para resgatar o mundo maravilhoso que vivi e que tive o orgulho e a felicidade de ser filho de pai e mãe tão preciosos e queridos.
ENSAIO AO REDOR DE MIM
NUMA CERTA TARDE de minhas andanças, ao dobrar a esquina de uma rua qualquer, vi pelo reflexo de uma vitrina um senhor vestido de um azul cinzento, com fisionomia gasta e ombros encurvados. Como ia desprevenido, quase lhe disse boa tarde, respeitosamente, como em menino fazia vendo passar um professor do ginásio. Mas logo percebi, assustado, que era eu mesmo que levava, debaixo da roupa azulada e sob os ombros encurvados, o incômodo de ter setenta anos. Sabia perfeitamente que chegara àquela idade e tinha também uma consciência nítida da figura que fazia meu rosto, com meus bigodes embranquecidos.
DA IDADE SABIA de um modo repetido, constante, pelo habitual joguinho de gracejos a propósito da velhice. Até hoje não atinei com a razão de certas idades serem consideradas sob a ótica da pilhéria. Quando somos crianças, todo mundo nos acha jocosos e os adultos trocam risinhos cheios de cumplicidade. Na adolescência, encontramos novamente a facécia em torno de nossos modos desengonçados e sobretudo por causa de nossos pobres ensaios amorosos. Agora, na velhice, mais uma vez somos atingidos pela pilhéria. Eu tenho, pois, consciência vigilante de meus 70 anos. Isso eu sei hora por hora, minuto por minuto. Na rua, nas escolas, nas festas, nas casas de amigos, nas minhas viagens, em toda parte eu carrego a idade. Estou impregnado dela até o incômodo. Mas... Qual foi então o motivo daquele espanto súbito diante de uma vitrina?
CONSULTEI-ME ATENTAMENTE. Queria a explicação, não da tristeza, que seria fácil, mas do espanto. Procurei investigar os momentos imediatos antes do susto. Não me ocorriam os pensamentos que naquela ocasião levava comigo e mal me recordava que estivera assobiando baixinho uma canção antiga. Voltei atrás; repeti a experiência; tornei a passar diante do espelho assobiando baixinho, mas só vi então uma imagem familiar, tendo nos olhos um ardor inquieto de investigação. Pouco tempo depois, em outro lugar, descia por uma alameda, com o intuito de me espairecer após o jantar, quando numa casa clara e com amplo jardim na frente, abriu-se uma janela e do alto veio uma voz moça: "Marcelo, vem para dentro, olha o sereno!"
TAL FATO TROUXE impetuosamente a lembrança de minha meninice na rua Luiz Pereira, região da cidade que na ocasião era chamada de 'Vila Querosene', porque a rede elétrica ainda não havia sido instalada por aquelas bandas da minha querida Santana. Era um momento de magia numa noitinha assim; havia no ar brando e suave, uma repetição misteriosa, qualquer concordância sutil que me enchia o peito de ar novo e antigo. Uma janela se abrira com aquele ruído e do alto viera uma voz assim de mãe moça: "Meninos, olhem o sereno!" O sereno também ficara ausente de minha memória, porque hoje ninguém mais alude a esse gênio levemente úmido e um pouco malfazejo que fazia as crianças de meu tempo largarem suas brincadeiras de rua. Quem não terá encontrado por várias e várias vezes a sua infância, assim? Quem não andará, certas tardes, assobiando uma antiga canção pelas ruas, ou ziguezagueando na calçada para não pisar no cimento fresco?
NÃO BASTA DIZER que algumas associações nos fazem encontrar toda uma manhã de sol de uma meninice dentro de uma xícara de chá ou toda uma noitinha no perfume penetrante de um jasmineiro em flor. Essa brusca invasão da infância é mais do que uma evocação, uma espécie de experiência azul que fazemos na memória. De fato, parece que a infância persiste dentro de nós, enrolada como uma espiral de mola, e salta de repente, e assusta, e fere, e dói, quando vemos num reflexo de vitrina um senhor de longa idade. Temos vontade de prevenir em volta, envergonhados, que nosso eu não é aquele lamentável adulto encurvado e vestido de azul-cinzento; temos ímpetos de perguntar aos transeuntes por aquele menino da rua Luiz Pereira ou daquele da avenida Dona Tereza. Onde está ele? Quem o viu? Era um bom menino...
