Capítulo 2 Dois

Naquela noite, Selena teve um sonho muito agradável. Via Tomás vestido com uma roupa da realeza como se fosse de fato um príncipe. Vinha até ela e lhe estendia a mão. Ela via-se com suas roupas velhas e rasgadas de sempre e ficava com vergonha dele. Tomás, no entanto, não se preocupava com isso, tecia infinitos elogios a ela, fazendo com que seu coração se aquecesse.

Ele depositava-lhe um beijo casto nas mãos e a conduzia a um castelo lindíssimo. Era um monumento todo feito em cristal, algo que ela jamais imaginava existir. Os portões se abriram para que eles entrassem e lá algumas mulheres a esperavam com um magnífico vestido para que ela usasse, algumas jóias e outros tantos adornos. Logo, ela percebeu que tratava-se de um vestido de casamento, o seu grande dia havia chegado. Sentia grande emoção tomar conta de seu cerne. Ao ser conduzida pelas mulheres, despertou de seu sono.

- Ah! Puxa vida! Na melhor parte? - Resmungou ainda deitada e olhando para o teto. Sentiu sua barriga resmungar, estava com muita fome. Notou que os primeiros raios de sol começaram a surgir. Içou seu corpo e vestiu seus andrajos de todos os dias.

Caminhou até a cozinha, onde viu que sua mãe já preparava um chá de ervas colhidas no quintal. Ainda podiam fazer isso todos os dias. Selena adorava tomar aquele chá fumegante pela manhã, era revigorante para ela.

Enquanto sorvia o primeiro gole, notou que sua mãe exibia olheiras bem evidentes naquela manhã.

- O que houve, mãe?

- Por que está perguntando?

- Sua feição está péssima, mãe. O que o papai fez?

- O de sempre... - Curvou seu pescoço para baixo. - Ele perdeu outra vez e eu insisti naquela conversa de tentar convencê-lo a parar. Bom... aí você já deve imaginar como tudo prosseguiu. A grosseria dele surgiu e fui ofendida como sempre. - Uma lágrima percorreu sua pele envelhecida. - Eu não sei onde vamos parar, Selena. Hoje ele vai levar dois dos três porcos que nos restam.

- Acalme-se, mãe. - Selena a abraçou tentando aplacar sua dor.

A moça também já havia tentado conversar com o pai duas vezes sobre o mesmo assunto, contudo o tratamento fora o mesmo dado a sua mãe. Não tinha jeito, ele não queria ouvir ninguém. Estava cego e obstinado esperando o dia que iria ganhar uma enorme quantidade que iria tirar a todos do atoleiro.

- É por isso que logo irei partir. - Raven logo invadiu o ambiente. Havia trevas em seu semblante. - Estou cansado de vê-las sofrer.

- Mas, meu filho, como irá ajudar se for embora? Precisamos de você aqui.

- Já expliquei, mãe. Vou tentar conseguir algo melhor e depois virei buscá-las. Quero dar uma vida melhor a vocês, quero vê-las felizes.

- Eu só quero tê-los ao meu lado, isso é o que me faz feliz. - Dona Nina respondeu com parco sorriso em seu rosto sofrido.

Não demorou muito para que Dogan surgisse no recinto. Sem demoras, os três cessaram a conversação. Raven que outrora, vivia discutindo com o pai, optou por não perder mais seu tempo com isso, percebeu que era um desgaste totalmente inútil.

Após ingerir um pouco de chá, Raven ajudou seu pai com os dois porcos que ia levar até o centro da cidade. Apesar da amargura que sentia, ele amava seu pai e sabia que ele deveria cumprir com a obrigação. Temia pela sua integridade física; por isso, presta-lhe auxílio, embora lhe doesse desfazer das poucas coisas que ainda possuíam.

Selena tentou não pensar em mais esta derrota, desvelou-se para livrar sua mente da agonia que era sua vida. Levou seus pensamentos até o sonho agradável daquela noite. Aquilo a fazia muito bem. Ajudou sua mãe com as tarefas domésticas e em seguida foi plantar algumas mudas de hortaliças. Enquanto revirava a terra, sua mente viajava em seus sonhos encantados. Rememorou o castelo de cristal e ficava conjecturando sobre como seria maravilhoso se existisse um lugar assim. Logo, a imagem de Tomás veio povoar seus pensamentos. Seria ele um príncipe? Esboçou um sorriso frouxo enquanto fincava as mudas na terra.

