Capítulo 4 TERRA NATAL E OUTRAS TERRAS

Minha casa

Era grande, vasta, um palácio

A casa onde morava...

Dentro dela eu guardava

Minha infância

Meus sonhos de criança

Meu mundo, um doce viver...

Em meio a mistérios

Sonhos e magias

A vida era apenas alegria

O tempo, um eterno prazer...

Além dela, um imenso jardim

Rosas, dálias e jasmim

Havia também o 'Bom Senhor'

Amarelo, tão belo

Que Mamãe oferecia

Com ternura às meninas

Em louvor ao Deus de amor...

E desse jardim, o quintal

Onde me perdia, às vezes

Em meio às roupas do varal

Dentro de uma nave espacial...

Flash Gordon eu era

A lutar contra o malvado rei Ming

Nas lunares crateras...

E ainda havia o corcel Swing

O mais belo cavalo das raias

Que acontecia num tempo tão bom

Da minha Santana de então...

Minha casa era feliz..

DIAS VENTOSOS

Não me comprazem dias ventosos. Nesses dias, a morte campeia pelos mares, ares, pelos rios, ruas, pelas montanhas, colinas, prados, por todos os lados, à procura de alguém.

Encontrando, leva-os todos, às dezenas, às centenas, aos milhares, para longe de nossas vistas e de nossas memórias.

Nessas horas não há alegria, nem esperança.

Parece que o fim está ali, estonteante, mirabolante, entristecendo tudo e todos, numa agonia de dar dó.

O FOGO

Ano de 1975. Saímos, papai e eu em direção à vizinha cidade de Guaíra, onde fomos visitar alguns parentes e amigos.

Seguimos pela rodovia principal que tinha pouco movimento. Eram mais ou menos 9 horas da manhã. O dia estava muito claro e quase não havia vento.

Ao aproximar da divisa, avistamos, cerca de 200 metros à frente, um caminhão com um carregamento de algodão, parado no acostamento do outro lado, pegando fogo. As labaredas faziam um barulho infernal e o calor era intenso. Línguas de fogo tomavam conta daquele cenário dantesco.

De pronto, papai freou o carro e jogou-o para o acostamento. Com o carro parado, ficamos, ao longe, observando aquele tenebroso acontecimento, sem poder fazer nada. Não havia ninguém no caminhão e nem pelos arredores. Nenhum veículo transitava pela rodovia naquele momento. Somente nós, e aquele caminhão em chamas.

Resolvemos sair dali, com medo de alguma explosão ou coisa pior. Entramos no carro e papai passou além do acostamento, beirando a cerca, pois o calor do fogo era tremendo. De longe, olhando pelo retrovisor, vi as luzes traseiras do caminhão piscando sem parar, como num lamento insano, a pedir socorro.

Chegamos à cidade e contamos às pessoas que encontrávamos, sobre o caminhão incendiado na pista. Falamos das chamas intensas, contra as quais nada pudemos fazer e do calor abrasador. Todos se mostravam admirados e espantados com a nossa história.

Depois de algumas horas fizemos o caminho de volta e, para o nosso espanto e a nossa surpresa, ao chegar ao local do acontecimento, não vimos mais o caminhão, nem sinais de que ali houvera um incêndio.

Será que havíamos sonhado ou, juntos assistido um terrível pesadelo? Teríamos penetrado em outra dimensão?

E o que pensaram o povo e os amigos de Guaíra? Tornamo-nos, para eles, dois mentirosos?

O LOBISOMEM

Era o ano de 1967, o segundo de minha vida de professor.

Após a reunião para atribuição de classes, consegui escolher uma classe de 4ª. Série, na Escola Masculina de Emergência da Fazenda São José, considerada uma das melhores escolas rurais de Ipuã e região.

Para lá fui, numa manhã de segunda-feira, levado pelo meu saudoso pai, no seu Ford Cupê, um belo automóvel na época.

Após conhecer a escola, minha classe e meus alunos, dirigi-me então, à casa onde me alojaria enquanto fosse professor naquela fazenda.

Pouco a pouco fui me ambientando com aquela vida tranquila e pacata da zona rural, conhecendo os moradores e seus costumes, suas crendices e suas histórias.

Jovem, cheio de sonhos e ideais, professor recém-formado – eu achava graça – e era até com certa indignação e persistência, que combatia as crenças que dominavam e apavoravam os habitantes daquele lugar.