MINHA INFÂNCIA FOI livre e feliz, em casa grande, antiga, pintada de azul-claro, com um belo alpendre e um córrego atravessando o quintal. Eu tive um amigo de infância, que era meu vizinho. Ele morava numa chácara, cujos limites davam para o córrego maior, que atravessava a cidade, onde fazíamos dele, o nosso clube de natação. Quase todos os dias, meu amigo e eu, catávamos folhas de bananeira e saíamos pela rua cantando em alto e bom som: "A bandeira de 'gódia'. O pendão de Jesus Redentor" * Era o hino que cantavam as senhoras sérias de medalhões com fitas vermelhas, nas procissões que íamos com nossas mães. Como adorava aquelas procissões!
APRENDI A LER nas matinês de domingo, naquela lousa grande e brilhante em meio à escuridão e silêncio. Tabuada, aprendi decorando, enquanto colocava os barquinhos com as folhas roxas que cobriam as flores dos cachos das bananeiras, para navegarem no pequeno córrego da minha casa. Felizmente, minha mãe não tinha lido Rousseau, que a teria talvez convencido de me mandar aprender com as galinhas que cresciam soltas no grande quintal. Meu aprendizado foi livre e gratuito, como os barquinhos a deslizarem pelas águas claras do córrego de minha infância. Mais tarde viriam as primeiras lições de coisas, quando o mundo começava a girar em torno de minha adolescência. Mas, entre todas as coisas havia uma imensa solidariedade porque tudo estava na casa de meu pai.
CADA COISA TINHA nesse tempo o seu próprio direito de existir. Por isso, o mundo, o meu mundo era vasto e muito seguro. O tempo também não existia; ou era uma espécie de dança de todas as coisas. E quando as pessoas dançavam, não deixavam de ser elas mesmas. Quando o teto vinha ao meu encontro, oscilando, crescendo também não deixava de ser teto. O tempo era a regra dum brinquedo enorme: fazia meu pai sair e depois fazia-o voltar. Aliás, o mais certo era dizer que a regra vinha de meu próprio pai. Bastava uma tosse sutil ou um simples limpar de garganta e tudo se tornava silêncio.
TUDO ERA ARBITRÁRIO, o que dava-me uma enorme segurança porque os árbitros eram pai e mãe. Não sentia nenhuma injustiça com as contradições dos adultos, mas um vexame de não ter aprendido uma certa regra, como nos brinquedos de pique ou de roda. Nas horas de estudo, minha mãe não se sentava no chão da nova pedagogia para me ensinar números jogando 'bugalho', mas apenas dizia que hora de estudar era hora de estudar. E tinha imensa razão, porque tudo tem seu tempo. Tempo para brincar, tempo para estudar, tempo para comer, e tempo para rezar na hora de dormir. Bicho é que dorme sem rezar. Padre nosso... Onde estaria aquele Pai do Céu?
NUM DOMINGO, à tarde, estávamos brincando debaixo de um caramanchão coberto de maracujás, um pouquinho antes do córrego. Meus dois irmãos juntavam pedrinhas e pedaços de planta. Não conseguia ver direito o que eles estavam fazendo e ficava plantado atrás, encabulado de ser tão pequenino. Quis ajudar, mas só consegui desmanchar o monte que estavam fazendo. Mandaram-me embora, porque eu era sem jeito; fiquei à toa. Então olhei para o céu e vi umas nuvens que pareciam algodão. Eram branquinhas, branquinhas. Com certeza, era atrás daquelas nuvens que estava o Pai do Céu.
"PRA QUE SERVEM AS NUVENS?" – perguntei ao irmão um pouco mais velho que eu e ele disse: "Que bobo! Nuvem não serve para nada!". Então, o meu outro irmão, já mocinho, disse que tinha ouvido alguém dizer que nuvem serve para marcar hora. E assim o tempo passou... e trouxe você para compartilhar desse ensaio, enquanto eu imagino o espanto que teria ao se deparar com o fantasma que vi refletido naquela vitrina, de uma certa rua de minhas andanças...
Fantasia inspirada no conto "Era um bom menino", de Gustavo Corção.
Nota - *Levantai-vos Soldados de Cristo!/Sus! Correi! sus! voai à vitória,/Desfraldando a bandeira de glória,/O pendão de Jesus Redentor!
VERMELHO, SEMPRE O VERMELHO
DESDE CRIANÇA aprendi que o vermelho é a cor do perigo. Se fosse passear pelo campo, em algum sítio ou fazenda, nunca vestiria vermelho, pois segundo os mais velhos, a cor acabaria atraindo vacas e touros e isso só implicaria em confusão e perigo.
