Capítulo 4 A Garota das Devas

Quando o veículo finalmente parou, eu estava tonta de tanto pensar nas probabilidades de não conseguir sair dali. Minha loba, sempre tão inquieta e feroz, estava estranhamente silenciosa.

Contudo, eu sentia sua presença latente, seu olhar analítico que parecia examinar cada detalhe do ambiente que eu não podia ver claramente.

O ar estava carregado de um cheiro familiar, um odor terroso e animalesco. Mesmo que olhos mortais não captassem nada além da escuridão e do contorno denso das árvores, eu sabia que não estávamos sozinhas.

Eles estavam ali, lobos ocultos nas sombras, sentindo o meu cheiro tão claramente quanto eu sentia o deles. Um aviso silencioso que eu era uma intrusa em seu território.

- Nem sempre as coisas são como parece. - Eme, a loba anciã, me lançou um olhar enigmático ao pronunciar as palavras em tom baixo.

Eu nem percebi que seu companheiro já tinha saído da caminhonete e estávamos só nós duas, nossas vozes e respirações ecoando brandamente contra as paredes estreitas do carro.

- Sei perfeitamente disso, posso dizer que vivi a experiência - argumentei, sentindo o peso das minhas próprias palavras, uma dor mal curada.

- Imagino que sim.

O passado não estava devidamente enterrado, e aquelas palavras trouxeram uma enxurrada de lembranças que eu preferia manter trancadas.

Eu tinha longos anos como prova, porque acreditei em uma pessoa que fingiu ser o que não era.

Lembro de uma época em que fui uma mulher feliz por achar um homem que demonstrava ser dedicado a mim, que enxugava minhas lágrimas com beijos, planejava um futuro para nós e me tratava como a pessoa mais especial do mundo.

E eu acreditei. Acreditei até o momento em que acordei sozinha, jogada em uma ilha, abandonada pelo mesmo homem que havia prometido nunca me deixar.

Por muito tempo, cheguei a me punir, me odiando por amar. Como se a culpa fosse mais minha de ter entregado meu coração pouco a pouco do que dele por nunca ter me dado o seu.

Se estava predestinado a dar errado, por que no final fui eu quem ficou se perguntando o que fez de tão ruim para merecer morrer sozinha?

Prometi a mim mesma que jamais confiaria em alguém daquela forma novamente, mesmo que isso significasse me transformar em outra pessoa. Com o tempo a dor se transformou em ódio e, então, o usei como combustível para sobreviver àquele inferno.

- Você está bem?

Eme me observou, sua pergunta empurrando as ondas sombrias como um recuo. Ela parecia tentar ler minhas expressões e o que se passava na minha linha fervente de pensamentos, mas eu sempre fui muito boa em disfarçar o que realmente sentia, e não lhe entreguei nada.

- Não vou te pressionar. Há coisas que precisamos estar prontos para compartilhar.

Sua voz doce transmitia compreensão, o que usado contra todas as minhas inseguranças, poderia ser capaz de derrubá-las.

Havia uma parte de mim que queria se abrir, queria contar a ela tudo o que me esmagava por dentro. Queria compartilhar com alguém o fardo que carreguei por cinco anos. Mas isso seria um erro. Ela fazia parte da alcateia Moonhunter, e qualquer laço com ela era perigoso.

Se eles realmente fossem boas pessoas, não apoiariam alguém como o Alfa Lorcan, certo?

Meu pai costumava dizer que o coração de um lobo não deve se enganar pelo brilho de olhos bondosos. Mesmo assim, Eme me lembrava ele de alguma forma. O jeito como seus olhos brilhavam com algo que parecia acolhedor e genuíno. Uma saudade sufocante subiu pela minha garganta.

Eu só queria sair dali logo e ver aqueles olhos de novo.

- Você parece ser uma boa pessoa, Eme - declarei com sinceridade, notando como seus lábios curvaram levemente para cima. - Então eu te peço, por favor, que não me faça passar por isso.

Ela suspirou profundamente.

- Do que você tem medo?

Ótima pergunta. Do que eu tinha medo? Não era dela, não diretamente. Era da farsa que talvez tudo aquilo representasse. O resgate, a promessa de um retorno ao lar... Se tudo não passasse de outra mentira, eu não sobreviveria ao peso da desilusão novamente. Eu tinha medo de criar esperanças.

Não podia dizer em voz alta que o futuro incerto me aterrorizava, então apelei para outra abordagem.

- Por favor, eu imploro, não vou prejudicar sua matilha de nenhuma forma se me deixar ir embora.

Ela desviou o olhar para frente por um momento, o rosto dividido entre compaixão e hesitação. Sua mão subiu para arrumar o coque frouxo que mal segurava seus cabelos opacos e levemente grisalhos. Uma luta interna parecia acontecer dentro de si, tentei usar isso ao meu favor.

- Prometo que não contarei a ninguém sobre vocês, eu nem sei o caminho até aqui, dormi quase o trajeto inteiro. Por favor, me deixe ir e eu juro que não direi nada a ninguém - supliquei desesperadamente, sentindo meu sangue pulsando à medida que conseguia captar passos do lado de fora.

Ao olhar para frente, vi o velho Perseus parado há poucos metros de distância da caminhonete, ele estava conversando com uma loba que aparentava ter a minha idade.

Eles trocaram sorrisos e abraços, e por um instante pensei em como seria recebida pela minha família, se meu pai também me abraçaria forte o suficiente para afastar todos os anos de dor e solidão que eu ainda carregava dentro de mim.

Eu estava morrendo de saudades dele, da minha irmã, até das broncas da minha madrasta... Será que ainda me procuravam?

- Eu sinto muito. - A voz da mais velha me puxou de volta à realidade. - Não posso fazer o que me pede, mas posso te garantir que não é o que você pensa. Nosso Alfa vai exigir respostas, porém ele é capaz de te entender, apenas fale a verdade e deixe-o ver quem você realmente é, somente ele pode te ajudar.

Ela não esperou uma resposta antes de abrir a porta e se retirar.

Fechei os olhos por alguns instantes, tentando acalmar meu próprio espírito, no entanto, o receio ainda agarrava meu coração, fazendo ele acelerar em protesto.

Não queria conhecer o Alfa Lorcan, porém ele era o único obstáculo entre mim e a família para qual eu pretendia retornar, inteira de preferência.

Se tivesse que enfrentá-lo, assim seria, eu não tinha nada a esconder, não tinha intenção alguma de provocar a sua ira tentando prejudicar a alcateia, ele veria isso, não veria?

Torci para que sim.

- Ora, ora, o que temos aqui?

                         

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