Na fazenda, - a não ser o guarda-noturno, um sergipano de nome Severino - ninguém transitava pela colônia a partir das 20 horas, temerosos de encontrar caixões de defuntos em porteiros assombradas, e outros seres imaginários que habitavam a alma daquela gente simples e humilde.

Acostumado na cidade e também à vida boêmia das serenatas ("de luar cor de prata/mulata ingrata/que me mata"), eu me sentia muito só e então passei a frequentar a casa do senhor José Pedro, o campeiro da fazenda e pai de um de meus alunos, onde havia uma dos raros receptores de televisão.

Nas minhas aulas e também em conversas com os pais, eu procurava explicar que "lobisomem", "assombração", "mula-sem-cabeça" e outras crenças, apenas existiam na nossa imaginação e não havia motivo algum para ter medos e receios.

Lembro-me, então, da noite que fiquei até tarde – um pouco mais da meia-noite – em casa do pai de Manoel, assistindo a um videoteipe de um jogo de futebol.

Era uma noite de fins de março, época de quaresma, e por sinal, uma noite tenebrosa, escura, de muita ventania e muita poeira.

A contragosto do Sr. José Pedro que me oferecera, insistentemente, pouso para aquela noite, despedi-me de todos e fui para minha casa, que distava cerca de uns 300 metros dali. O único barulho que se ouvia era o zumbido intermitente do vento.

A casa situava defronte ao pomar da fazenda, enorme espaço, onde havia as mais variadas árvores frutíferas e um frondoso bambuzal que, com toda aquela ventania fazia um barulho apavorante.

Ao abrir o portão de minha casa, eis que ouço grunhidos às minhas costas.

Sem olhar para trás atravessei o portão num átimo e já, com a chave na mão, abri a porta – tranquei a porta – corri para o quarto – acendi a luz – pulei na cama e cobri-me dos pés à cabeça!

Com o coração na goela, imóvel como uma estátua, lá estava eu, tremendo de medo, debaixo do cobertor, a pensar: - seria o lobisomem, aquilo que grunhira atrás de mim... e, que eu, insistentemente, falava a todos que aquele ser não existia?

Dizem que o medo faz do homem corajoso um covarde e, naquele momento eu, o professor, que se julgava esclarecido, sabido, era talvez, a pessoa mais medrosa do mundo!

Mas o pior ainda estava por acontecer naquela que se tornaria uma das noites mais tenebrosas da minha vida!

O teto do quarto era feito de lona - um tipo de encerado - que se achava rasgado em alguns pontos. E, foi por um daqueles buracos que, na madrugada irrompeu um irado morcego e num voo rasante e escandaloso choca com minha cabeça, já descoberta e adormecida. Mais escandalosos foram meus gritos, que acabaram por acordar um bom e velho casal que morava de parede e meia comigo.

Depois de mais aquele susto, não mais dormi, esperando ansiosamente que amanhecesse logo para terminar com todos os meus temores.

E, ao chegar a manhã, quando abri a porta vi, admirado, uma portentosa porca a grunhir, seguida de um grande número de filhotes, passando pelo pátio da escola...

PIRATA*

Um belo cão. Companheiro, amigo de todas as boas horas que tive por um bom tempo. Não era meu. Mauro, meu querido irmão, ganhara de um amigo de Ribeirão Preto. Era branco, pelo liso, cheio de pintas. Parecia um dálmata, de porte majestoso, esbelto. Disseram que era um perdigueiro, raça valente, caçadora e amiga.

Ficava mais na rua do que em casa. Todo mundo gostava dele e era bem recebido em todos os lugares por onde fosse. Parecia mais um cão comunitário. Jogava bola com as crianças, ia pescar com o vizinho, pernoitava em casa de amigos, era sorridente e feliz. Nunca ouvi latidos de sua boca, nem tampouco rosnados.

Lembro-me da única vez que fomos caçar. Próprio da raça, ele ia 'amarrando' as codornas e inhambus e ficava paradinho à espera do nosso tiro. Juntamente com amigos, munidos de espingarda cartucheira, não acertávamos um tiro. E lá ia Pirata de encontro à outra moita, 'amarrando' outra caça e mais outra e outras... até que chegou o momento que ele, parava estático numa moita e assim que aprontávamos para disparar nossas armas, ele se levantava, nos olhava com cara de gozação e saía a correr pelos campos. Não se caçava mais nada, porque o cachorro desconfiara da nossa 'ruindade'. Estava 'amarrando' o vento, gozando na nossa cara.

Assim era Pirata. Um cão de alma pura e bela, feliz com a vida, feliz com tudo e com todos.