DEPOIS, já no ginásio, aprendi que o comunismo era vermelho, pois quando se referiam à União Soviética e seus assemelhados sempre mostravam uma bandeira vermelha. Nesse tempo, a primeira ideia de comunismo que tive foi em relação a posses: se você tivesse uma casa com varanda, todos teriam igual, se você tivesse um trator, todos teriam também e assim por diante. Vivíamos, naquele tempo, o período histórico chamado guerra fria e nós ocidentais e aliados aos Estados Unidos da América, temíamos os países vermelhos que mostravam a sua garra em forma de foice e de martelo e que se escondiam atrás de uma cortina de ferro. Foi o tempo dos grandes espiões e mirabolantes casos de espionagem, que inspiraram apaixonantes histórias e espetaculares filmes de ação e aventura.
O TEMPO PASSOU. A cor vermelha foi, aos poucos, ganhando a simpatia de muitos daqueles que a temiam no passado, inclusive eu. E de acordo com os conceitos e significados ela passou a ser vista como a cor da paixão, da energia e da excitação. Uma cor quente que estava associada ao poder, à guerra, ao perigo e à violência. Mas a cor do elemento fogo, do sangue e do coração humano!
NO ENTANTO, nestes tempos de falência da elite política, de desgovernos e roubalheiras, a cor vermelha teve o seu esplendor nas bandeiras de alguns partidos de esquerda, que se preocuparam mais em encher os seus cofres do que governar, jogando o país num precipício sem fim. E agora? Agora, só me resta voltar ao doce tempo da infância, onde o perigo sempre vinha indicado com a cor vermelha...
COME TOGETHER
A chuva fininha e fria caia sobre nós na estrada enlameada. De vez em quando, em meio às poças e escorregões, acordes sonoros repetiam: come together!...
ERA 1969. Fim de ano. Estávamos acampados na zona rural, num local denominado "Pindaíba" onde havia um casarão abandonado, situado à beira de uma pequena lagoa. Éramos uma turma de uns dez rapazes. Um tempo antes, cerca de mês e meio, um fazendeiro amigo atendera ao meu pedido e havia me arrumado um lugar para, juntamente, com alguns amigos passar uns dias no campo.
PARA LÁ FOMOS, na segunda-feira, 22 de dezembro, com o objetivo de ficarmos até o final do ano, mas nosso plano não se realizou. Na casa não havia nada. Apenas portas, janelas, paredes e telhado. Dormíamos no chão de terra batida.
À NOITE, enquanto alguns rapazes acendiam uma fogueira, munidos de faroletes, saímos caminhando ao redor da lagoa, a fim de pegar algumas rãs para assar, mas nossa caçada foi infrutífera. Numa batida no entorno da pequena lagoa nem cobras encontramos, sendo que aquela região era famosa pela presença de cobras venenosas, principalmente a jararaca, a cascavel e a jaracuçu do papo amarelo.
PASSAMOS AQUELA PRIMEIRA NOITE ao redor da fogueira ouvindo músicas, inclusive o último lp dos Beatles, o Abbey Road, magnífico em quase a sua totalidade, destacando "Come Together", "Something", "Oh! Darling", "Here comes the Sun" e "You Never Give Me Your Money". Ouvíamos também, na nossa sonata Philips, músicas dos Rollings, Bee Gees, Credence, Aphrodite Child, as italianas e algumas francesas, não faltando na nossa coleção a coqueluche da época, a proibidíssima "Je T'Aime [Moi Non Plus]", num compacto simples.
NO ALVORECER do dia seguinte, saímos, em turma de três rapazes, armados de nossos estilingues, à caça de codornas e inhambus que viviam nos cerrados próximos dali. Não os encontramos, mas tivemos alguma sorte, pois conseguimos caçar algumas juritis e rolinhas. Seriam, juntamente com o arroz, a nossa mistura para o almoço. À tarde, fomos pescar no ribeirão que atravessava pela propriedade, onde pegamos alguns lambaris e piaus. A nossa janta estava garantida.
DE NOVO, mais uma noite a enfrentar, naquele lugar ermo e inóspito, que, de uma forma ou outra se tornava maravilhoso e encantado, com a nossa união, alegria, companheirismo e fraternidade. Uns goles de cachaça e de conhaque, os peixes assados na fogueira, e a música a nos manter despertos e animados. Que felicidade!
NA TARDEZINHA de 24 de dezembro, véspera de Natal, resolvemos levantar acampamento e retornar a Ipuã. Em meio à chuva fina e fria caminhamos uma distância de 5 a 6 quilômetros, carregando nossas coisas, enquanto a sonata movida à pilha tocava as nossas músicas preferidas. "Come together, right now, over me!...".