Após encerrar a tarefa, ergueu seu corpo. Suas pernas estavam até doendo. Suas mãos estavam totalmente sujas, tentou limpá-las esfregando uma na outra. Todavia, havia muita terra no vão de suas unhas, ela não gostava de ver as próprias mãos daquela forma, embora gostasse de realizar aquela tarefa. Direcionou-se a uma tina de água para tirar aquela sujeira, porém foi interceptada por uma voz masculina que a agradava muito. Tomás surgiu como num passe de mágica, ela chegou a sobressaltar-se.

- Olá, Selena. Como está? Vim para o nosso passeio.

Ela tentou esconder as mãos atrás do corpo. Não queria que ele visse suas unhas entranhadas de terra. - Olá, Tomás. - Titubeou.

- Algum problema? - Ele a encarou seriamente, porém sua fala era demasiadamente gentil.

- Não! Nenhum... Eu só... Bem, eu preciso fazer uma coisa.

- Antes deixe que eu a cumprimente. - Tentou pegar as mãos da moça para dar-lhe um beijo. Selena a puxou com tenacidade.

- Eu já volto...

- O que houve, Selena? Está estranha, nem parece a mesma doce garota de ontem. Parece assustada.

- É que eu preciso lavar as mãos. Estava mexendo na terra até agora.

- Sua apoquentação é só por isso?

- Sim. - Ela afirmou com convicção.

- Deixe de ser boba, eu não ligo.

- Mas eu ligo.

- Deixe-me ver suas mãos. - Seu tom era brincalhão. Puxou-a não deixando alternativas para a moça.

- Ah... Não faça isso, por favor. É horrível.

- Não vejo problema algum. - Contemplou as mãos pequenas dela entre as suas. – São mãos de alguém que fez algo de muito importante. Não deveria se envergonhar, apenas se orgulhar. - Ele abriu um largo sorriso mostrando uma fileira de dentes impecável, fez com que Selena ficasse toda derretida.

- Eu tenho orgulho do que faço, só não queria que você visse minhas unhas tão sujas.

- Por quê?

- Porque... porque não, oras.

– Pense o seguinte: Um príncipe de verdade, mesmo não sendo da nobreza, não se importaria com este pequeno detalhe. - Ele mirou nos olhos dela.

- Oh!

- O que foi?

- Você me deixou sem fala. - O coração dela já batia totalmente fora do ritmo. Seria ele um príncipe? Essa questão ainda martelava em seu cérebro.

- Só estou sendo sincero com você.

- Então você não se importa?

- Claro que não.

- Você... Bem, você é um príncipe? - Estava tão atabalhoada que não conseguiu segurar a língua e deixou que seus pensamentos fossem transformados em palavras. Logo se arrependeu da bobagem que havia cometido, porém já era tarde demais.

Tomás não resistiu ao questionamento e deu alta gargalhada. - Perdoe-me, mas sua pergunta foi divertida.

- Ai... desculpa... Eu... Eu falei besteira.

- Não falou. Já disse que gosto da sua forma inocente de ver o mundo ao seu redor. Infelizmente não sou um príncipe, bem que eu gostaria de ser e principalmente poder resgatá-la de sua vida e levá-la para viver em um belo castelo.

- Eu...

- Sabe, Selena, você é a criatura mais doce e encantadora que já conheci. Não tiro você de minha mente desde a primeira vez que a vi. Por isso, a convidei tantas vezes para passear, queria poder conhecê-la melhor. Achei que nunca fosse aceitar.

- Na verdade, eu não ia. Acho que o incentivo de Raven foi necessário para isso. - Riu sem graça.

- Eu sabia disso, contudo nunca perdi minhas esperanças. Seu jeito cauteloso e sua timidez me mostravam isso o tempo todo. - Fez-se um silêncio constrangedor entre eles. - Que tal darmos aquela volta que combinamos desde ontem? - Ele tentou emendar quebrando o mutismo do momento.

- Acho uma ótima ideia. - Ele arqueou seus braços, oferecendo o encaixe a ela.

- Posso ao menos lavar minhas mãos? - Ela riu.

- Claro que pode. Não vou mais impedi-la de exercer esta função. Ela me parece bem importante para você. - Respondeu num tom bem humorado.