Um dia, viajei para São Paulo em companhia do prefeito da cidade, ocasião que eu exercia o cargo de Presidente da Comissão Municipal do MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização e, teríamos uma reunião na Capital. Lembro-me que saímos pela madrugada, umas quatro horas da manhã e nossa reunião estava marcada para o período da tarde, na Secretaria de Educação. Pelo caminho, em meio às conversas, o senhor Prefeito disse-me que havia autorizado aos fiscais a darem "bola" para os cachorros, uma espécie de carne envenenada, para assim fazer uma limpeza na cidade, eis que havia muitos cães vadios vagando pelas ruas. Num estalo lembrei-me do Pirata.

Como era muito cedo, madrugada ainda, pedi-lhe que assim que amanhecesse, pudéssemos parar em algum lugar para telefonar, avisando meus pais para que não deixassem o Pirata sair para a rua. Já eram quase 8 horas da manhã quando consegui ligar para casa. Pirata não estava mais lá. Estava já nas ruas, como era seu costume, vadiando, vivendo em liberdade, entre amigos, ora na casa de um, ora na casa de outro. Pedi então que o procurassem e que o trouxessem são e salvo para casa.

Ao voltar de São Paulo fui ver o Pirata. Estava, juntamente com quase uma centena de outros cães, amontoado, enrijecido, morto no lixão da cidade. O que pude fazer foi colocá-lo num saco, transportá-lo numa carrocinha de mão e enterrá-lo um pouco distante dali, juntamente com minha tristeza e meu pesar.

* Pirata é uma história real, ocorrida no início dos anos 70.

OS ÚLTIMOS DIAS NO MEU TORRÃO NATAL

"O que há de maravilhoso numa casa não é que ela nos abrigue e nos conforte, nem que tenha paredes. É que deponha em nós, lentamente, tantas provisões de doçura. Que forme, no fundo de nosso coração, essa nascente obscura de onde correm, como água da fonte, os sonhos..." (Antoine de Saint Exupéry in "Terra dos Homens")

A casa onde residi em Ipuã, desde os anos 60 até os últimos dias de julho de 1988, e que se localizava na Avenida Carlos Fernandes, 755, não existe mais tal como foi. Após a sua venda, ocorreram várias mudanças em sua estrutura.

Todavia, tenho muitas recordações dela, a maioria constituída de boas e queridas lembranças.

Era uma casa simples, de vários cômodos onde, por todos os lados, reinavam o amor e a alegria de um aconchegante lar.

Agradava-me muito o quintal, onde existiam algumas árvores frutíferas, sem se esquecer das flores de minha mãe, que ela cuidava com prazer e amor. A garagem, mais parecia outra casa no fundo, onde além do carro de meu pai, havia espaço para guardarmos diversas outras coisas. Era neste quintal, que, adolescente ainda, continuava as minhas experiências com as plantas de minha mãe. Não havia mais a magia nem o entusiasmo da infância, eis que um pouco de embasamento científico já conduzia minhas pesquisas. No entanto, o espírito da busca era sempre o mesmo, pois por mais evoluídos que nós nos tornamos, não nos livramos de nossa infância, que continua, incessantemente, sua representação imortalizada em nossa memória.

Que doces lembranças eu tenho da jabuticabeira em flor. Era uma árvore de porte médio, que se situava um pouco além da cozinha e da varanda. Geralmente eu colocava meu fusca debaixo de sua sombra, que na época da floração, se recendia, de longe, o delicioso aroma de suas alvas flores.

Foi nesta casa que eu me tornei professor e foi vivendo nela que ampliei meus conhecimentos em outros centros de ensino superior. Em seu abrigo me vi poeta, criando os primeiros versos, mergulhado no sonho e na magia. Quantos momentos felizes eu vivi com minha família neste espaço de segurança, amor e ternura chamado lar.

Infelizmente, foi nela que vi meus pais pela última vez. Como não havia um espaço próprio para velório na cidade, seus corpos foram velados – um após o outro, em cada ano – na sua sala principal. Depois disso, ela se tornou vazia com a minha solidão, até o fim, quando dela saí, deixando-a na posse de seus novos donos.

Hoje, distante de tudo, conservo estas ternas lembranças no meu coração e sempre que posso, retorno à terra querida que me viu nascer, ao encontro de parentes e amigos que, creio, com muito orgulho, viverão como eu, os restos de seus dias eternamente ipuanenses.

            
            

COPYRIGHT(©) 2022