Em seguida, eles prosseguiram com o plano inicial. Palmilhavam os bosques próximos dali, observando a natureza ao redor. A conversa, por vezes faltava, estavam embevecidos pela presença um do outro e o fato de compartilharem a companhia, era uma emoção incrível. Ouviam o canto dos pássaros, vez ou outra uma cigarra fazia uma apresentação de seu canto e o farfalhar das folhas secas sobrepostas no chão ao serem pisoteadas, também ajudavam a fender o mutismo.

Achegaram-se à orla do rio. Ainda havia um último pescador que recolhia o fruto do seu trabalho. Saudou ao jovem casal que ali estava. Era uma tarde muito agradável. Eles sentaram-se à margem do rio e ficaram a observar a beleza daquele lugar.

- É lindo, não é? - Tomás indagou ainda sem jeito.

- Sim. - Ela contemplava o horizonte. Timidamente, ele aparou a mão dela entre as suas. Mais uma vez, o coração de Selena se descompassou. Um frio tomava conta de seu estômago. Ela apenas sorriu.

- Sabe, apesar da dificuldade em aproximar-me de você, sonhei com um momento como este. - Ele virou seu rosto e passou a admirá-la.

Selena percebeu que ele a olhava, contudo ela permanecia encarando o contorno do rio. Não sabia como reagir diante da situação, sentiu sua pele ferver. Era uma sensação nova para ela, um momento que jamais imaginou vivenciar. Depois de relutar um pouco, acabou não resistindo e olhou para o rosto de Tomás. Aquele rosto adornado por um lindo sorriso a deixava perdida.

Ficaram se encarando por alguns segundos até que Tomás aproximou seu rosto ao dela. Sentir a respiração dele tão próxima, fazia com que um arrepio fluísse pelo corpo dela. Morosamente, ele aproximrou seus lábios aos dela e suavemente os tocou. Seus lábios eram quentes e macios, fazendo com que Selena absorvesse uma emoção indescritível. Foi um beijo casto e inocente, Tomás não queria ir muito rápido e assustá-la.

- Tudo bem? - Encarou-a com um olhar apaixonado. - Perdoe-me se fui invasivo.

- Está tudo bem. - Ela respondeu com um sorriso nos lábios. - Você é um príncipe sim. – Completou com um enorme brilho em seus olhos. Arrancando mais uma risada de Tomás, uma risada feliz e motivada.

- Se você quiser, eu serei o seu príncipe.

- Eu quero.

- Então venha comigo.

- Não entendi. Ir com você, para onde?

- Quero sair deste lugar assim como seu irmão. Muito em breve, poderei realizar este feito. Venha comigo. Não poderei te ofertar um castelo, mas posso te dar uma vida um pouco melhor, sem trabalhos intensos ou sofrimentos.

- Eu não posso sair daqui.

- Raven logo irá.

- Como sabe?

- Vou contar a você, espero que não fale a ele que lhe falei. Nós vamos partir juntos daqui. Estamos planejando tudo.

- Isso seria muito cruel com minha mãe. Dois filhos partindo e a deixando para trás, seria muito sofrimento para ela. - Naquele instante, toda a poesia do momento parecia desaparecer.

- Desculpe-me, não queria chateá-la.

- Tudo bem. - Ela suspirou. - Meu irmão já nos avisa constantemente sobre isso. Não sei porquê estou exaltada com o assunto. Eu só queria... Por favor, Tomás, fique! Não vá embora, não precisamos sair daqui.

- Eu não posso desistir de tudo agora. Há tempos que venho economizando para realizar este feito. Isso tem sido meu objetivo de vida há alguns anos. Não consigo me ver vivendo aqui para sempre.

- Eu...

- Pense sobre o assunto, Selena. Pense com calma, não precisa responder agora.

- Está bem. - Ela concordou com a proposta de pensar, contudo não conseguia cogitar a possibilidade de fazer isso.

- Peço mais uma vez que me desculpe por estragar o momento. – Fitou o rosto dela e em seguida selou os lábios de Selena com um outro casto beijo.

Partiram dali de mãos dadas, todavia as separaram um pouco antes de chegarem próximos à residência dela. Despediram-se apenas com um aceno de mãos.

Ela entrou em sua casa com um misto de emoções a digladiarem-se dentro do peito. Acabava de experimentar as mais sublimes sensações do amor, contudo se não tomasse uma atitude drástica as perderia para sempre. Era uma decisão muito difícil para ela tomar, seu coração não aguentaria qualquer que fosse sua perda. Precisava ponderar com cuidado sobre o assunto, pois de qualquer forma iria perder. Família ou amor? Era um questionamento cruel para ela.

            
            

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